Dissertação de Mestrado
Cecilia Valentim
Jan 28, 2022
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO INSTITUTO DE PSICOLOGIA
A experiência estética tecida pelo canto no processo social:
Sensibilidade, Tempo e Pertencimento
Cecília Maria Valentim Teixeira Coelho
São Paulo — 2017
Dissertação apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Psicologia.
Área de concentração: Psicologia Social
Orientador: Prof. Dr. Arley Andriolo
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogação na publicação Biblioteca Dante Moreira Leite Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Coelho, Cecília Maria Valentim Teixeira.
A experiência estética tecida pelo canto no processo social:
Sensibilidade, Tempo e Pertencimento / Cecília Maria ValentimTeixeira Coelho; orientador Arley Andriolo. — São Paulo, 2017. 107 f.
Dissertação (Mestrado — Programa de Pós-Graduação em Psicologia.Área de Concentração: Psicologia Social e do Trabalho) — Instituto dePsicologia da Universidade de São Paulo.
Canto
Experiência estética
Fenomenologia
Psicologia social
Educação
Arte
Engajamento
Estética
I. Título.MT825
Dedicatória
Aos meus pais, com imensurável amor e gratidão.
Agradecimentos
Procuro palavras para descrever o que significou a experiência do mestrado para mim, desde o instante em que caminhei pela primeira vez pelos corredores do Instituto de Psicologia da USP em direção ao departamento de pós-graduação em Psicologia Social e do Trabalho, até esse momento, em que finalizo minha dissertação, buscando honrar a confiança em mim depositada. Encontro apenas uma palavra que expressa todos os matizes das profundas transformações e da intensidade dos sentimentos que agora levo comigo, proporcionados por todos os encontros, aprendizados e reflexões que pude vivenciar e assimilar nessa jornada: gratidão.
A começar pelo prof. Arley Andriolo, meu orientador, a quem agradeço profundamente pela confiança, generosidade e paciência que só os bons mestres possuem. Firme em sua orientação, prof. Arley, sempre amorosamente presente e disponível para as minhas dúvidas e indagações, mostrou-me caminhos que foram definitivos para este trabalho acontecer. Acompanhou e apoiou minhas aventuras, entre elas a de viabilizar meu encontro com o prof. Arnold Berleant, autor cuja obra me apresentou e que se tornou fundamental para esse estudo. Aproveito para agradecer ao prof. Marcelo Petraglia pela amizade e confiança com que abriu os primeiros caminhos para a realização deste trabalho ao me convidar para conhecer o LAPA — Laboratório de Estudos em Psicologia da Arte, apresentando-me ao prof. Arley. Minha mais profunda gratidão a todos os participantes da oficina “Viver o Canto” pela disponibilidade, presença, abertura e pela forma generosa com que se engajaram nessa pesquisa e sem os quais ela não teria acontecido.
Ao Serviço Social do Comércio (Sesc) e à equipe do Sesc Pompéia, agradeço fortemente por promover e apoiar a realização da oficina “Viver o Canto”, que se tornou o campo de pesquisa da investigação que fundamentou esta dissertação. Com grande admiração, vinda de longa data, agradeço ao prof. Danilo Santos de Miranda, diretor regional do Sesc-São Paulo, pelo apoio incondicional, pela sensibilidade e pelos ideais humanistas impressos na sua condução frente à organização. Agradeço, também, à Elisa Maria Americano Saintive, gerente do Sesc-Pompéia e à toda sua equipe, principalmente à Cibele Camacho, Larissa Menezes e Soraya Idehama que, cuidadosamente, com entusiasmo e competente dinamismo, acompanharam e ofereceram a estrutura necessária para a realização da oficina. Aos professores Marcelo Petraglia e Marcelo Ribeiro, membros da banca de qualificação, agradeço imensamente pelos questionamentos e valiosas contribuições que deram ao trabalho. Agradeço igualmente aos professores Frayze-Pereira, Arley Andriolo, Wellington Zangari, do PST, e Rogério Costa e Fábio Leão, da ECA, pela devoção ao trabalho que realizam, pelas aulas incríveis e provocadoras, que me abriram para novas perspectivas e paisagens. Muita gratidão aos colegas do LAPA, pelo apoio, pelos encontros instigantes e pelas ricas discussões sobre nosso campo de estudo. À Marinalva Gil, Rosângela Sigaki e Selma Loyola, responsáveis pela secretaria de pósgraduação em Psicologia Social e do Trabalho, pelo cuidado amoroso e orientação confortante nos ritos e trâmites acadêmicos, a Rodrigo Valentim Chiquetto, pelas sugestões e pela cuidadosa revisão e à Ana Luiza Ablas pelas imagens da apresentação final da oficina.
Não existem palavras para expressar a imensurável gratidão e amor que sinto pelo prof. Arnold Berleant que, generosamente, recebeu-me por trinta dias em Castine, EUA, onde mora, oferecendo amorosamente seu profundo conhecimento, provocando questionamentos, discutindo suas ideias sobre arte, música, canto, ambiente e sobre a própria existência como experiência estética e seus desdobramentos sobre as crenças e valores humanos, além de outras questões que de alguma forma estão presentes nos entremeios desse trabalho. O encontro e a convivência com prof. Berleant foi, para mim, uma experiência estética profunda e transformadora, que não só guiou esse estudo como iluminou toda minha vida. Incluo, aqui, meu amor e gratidão à Riva, esposa do prof. Berleant, que me acolheu, igualmente, de forma tão amorosa, com seus almoços e jantares maravilhosos, seu apoio logístico para as compras no supermercado, para as aulas de yoga e para outras pequenas demandas cotidianas, além de me introduzir à comunidade de Castine.
