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Árvores na água

A Série Harmônica e as Mutações da Percepção Humana:
Uma breve reflexão

Cecilia Valentim

Fev 17, 2022

Na cosmogonia das antigas tradições fala-se do universo como um campo de vibrações e do humano como uma composição dessas vibrações corporificada: Nada Bhrama, tudo é som no Induismo (Hamel, 1995), assim como o Verbo, de onde surge toda luz, está para o Cristianismo, bem como a Cabala no Judaísmo (Berendict,1997) e Nhamandu, o grande silêncio e Tupã, o grande trovão, para o povo Tupy (Wera, 1989), na tradição nativa brasileira, para citar apenas algumas. Na jornada da consciência humana em busca de uma compreensão acerca de si mesmo e do universo que o rodeia, em um campo de percepções dentro de um espectro que está em constante mutação, chegamos à Nova Ciência, que nos traz, a cada dia, novas informações acerca do mundo do infinitamente pequeno, das partículas que constituem o átomo e a matéria. Na busca de uma teoria unificada (Green, 2001) encontramos a Teoria das Supercordas, que propõe que toda matéria e todas as forças provêm de um único componente: cordas oscilantes. A proposta desta teoria é que as cordas são os ingredientes ultramicroscópicos que formam as partículas, que por sua vez, compõem os átomos (Green, 2001). A essência da matéria é um filamento vibratório.

O mundo é som:

“Acredita-se que cada ancestral totêmico, ao viajar pelo país, tenha espalhado uma trilha de palavras e notas musicais ao longo de suas pegadas…Essas Trilhas de Sonhos acham-se sobre a terra como” vias “ de comunicação entre as tribos mais distantes. [Elas]….vagueavam pelo continente no Templo-dos-Sonhos cantando o nome de tudo o que cruzava o seu caminho — aves, animais, plantas, rochas e fontes de água- e, assim, fizeram com que o mundo existisse através do canto.”

Bruce Chatwinem, The Songlines

A apreensão do mundo como som que se transforma em música, nos fala de uma mutação da percepção humana ao longo de sua trajetória no mundo. Podemos dizer que a música estava lá antes de nós e que em um dado momento, o humano a percebeu nos encadeamentos sonoros dos seus próprios movimentos e da natureza, encarnando-a em uma consciência musical coletiva e intuitiva (Petraglia, 2010). Com isso, uma nova percepção começa a despontar simultaneamente: a percepção do tempo. O mundo é som dentro de um ciclo.

Na história do Ocidente, as raízes dessa apreensão e seu desenvolvimento estão na ancestralidade das culturas grega e judaica. Aqui, nos remetemos a Pitágoras e a Harmonia das Esferas, que de dentro de um silêncio inimaginável para nós, ouvia a vibração dos planetas e chegou a definir a frequência entre eles: segundo Plínio, Pitágoras achava que o intervalo musical formado pela Terra e pela Lua era de um tom; da Lua a Mercúrio, um semitom; de Mercúrio a Vênus, um semitom, de Vênus ao Sol, uma terça menor; de Sol a Marte, um tom, de Marte a Júpiter, um semitom; de Júpiter a Saturno, um semitom; de saturno a esfera das estrelas fixas, uma terça menor. Portanto, a Escala Pitagórica resultante era dó, ré, mib, sol, lá, sib, si, ré. (Koestler,1989). A concepção de tonalidade ainda não existia e surge alguns séculos depois. Nesse momento, o paradigma era a proporção entre as relações intervalares. Podemos supor que o que realmente Pitágoras estava ouvindo eram os harmônicos do movimento celestial?

Para Pitágoras, o número como unidade era o sentido de tudo, assim como a música, uma harmonia capaz de governar o movimento cósmico e o poder de arrancar respostas da profundidade do espírito inconsciente.