Por fim, quero manifestar meu amor e gratidão ao meu querido companheiro Marcos por seu amor e dedicação a mim, por sua sensibilidade, apoio prático e paciência, e aos meus filhos Ana Luiza, Rodrigo e Bárbara, fontes da minha inspiração.
Resumo
Esta pesquisa tem como objeto de investigação a experiência estética tecida pelo canto como meio para o alargamento da sensibilidade, auto percepção e expressão nos campos pessoal e coletivo, bem como para o senso de pertencimento a uma comunidade. Pautada no método fenomenológico de pesquisa, teve como campo de estudo os participantes da oficina “Viver o Canto”, promovida pelo Sesc-Pompéia e conduzida pela pesquisadora. Fundamentada na experiência proporcionada pela oficina, da compreensão dos relatos dos participantes colhidos em cada encontro em diários de campo especialmente confeccionados para este trabalho, das anotações da pesquisadora/facilitadora e das entrevistas realizadas com os participantes, emergiram os tópicos principais desse estudo: Sensibilidade, Tempo e Pertencimento, assim como seus desdobramentos dentro do campo estético gerado pelo canto. Concluiu-se que esses três tópicos abrangiam a gama de sensações, sentimentos e reflexões levantadas por tal experiência e, a partir deles, a conceituação teórica foi formulada. Os resultados encontrados demonstraram como a experiência estética e o engajamento estético tecidos pelo canto podem ser compreendidos como um caminho para a transformação pessoal e social, bem como para o surgimento e fortalecimento do senso de pertencimento a uma comunidade.
Palavras-chaves: Canto, experiência estética, fenomenologia, psicologia social, educação, arte, engajamento, estética.
Abstract
This research aims to investigate the aesthetical experience woven by singing as a means to enlarge the sensibility, self-perception, and expression, both individually and collectively, as well as to increase the sense of belonging to a community.
Following the Phenomenological research method, its field of study was the workshop “Viver o Canto (Live the Singing) ”, promoted by Sesc-Pompéia (São Paulo) and conducted by the researcher. From the experience provided by the workshop, from the comprehension of the participants´ reports gathered in each session in field diaries made especially for this work, from the notes of the researcher/facilitator, and from the interviews with the participants emerged the main topics of this study: Sensibility, Time and Belonging, as well as their unfolding within the aesthetic field provided by singing.
We have concluded that these 3 topics cover the range of sensations, feelings, and reflection originated from such experience; being the theoretical frame formulated from them. The results show how the aesthetical experience and the engagement woven by singing can be understood as a way to personal and social transformation, and to the emergency and straightening of the sense of belonging to a community.
Keywords: Singing, aesthetic experience, fenomenology, social psychology, education, art, engagement, aesthetic.
Sumário
1. O campo da experiência ………………………………………………………………… 13
1.1. Introdução ……………………………………………………………………………… 13
1.2. O campo de pesquisa ………………………………………………………………….. 15
1.2.1. Objeto e objetivo da pesquisa ………………………………………………… 17
1.2.1. O método de pesquisa …………………………………………………………… 18
1.2.2 A metodologia utilizada nesta pesquisa …………………………………… 21
1.2.3. A estratégia adotada para o levantamento de dados ………………….. 22
1.3. A organização dos dados ……………………………………………………………. 23
1.3.1. As entrevistas ……………………………………………………………………… 23
1.3.2. Os diários de bordo ………………………………………………………………. 26
2. Desvelando os fios da experiência …………………………………………………… 32
2.1. As dinâmicas como facilitadoras para a constituição de um campo
estético favorável para a experiência e o engajamento da sensibilidade ……………….. 34
2.1.1. A condução da facilitadora como tecelã do campo da
experiência…………………………………………………………………………………………………35
2.1.2 A importância do desenvolvimento técnico vocal como meio para a
auto percepção e expressão …………………………………………………………………………. 37
2.2. O repertório: as canções como fios da história nas tramas da
experiência…………………………………………………………………………………………………….41
2.3 O canto coletivo entre gerações: misturando cores, amalgamando vozes
no processo social. ………………………………………………………………………………………… 46
2.4. Alargando o campo da experiência: a apresentação final como partilha e
oferecimento para a comunidade. ……………………………………………………………………. 47
2.4.1. Imagens da apresentação final da oficina “ Viver o Canto”. ………. 48
2.5. Conclusões dos participantes sobre a oficina …………………………………. 55
2.6. E a trama continua… …………………………………………………………………… 56
2.7. Conclusão da compreensão dos dados ………………………………………….. 60
3. A experiência estética tecida pelo canto no processo social: Sensibilidade,
Tempo e Pertencimento …………………………………………………………………………………….. 61
3.1. Experiência estética e sensibilidade ………………………………………….. 62
3.1.1. Qualidades da experiência estética ………………………………………. 66
3.1.2. Sensibilidade e engajamento estético …………………………………… 69
3.1.3. O Ser no engajamento estético proporcionado pela arte por meio
do canto……………………………………………………………………………………………………..71
3.2. As bordas do tempo ………………………………………………………………… 80
3.2.1. O tempo constituído …………………………………………………………… 81
3.2.2. O tempo na experiência estética ………………………………………….. 83
3.2.3. O tempo da memória …………………………………………………………. 88
3.3. O senso de pertencimento a si mesmo e a uma comunidade ………… 91
4. Considerações finais: Sensibilidade, tempo e pertencimento na
constituição de uma comunidade estética tecida pelo canto ……………………………………. 96
5. Referências Bibliográficas ……………………………………………………………. 103
1. O campo da experiência
1.1. Introdução
Da entrada do portão principal do Sesc-Pompéia é possível ouvir os ecos metálicos da antiga fábrica de tambores, misturados aos ruídos do trânsito da Rua Clélia. Reinventada pela arquiteta Lina Bo Bardi, a antiga fábrica, transformada em local de encontros, arte e educação, se tornou um marco cultural da cidade de São Paulo. O espaço aberto, os tijolos de barro vermelho à vista e o pé direito alto trazem a sensação mista de amplitude e acolhimento. Descendo pelo corredor interno, é possível visualizar os espaços convertidos em áreas de convivência, exposições e biblioteca. No final do corredor, do lado direito, está o galpão das oficinas, dividido em pequenas salas de meia parede de tijolos de cimento, onde acontecem os cursos de artes manuais. Tecidos produzido pelos alunos de tear, suspensos do teto, flutuam no caminho até o elevador, conferindo uma atmosfera diáfana e incomum. Ao sair do elevador no primeiro andar, depara-se com a “sala 1” das oficinas, onde acontecem os encontros da oficina “Viver o Canto”. O encontro começa na ante-sala, um pequeno espaço, relativamente reservado, entre o elevador e o acesso as escadas. Embora seja um espaço público, nesse horário raramente transitam outras pessoas além dos participantes da oficina. Um círculo se forma na medida em que chegam. No círculo, são solicitados a fechar os olhos, a sentir o contato dos pés com o chão e a despertar a dimensão da audição para a escuta dos sons ao redor. Em seguida, pede-se que foquem a atenção nos movimentos internos do corpo, no pulsar do coração, na respiração, nas sensações e sentimentos que surgem, nas imagens evocadas pela experiência, ampliando a escuta interna. Nesse ponto, são estimulados a traduzir essa experiência por qualquer som possível com a voz e a perceberem a vibração do som em seus corpos. São chamados, então, a se abrirem para o canto que criam naquele instante, para os outros sons/vozes que surgem no espaço no mesmo momento e a perceberem a paisagem sonora que gradualmente é tecida entre todos. Do encontro sonoro transitasse para algum novo canto ou canção do repertório proposto pela facilitadora e, mantendo esse canto, são convidados a abrir os olhos, trazendo a dimensão da visão, atentos ao que percebem. Mais uma vez, é pedido que reconheçam o estado do corpo, o entorno e a presença do outro. Envolvidos por essa atmosfera caminham, cantando, para a sala principal.
A sala “1” é destinada a múltiplas atividades. Ampla e arejada, com cores neutras, possui algumas janelas voltadas para a rua e outras para o galpão das oficinas, que contribuem sonoramente com seus rumores para a paisagem do ambiente. Materiais de outras oficinas são guardados na sala, criando uma atmosfera visual um pouco desordenada, mas sem prejudicar o espaço necessário para a realização da atividade. Cadeiras estão dispostas em forma de círculo a pedido da facilitadora. As cadeiras criam um contorno, delimitam um novo espaço, que é ocupado pelos participantes. Dentro desse espaço, ainda em círculo e em pé, cantam o canto iniciado na ante-sala. Sempre cantando, são conduzidos a movimentar seus corpos de diversas maneiras: articulando, esticando, alongando, desenhando movimentos no espaço, dançando, brincando. A facilitadora propõe uma nova canção, específica do repertório das danças circulares. Pede que fechem os olhos e que cada um sinta a nova canção, abrindo a escuta para o corpo inteiro. Na medida em que se torna clara, um a um começa a canta-la e, em pouco tempo, todos estão cantando. Mantendo o canto e os olhos fechados são convidados a perceber algo que desejam despertar dentro de si mesmos nesse dia. Logo depois, é pedido que cada um entoe, com uma palavra, seu desejo enquanto os outros continuam a cantar. Em seguida, seguindo os passos da orientadora, dançam no círculo a dança que compõe a canção, que já está totalmente assimilada. Nos movimentos, partilham sorrisos, toques, olhares. Depois de algum tempo, ao seu sinal, recolhem o canto e o movimento e todos se sentam. Um silêncio quente ocupa o ambiente. Agora sentados, com os pés firmes no chão, a coluna erguida e atentos ao corpo, seguem a facilitadora que os orienta em práticas de desenvolvimento vocal, onde ampliam a respiração, entoam vogais e frases melódicas, ouvindo a si mesmos e ao outro, conscientes do envolvimento de todo o organismo na emissão da voz. Das frases melódicas, partem para o canto do repertório formado pelas canções trazidas por cada um. Lembranças e emoções emergem. Emocionados, cantam partilhando suas histórias, reconhecem-se uns nos outros. Novamente em pé, cantam uma última canção e, cantando, despedem-se com abraços, já a espera do próximo encontro.