“Mas então, no âmago da noite, quando o torpor cobre os sentidos mortais, eu escuto a harmonia da sereia celestial.”
(Milton, em Arcades)


Logo depois, a descoberta dos números irracionais coloca a Irmandade Pitagórica em crise. Um novo estado de consciência sobrevém. As proporções acústicas reveladas pela civilização grega são retomadas e tratadas cientificamente por Johannes Kepler, que estabelece que há, realmente, leis musicais nas orbitas dos planetas. Em seu livro De Harmonice Mundi, (libri V, Linz, 1619) no qual busca alinhar a poesia da humanidade ao raciocínio científico emergente na época, Kepler diz:

De fôlego ao céu e você realmente ouvirá música. Há um Concentus Intellectualis, uma harmonia espiritual que proporciona prazer aos seres puramente espirituais e, de certa forma, ao próprio Deus, assim como os acordes musicais dão prazer aos ouvidos humanos.

E assim, seguimos o caminho para novas percepções e mutações da consciência. Ampliando nossa percepção do tempo, cada vez mais passamos a nos guiar por essa medida. O mundo é som dentro de um tempo medido por nós. Assim como o tempo, as frequências passam a ser determinadas. O conceito de harmonia se transforma e necessita ser regido por leis, bem como em todos os campos das ações e das relações humanas.

Na trilha das descobertas, de novas percepções e desenvolvimento tecnológico, chega-se a uma constatação: o que se entende por som no sentido físico é uma única vibração audível mas, cada som produzido naturalmente, contém outros, segundo leis naturais, que soam ao mesmo tempo de forma muito suave, chamados de harmônicos. O mundo é som em um espaço-tempo, um fenômeno psicoacústico que está além das nossa percepção puramente sensorial. Diz Hermann Helmholtz, em 1857 (Helmholtz in Hamel,1995):

Há, ainda, a participação de uma atividade característica da alma para se chegar da sensação dos nervos até a representação daquele objeto que provocou a sensação.

Completa Hamel:

Para se perceber harmônicos é preciso um tipo muito especial de atenção, caso contrário permanecem ocultos(…) Ouvir o espectro de sons harmônicos, mergulhar na série harmônica natural, é uma meditação sonora para a auto realização, que faz parte de numerosas escolas asiáticas e árabes.


Nas escolas do Oriente estamos em um mundo Uno, não dividido. Música, espírito, matéria, pensamento, razão e emoção fazem parte de um único campo em movimento: o Ser. Dessa perspectiva, a série harmônica é percebida como constitutiva desse Ser, que é vibração em essência, o som potencial, materializado em um corpo físico.



No Brasil, para os Tupy, somos flauta em pé, habitados pelo Avá, a luz que tem sua morada no coração: o corpo som-luz de Ser. Tu significa som e py, acento. Os Tupy falam, também, como nas tradições do Oriente, de sete centros de energia, chamados de nhangá-mirim. O último centro, no topo da cabeça é o centro do “som insonoro”.


 

Aqui, encontramos uma ponte entre Oriente e Ocidente, um mundo não dividido. Hamel aponta: “Segundo a lei da vibração e proporções acústicas da antiga teoria musical grega, um objeto pode ser decomposto por meio de seu som básico específico, quando a vibração básica ou específica se um determinado objeto ou material é conhecida”. Segundo o Livro Tibetano dos Mortos, “cada organismo possui seu próprio grau de vibração, e isso se aplica também a todo objeto inanimado, de um grão de areia a uma montanha, e mesmo a cada planeta e cada sol. Quando este grau de vibração é conhecido, torna-se possível visualiza-lo internamente e assim decompor ou tornar consciente o organismo e a forma”.
 

Amit Goswami, físico e matemático quântico afirma: tudo é vibração, tudo é Onda. Inaugura-se uma nova consciência: aqui e agora, o Universo é onda, colapsado em som. Uma Gestalt se fecha?
 

O Canto dos Harmônicos e outros instrumentos específicos
 

Nas tradições do oriente e nas tradições nativas, são inúmeros os instrumentos que tem a finalidade de destacar harmônicos: A tigelas de metal, dos Tibetanos, o Didgeridoo, dos aborígenes australianos, os cymbalos, a Tambura e o sitar na cultura da Índia, a flauta Jacuí, dos Tupy-Guarani, são exemplos da necessidade de transpor para música aquilo que é ouvido em essência.
 