Essa é uma descrição geral da paisagem dos encontros. O início se dava na ante-sala com a intensão de se criar um espaço ritual, de transição entre o cotidiano e um momento incomum na constituição de um campo estético favorecido pelo canto, pela da escuta de si mesmo, da sua voz e da relação com o outro, que gerava a possibilidade para uma outra percepção, distinta daquela experiência da vida cotidiana.
Ao entrar na sala, outras dinâmicas eram realizadas, de acordo com a percepção e análise da facilitadora sobre o processo do grupo. Em cada encontro, novas dinâmicas eram trabalhadas, buscando favorecer a constituição do campo estético e o aprofundamento da experiência.
No primeiro encontro foi feito o convite para a participação voluntária nessa pesquisa e todos concordaram prontamente. Propôs-se um tema para tecer o repertório, como leitmotiv para a experiência compartilhada socialmente na oficina: o canto dos antepassados. O propósito do tema, escolhido pela facilitadora, foi trazer algo de valor que mobilizasse o participante a entrar em contato com a trilha sonora da sua experiência de vida, de uma perspectiva integrada à sua experiência pessoal. A partir do tema, foram realizadas algumas dinâmicas específicas de imaginação ativa e imagens sonoras que possibilitaram, a cada participante, a conexão com algum canto ou canção apreendida dos seus ancestrais, que era ouvida ou cantada por ele. Tal canção foi trazida para ser compartilhada com o grupo. Assim, conferiu-se um sentido e um valor aos encontros e constituiu-se um repertório significativo, rico em lembranças, memórias e emoções.
1.2. O campo de pesquisa
A investigação ocorreu na oficina intergeracional Viver o Canto, promovida pelo Sesc-Pompéia, unidade que compõe a rede Sesc (Serviço Social do Comércio) em São Paulo, instituição reconhecida por oferecer atividades educacionais, culturais e de lazer de cunho social, abertas a qualquer pessoa. A oficina intergeracional Viver o Canto teve início em 2010 e surgiu da necessidade do Sesc-Pompéia de transformar uma atividade convencional de canto coral para a terceira idade em um trabalho intergeracional que oferecesse ao participante, por meio da atividade artística do canto, uma prática que envolvesse bem-estar, autoestima, auto percepção, expressão e senso de pertencimento a uma comunidade. Tratavam-se de grupos formados por pessoas entre 20 e 80 anos, com formações e atividades heterogêneas, com e sem experiência anterior na vivência do cantar. O grupo pesquisado se reuniu no primeiro semestre de 2014 e contou com 27 participantes pelo período de três meses. Foram 12 encontros, uma vez por semana, aos sábados, e tiveram a duração duas horas cada. Foram conduzidos pela própria pesquisadora, que acumulou o papel de facilitadora do processo. A instituição que promoveu a oficina, deu total liberdade à facilitadora para que conduzisse a atividade adotando os recursos, método e dinâmicas que considerasse pertinentes para sua realização. Durante o processo foram trabalhados: os parâmetros do som e da música, a escuta consciente¹, o desenvolvimento vocal pessoal e coletivo, jogos e práticas de livre improvisação², percepção corporal, imagens sonoras3 e memória, que visavam o alargamento da auto percepção e da expressão. Como já dito, cada participante foi convidado a levar uma canção que fizesse parte de suas lembranças, especificamente da sua relação com seus antepassados. Desse material surgiu o repertório cantado pelo grupo. O resgate e o compartilhar de uma trilha sonora significativa da história pessoal de cada participante possibilitou a geração de um campo de confiança e intimidade. Constituiu-se, assim, um trabalho coletivo facilitado pela orientadora, que culminou em uma performance artística, aberta aos convidados dos participantes e ao público do SESC Pompéia. Três características básicas da oficina configuraram a constituição do grupo de participantes:
1. Gratuita - possibilitou que qualquer pessoa pudesse ter acesso a ela, não havendo seleção prévia.
1 Escuta consciente — É a escuta cuja atenção está deliberadamente no objeto sonoro, permitindo uma maior compreensão do ouvinte sobre a coisa ouvida, ao mesmo tempo em que se tem a consciência de que o ouvinte e o ouvir compõem uma realidade única.
2 Segundo Rogério Costa (2013) “a improvisação livre não é um “estilo” ou uma tendência composicional. Trata-se de uma prática musical experimental, empírica e coletiva que não se submete diretamente a nenhuma tendência estética específica, mas que dialoga com várias das práticas musicais contemporâneas. Vale ainda salientar que a livre improvisação não é uma manifestação musical geograficamente delimitada e que é possível encontrar músicos que se dedicam a este tipo de prática em vários países da Europa, nos Estados Unidos e em vários países da América Latina, incluindo o Brasil, que apresenta atualmente uma cena bastante diversificada e ativa.”.
3 Aqui, o termo imagens sonoras refere-se a práticas que evocam as trilhas sonoras de imagens/cenas relativas a eventos significativos da vida do sujeito, que podem ser traduzidas e manifestadas pela voz na forma de sons, melodias ou canções.
2. Inter geracional — abrangeu 27 pessoas, entre 30 e 86 anos.
3. Aconteceu nas dependências de uma instituição reconhecidamente voltada para ações culturais e de lazer, e a pedido desta.
Essas características compuseram um grupo heterogêneo, formado por pessoas de diferentes idades, vindas de diferentes contextos sociais, com um interesse em comum: cantar. A gratuidade ampliou o acesso à oficina e permitiu que pessoas de diferentes níveis socioeconômicos e culturais pudessem se encontrar. O número de participantes foi delimitado pelo número de vagas e não houve exigência de qualquer experiência prévia ou avaliação dentro de qualquer parâmetro de qualidade vocal pré-estabelecido.
Todos foram bem-vindos com suas qualidades e características pessoais. A proposta intergeracional contribuiu para a integração entre gerações na troca de saberes e experiências de vida, considerando que todos possuem algo de valor para compartilhar.
Em uma roda de apresentações no primeiro encontro, pôde-se constatar que algumas pessoas estavam ali por curiosidade e não sabiam o que esperar do trabalho; outras intentavam trazer mais alegria para o cotidiano, resgatar o sonho antigo de cantar, encontrar uma atividade de lazer e melhorar a saúde e outras, ainda, buscavam um canal de expressão, autoconhecimento e desenvolvimento vocal. Algumas pessoas foram à oficina por já conhecerem o trabalho desenvolvido pela facilitadora-pesquisadora em outros contextos. Dos vinte e sete participantes, vinte chegaram ao final dos encontros.
As desistências deveram-se a fatores pessoais, tais como problemas de saúde e mudança de bairro. É importante ressaltar que os participantes que não puderam concluir a oficina justificaram sua ausência e todos eles quase chegaram ao final.
1.2.1. Objeto e objetivo da pesquisa
Este estudo tem como objeto de investigação o canto como meio para o alargamento da sensibilidade, auto percepção e expressão nos campos pessoal e coletivo.
É objetivo deste estudo compreender o canto como experiência estética no alargamento da auto percepção, do entendimento de si mesmo e do outro, e do senso de pertencimento a uma comunidade no processo social, no contexto da oficina “Viver o Canto”. Assim:
Investiga-se a arte do canto como experiência estética que considera o indivíduo como sujeito da experiência sensível e, portanto, como artista gerador e receptor da própria experiência.
Pretende-se compreender como, por meio do canto, ao engajar-se em um campo estético sensível, o indivíduo pode desenvolver uma maior compreensão sobre si mesmo, do uso do corpo e de suas funções, da sua história, da vivacidade dos sentimentos que o constituem e da sua expressão. Busca-se conhecer de que modo o canto realizado coletivamente se torna integrador da comunidade, possibilitando uma maior consciência sobre o outro e o agir em conjunto, gerando uma percepção de unidade que ultrapassa as diferenças que possam haver entre indivíduos. Finalmente, pergunta-se se é possível, na experiência estética tecida pelo canto, gerar uma nova escuta e expressão do sujeito no ambiente que o cerca, que o permita estabelecer novas conexões e relações na vida cotidiana.
1.2.1. O método de pesquisa
O método de pesquisa adotado para essa investigação está pautado na
fenomenologia e no método fenomenológico:
O método fenomenológico tem dupla utilidade aqui, não só por sua rigorosa exposição e suspenção das hipóteses, mas também pelo foco na experiência perceptiva como ponto de origem da investigação. É aqui que a fenomenologia compartilha um terreno comum com a estética, que é, como devemos rapidamente observar, enraizada na experiência perceptiva. O método fenomenológico fornece um procedimento purgativo e uma direção para qual a investigação estética pode prosseguir. (BERLEANT, 2010, p.22)
A origem da palavra fenomenologia deriva de duas palavras de raiz grega: Phainomenon, que é aquilo que se mostra a partir de si mesmo, e Logos, ciência ou estudo (Moreira, 2004). Logo, etimologicamente, fenomenologia é a ciência do fenômeno, daquilo que se revela por si mesmo. Não obstante a palavra fenomenologia ter mais de um sentido nas ciências em geral e a ideia de fenômeno ser de compreensão aberta ao senso comum, com múltiplos significados, ao nos remetermos a sua etimologia, nos aproximamos do conceito que a fez surgir como ciência filosófica. O movimento fenomenológico, no âmbito da filosofia, surgiu com Edmund Husserl (1859–1938). Matemático e filósofo, Husserl foi o primeiro a conceber e divulgar a fenomenologia como ciência das estruturas e essências da consciência pura; o primeiro a propor o método fenomenológico de investigação filosófica (Moreira, 2004).
Segundo Moreira (2004), para Husserl, a fenomenologia propunha uma forma totalmente nova de fazer filosofia, colocando em foco a experiência vivida, em contato com as “próprias coisas”, naquilo que são em essência e que é dado à consciência, compreendendo essência como a maneira ou característica do aparecer de um dado fenômeno e consciência não como substância, “mas uma atividade constituída por atos (percepção, imaginação, volição, paixão) com os quais se visa algo” (Moreira, 2004). Assim sendo, a fenomenologia deve ser entendida como o estudo do fenômeno e das essências daquilo que se manifesta na consciência. Trata-se de uma ciência que está sempre em movimento, gerando tendências e ramificações.