Uma das práticas mais conhecidas no Oriente é o Canto dos Harmônicos ou Overtone Chanting. Reza a lenda que uma noite, em 1433, o Lama Tibetano JeTzong Sherab Senge teve um sonho revelador. Nele, ouviu uma voz que jamais tinha ouvido: era grave, incrivelmente profunda, um som que não parecia humano. Combinado a esta voz, havia uma segunda, aguda e pura, como a voz de uma criança cantando. Estas duas vozes, totalmente diferentes, tinham a mesma origem, que era ele mesmo. No sonho, JeTzong é instruído a incorporar este canto especial em suas práticas de meditação. Foi–lhe revelado como “um canto que integra os aspectos femininos e masculinos da energia divina, uma voz tântrica que une todos os cantos na rede da consciência universal”. (Jonatham Goldman, Healing Sound).
 

O Canto dos Harmônicos torna audível o espectro natural das frequências que compõem cada som. É uma forma de canto onde se pode cantar simultaneamente uma nota (fundamental) e seus harmônicos, selecionando-os e amplificando-os por meio de uma técnica simples e específica. São altas frequências que flutuam acima do som fundamental emitido pelo cantor. A técnica envolve a criação de uma determinada cavidade acústica dentro da boca, dada pela língua, pelo abaixamento da laringe e o uso de uma sequência de vogais que configura e seleciona harmônicos específicos. Alguns cantores, em especial em Tuva, região da Mongólia, são capazes de cantar de cinco a seis frequências acima da nota fundamental, simultaneamente.

"O Canto dos Harmônicos torna audível o espectro natural das frequências que compõe cada som."

Estudos acadêmicos iniciais sugerem que cantar em geral, mas, principalmente cantar os harmônicos, modula as ondas elétricas do cérebro, leva a uma maior coerência cerebral e amplitude das ondas Alpha e Theta, semelhante aos estados de meditação, abrindo as portas para outros níveis de consciência. Dentro das antigas tradições, acredita-se que cada vogal e cada harmônico vibra em um determinado chackra (Hamel, 1995, pg.148). São altas frequências que ressoam em nosso organismo, em cada centro energético sutil do nosso corpo. Encontramos referências a isto em textos do Budismo Tibetano e entre os Guaranis, que em sua tradição, como dito antes, consideram o humano um Tu-py, ou seja, flauta em pé, afinada a partir dos tons essenciais do ser, tons que participam de todos os seres, assim como a série harmônica compõe todos os sons e cada som é uma determinada composição de harmônicos. Eis a sequência de vogais encontrada em ambas as tradições: Y, U, O, A, E, I. Nesta sequência, cada vogal se refere a um chackra, a partir do chackra da raiz, na base do osso. No sétimo chackra, no topo da cabeça, reside o silêncio ou o “som-insonoro”.(Werá, 1998) .
 

Referências Bibliográficas
 

BERENDT, Joachim-Ernest. Nada Brahma: a música e o universo da consciência. São Paulo: Editora Cultrix, 1986.
FABRE D’OLIVET, Antoine. Música apresentada como ciência e arte: estudo de suas relações analógicas com os mistérios religiosos, a mitologia antiga e a história do mundo. São Paulo: Madras Editora, 2004.

GOSWAMI, Amit, O Universo Autoconsciente — como a consciência cria o mundo material. São Paulo: Aleph, 2007.

GREENE, Brian. O Universo Elegante: supercordas, dimensões ocultas e a busca de uma teoria definitiva. São Paulo: Companhia das Letras,2001
HAMEL, Peter M. O Autoconhecimento Através da Música: Uma nova maneira de sentir e viver a Música. São Paulo: Cultrix, 1989.
JACUPÉ, KakaWerá. A terra dos mil povos: história indígena brasileira contada por um índio. São Paulo: Ed. Fundação Peirópolis, 1998.
KOESTLER, Arthur. O Homem e o Universo. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1989.
PETRAGLIA, Marcelo. A música e sua relação com o ser humano. São Paulo: Ouvirativo, 2010.

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