Tais ramificações, fundadas por pensadores alinhados ao mundo fenomenológico, agregaram outras perspectivas no que tange ao Ser e a incorporação da existência na experiência humana. Nesse trabalho optou-se por considerar a compreensão de Merleau-Ponty sobre a fenomenologia, descrita em seu livro Fenomenologia da Percepção (2014). Para Merleau-Ponty, fenomenologia é:
1) O estudo das essências. E todos os problemas, segundo ela, resumem-se em definir essências: a essência da percepção, a essência da consciência, por exemplo.
2) É também uma filosofia que repõe as essências na existência, e não pensa que se possa compreender o homem e o mundo de outra maneira senão a partir de sua facticidade.
3) É uma filosofia transcendental que coloca em suspenso, para compreende-las, as afirmações da atitude natural, mas é também uma filosofia para a qual o mundo já está sempre “alí”, antes da reflexão, como uma presença inalienável, e cujo esforço consiste em reencontrar esse contato ingênuo com o mundo, para dar-lhe, enfim, um estatuto filosófico.
4) É a ambição de uma “ciência exata”, mas é também um relato do espaço, do tempo, do mundo “vividos”.
5) É a tentativa de uma descrição direta de nossa experiência tal como ela é, e sem nenhuma deferência a sua gênese psicológica e às explicações causais que o cientista, o historiador ou o sociólogo possam dela fornecer (MERLEAU-PONTY, 2014, pp. 1–2). Merleau-Ponty (2014) afirma: “É em nós mesmos que encontramos a unidade da fenomenologia e seu verdadeiro sentido”. Acerca do mundo fenomenológico, explica:
A aquisição da Fenomenologia foi sem dúvida ter unido o extremo subjetivismo ao extremo objetivismo em sua noção de mundo ou da racionalidade. A racionalidade é exatamente proporcional às experiências nas quais ela se revela. Existe racionalidade, quer dizer: as perspectivas se confrontam, as percepções se confirmam, um sentido aparece. Mas ele não deve ser posto à parte, transformado em Espírito absoluto ou em mundo no sentido realista. O mundo fenomenológico é não o ser puro, mas o sentido que transparece na intersecção das minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem de umas nas outras; ele é, portanto, inseparável da subjetividade e da intersubjetividade que formam sua unidade pela retomada de minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, da experiência do outro na minha. (MERLEAU-PONTY, 2014, p.19)
E conclui: “A fenomenologia só é acessível a um método fenomenológico”. (MERLEAU-PONTY, 2014, p.2) Desde seu surgimento, a fenomenologia encontrou na psicologia um campo favorável para seu desenvolvimento dentro das ciências humanas e sociais, para além do âmbito da ciência filosófica:
A fenomenologia é um dos movimentos filosóficos mais importantes do século XX que, desde o seu início, guardou relações de intimidade com a recém-criada psicologia. Será através dessa mesma psicologia que o método fenomenológico — método de estudo da Fenomenologia – irá disponibilizar -se para o restante das disciplinas de cunhos humanos e social. (MOREIRA, 2004, p.60).
Sobre o método fenomenológico emprestado à pesquisa empírica, Moreira (2004) nos lembra que Husserl não especificou no que consistia o método, o que permitiu muitas variantes. Dentro do campo da psicologia fenomenológica, o autor aponta Van Kaan como o primeiro a propor um método fenomenológico para a pesquisa, e Colaizzi e Giorgi como os mais frequentemente referenciados. No entanto, observa que há bastante semelhança nas estratégias adotadas, com poucas variações, principalmente no que diz respeito a coleta de dados e a apresentação dos resultados da pesquisa, para qualquer que seja o autor escolhido pelo investigador. Entre as diversas interfaces da fenomenologia com a psicologia social, esta pesquisa situa-se em um grupo de trabalho que focaliza a experiência estética. Procedendo aos estudos não apenas da arte, mas à vida cotidiana (ANDRIOLO, 2007).
1.2.2 A metodologia utilizada nesta pesquisa
Definidos os objetivos e o campo de atuação, a investigação fundamentou-se na experiência proporcionada pelo estudo de campo, de acordo com os pressupostos estabelecidos anteriormente. Optou-se por adotar os seguintes passos metodológicos para a coleta de dados, sua análise e conclusões:
a. Entrevista com os participantes
b. “Diários de Bordo” (cadernos de campo) distribuídos para cada participante
c. Anotações das observações da pesquisadora sobre o processo
d. Compreensão dos dados obtidos
e. Retorno aos participantes, indagando sobre os resultados obtidos.
Deve-se mencionar que esta metodologia vem sendo desenvolvida junto ao LAPA (Laboratório de Pesquisas em Psicologia da Arte), no âmbito da Faculdade de Psicologia da Universidade de São Paulo, e foi aplicada por Petraglia em sua tese de doutorado, defendida em 2015. Voltada para a experiência do canto e a noção de repertório, buscou-se adequá-la às características especificas e necessidades dessa investigação, no que diz respeito à elaboração e escolha das questões que foram formuladas para as entrevistas, ao modo de condução e ao método abordado na oficina, com o propósito de extrair da experiência os tópicos e questões que nortearam este trabalho. Além disso, incluiu-se o retorno aos participantes após dois anos, como estratégia para abarcar a compreensão do processo vivido de forma mais consistente.
1.2.3. A estratégia adotada para o levantamento de dados
Levando em conta as características do campo e a metodologia escolhida, foi oferecido um “diário de bordo” para cada participante, para que ele, ou ela, anotasse suas experiências, percepções, sentimentos e reflexões do seu processo na oficina, ao final de cada encontro. Não houve qualquer interferência ou sugestão da facilitadora para esse momento. A única orientação foi para que registrassem o que quisessem sobre o encontro. Considera-se importante destacar que os “diários de bordo” foram especialmente confeccionados por mulheres integrantes do “Projeto Tear”, um serviço público de Saúde Mental constituído por oficinas de trabalho artesanal para pessoas em situação de sofrimento psíquico, tendo sido oferecidos por uma participante da oficina, funcionária da organização, no primeiro dia do curso. Pode-se observar que o fato de o caderno de campo ter sido feito especialmente para os participantes imprimiu um maior valor a ele e trouxe a compreensão da possibilidade de trabalhos diferentes e aparentemente distantes se encontrarem e colaborarem entre si.
Além disso, foi feita uma entrevista individual com questões específicas elaboradas pela pesquisadora, com a finalidade de coletar os seguintes dados: idade, escolaridade, contexto de vida, experiência com o canto e com a música, o porquê da escolha da atividade, suas expectativas em relação ao trabalho, e frequência em outras atividades na instituição. Também foi deixado um espaço em branco para que a pesquisadora pudesse registrar alguma outra informação que o participante considerasse relevante. As entrevistas foram realizadas durante o período em que a oficina foi realizada.
A pesquisadora, como facilitadora da oficina, fez suas próprias anotações, que possibilitaram um olhar para cada participante, uma compreensão acerca do movimento coletivo gerado pelo canto e para sua autorreflexão como pesquisadora e facilitadora.
Como já assinalado, passados quase dois anos, alguns participantes foram novamente contatados e convidados a relatar se e como a experiência continuava viva em sua percepção, expressão e ações diárias.
1.3. A organização dos dados
Com as entrevistas e os cadernos de campo em mãos, foi feita a transcrição dos registros para a realização da compreensão dos dados. As transcrições mantiveram o modo como as narrativas foram escritas pelos participantes. Em alguns casos foram feitas modificações para facilitar a leitura, mas mesmo os erros gramaticais foram mantidos visando manter a originalidade de cada texto.
1.3.1. As entrevistas
Como fonte de informações básicas sobre os participantes, como dito anteriormente, as entrevistas buscaram levantar o contexto de vida, seu dia-a-dia, os interesses pessoais e as intenções da pessoa ao se inscrever na oficina. As informações levantadas demonstraram a heterogeneidade e a constituição de um grupo fértil para a troca de saberes e experiências entre seus componentes por sua diversidade socioeconômica, cultural e geracional. Trouxeram uma maior clareza com relação às expectativas dos participantes ao trabalho a ser desenvolvido e aos motivos da escolha em participar da oficina Viver o Canto. Como demonstrado por alguns trechos selecionados de alguns participantes, também explicitam o encontro de gerações e sua diversidade. Perguntados sobre qual a expectativa em relação a oficina, responderam:
Melhorar o meu interior, dar mais alegria aos meus dias, sentir prazer pela vida através do canto. (Maria Eulália, 74 anos)
Aprender mais e melhor sobre música, aproveitar o tempo coma a música. (Leônidas, 86 anos)
Perceber melhor o caminho do meu canto e da minha voz em mim. (Gabi, 39 anos)
Eu sinto que tenho que desenvolver a técnica. Utilizar tudo que você ensinar para melhorar a utilização da voz, porque eu sei da minha dificuldade de colocar corretamente a voz. Não nasci com facilidade de soltar a voz e, também, de ficar cantarolando. É uma vontade mais recente de fazer algo que me preenche. (Satiko, 62)
Cantar e transformar. Deixar um pouco de mim, levar um pouco do outro. (Lícia, 31 anos)
Eu sinto um chamado para o canto como ferramenta de cura para mim e também quero adquirir conhecimentos para utilizar o canto profissionalmente. (Beth, 52 anos).
Sobre porque escolheu essa atividade:
Porque no meu percurso percebi, já algum tempo, que tenho uma dificuldade para cantar. Sinto que minha voz fica presa, mesmo quando falo e chaga ao mundo com 10% da sua potência. O fato de ser ministrada pela Cecília Valentim me chamou fortemente, pois participei de uma vivência com ela anos atrás, quando pude perceber a potência do trabalho. (Gabi, 39 anos)
Porque sempre gostei de cantar e me sinto bem de estar envolvida no canto. (Cris, 41 anos)
Porque achei uma oportunidade interessante para entrar em contato com a música e minha voz. (Manu, 39 anos)
Pelo fato de já ter feito a oficina no ano passado. (Mauro, 58 anos)
Eu estava buscando um espaço que pudesse aprender ou reaprender a soltar a minha voz. Era importante, também, ser um espaço coletivo e reconheci esta oficina como este lugar. (Julia, 30 anos)
Porque gosto muito de cantar e os funcionários do SESC mandaram. (José, 75 anos)
Porque faz bem. Para mim, o canto é meu remédio. (Giuseppe, 74 anos)
Sobre sua relação com a música e com o canto:
Com 14, 15 anos comecei a ouvir música no rádio, no circo. (Lori, 60 anos)
Começou a ter contato em 2000. Faz canto e violão. A Família tinha um salão de baile-forró. (João, 71 anos). (Resposta redigida pela pesquisadora, por dificuldades do entrevistado)
Desde criança cantamos no Natal. Depois, fiz iniciação musical no CLAM (Flauta e Piano), havia pouco canto. No colégio fiz dois anos de coral. Há tempos não entrava em contato novamente com o canto. Sempre penso em tocar um instrumento. Talvez ele seja a minha voz. (Manu, 39 anos)
O meu primeiro contato com o canto foi através de uma oficina de canto coral aqui mesmo no SESC-Pompéia, no ano de 2009. De lá para cá, tenho participado praticamente de todas as oficinas voltadas para o canto. (Mauro, 58 anos)
Comecei em bar, serestas com os amigos em 1950. (José, 75 anos)
Desde o berço minha mãe toca violão e me iniciou na boa música brasileira. Há quatro anos faço aula de canto. Há um ano iniciei estudo de Harmonia musical. (Lícia, 31 anos)
Por se tratar de um grupo Inter geracional, composto em parte por idosos acima dos 70 anos, também se buscou saber sobre as limitações físicas dos participantes que, evidenciadas, contribuíram para o planejamento e realização da oficina. Foram relatados problemas como hipertensão arterial, surdez, artrose, transtorno autoimune, depressão, fibromialgia, narcolepsia, stress, problemas de coluna. Alguns relatos espontâneos posteriores apontam a diminuição dos problemas de saúde como resultado do trabalho realizado na oficina, de acordo com a percepção dos participantes.
Como exemplos de entrevista completa, seguem as transcrições abaixo, onde “P” refere-se à pesquisadora e “C, ao cantante. Os exemplos foram especificamente escolhidos por evidenciarem a polaridade nas diferenças quanto à faixa-etária, contexto social, formação acadêmica, expectativas, momento de vida, que fizeram parte da constituição do grupo e do processo social instaurado pela oficina. Os nomes originais dos participantes foram alterados, obedecendo ao acordo de anonimato.
Transcrição 1:
Entrevista individual: Maria Eulália Idade: 74 anos Natural de: Portugal Escolaridade: ensino médio Profissão: aposentada.
P: Qual seu contato com o canto e com a música?
C: Sinto que é algo novo para mim. Eu nunca tinha feito aula de canto.
Está sendo uma grande experiência. Muito prazerosa.
P: Como soube da oficina Viver o Canto?
C: No SESC Pompéia, com a Cristiane do têxtil tear.
P: Porque escolheu essa atividade?
C: Por vontade de conhecer algo mais na minha vida.
P: Qual sua expectativa?
C: Melhorar o meu interior, dar mais alegria aos meus dias, sentir prazer pela vida através do canto.
P: Você tem algum problema de saúde?
C: Sim, artrose, pressão alta e colesterol alto.
P: Você costuma frequentar as atividades do SESC Pompéia?
C: Sim, quando tem alguma coisa que me interessa, por exemplo, o tear e o tricô.
Outras observações, colhidas pela pesquisadora durante a entrevista: Maria Eulália afirma que vir para a oficina trouxe incentivo para sua vida.
Transcrição 2:
Entrevista individual — Lícia Idade: 31 anos Natural de: São Paulo Escolaridade: superior Profissão: Professora de artes
P: Qual seu contato com o canto e com a música?
C: Desde o berço. Minha mãe toca violão e me iniciou na escuta da boa música brasileira. Há quatro anos faço aula de canto. Há um ano iniciei estudo de Harmonia Musical
P: Como soube da oficina Viver o Canto?
C: Através de um amigo no Facebook
P: Por que escolheu essa atividade?
C: Para agregar conhecimento e experiência com diferentes grupos e formas de expressão.
P: Qual a sua expectativa?
C: Cantar e transformar. Deixar um pouco de mim, levar um pouco do outro.
P: Você tem algum problema de saúde?
C: Não.
P: Você costuma frequentar as atividades do SESC Pompéia?
C: Sim. Shows, teatro, apresentações abertas, yoga, piscina, etc…
Outras observações, colhidas pela pesquisadora durante a entrevista: Nenhuma observação
1.3.2. Os diários de bordo
Os diários são, de fato, a fonte de sustentação desta pesquisa. Mais do que simples descrições, são a narrativa da experiência estética de cada componente do grupo. Relatam as impressões, sensações, sentimentos e reflexões do participante. Recheados de emoções e de uma narrativa bastante pessoal, contam como cada um percebeu e compreendeu a experiência proporcionada pelos encontros. Como ponto de partida, em uma primeira análise, os relatos foram separados em três categorias principais, previamente estabelecidas no projeto de pesquisa: auto percepção, expressão e o sentimento de pertencer a uma comunidade. Na medida em que os dados foram sendo compreendidos, entendeu-se que ao separá-los em categorias tão abrangentes e definidas, corria-se o risco de perder a totalidade da experiência descrita. Por isso, todo o cuidado foi fundamental no sentido de buscar preservar sua unidade, revendo a análise e permitindo que novas categorias, por sí mesmas, emergissem dos relatos. Além disso, considerou-se que os próprios diários são a incorporação da experiência estética em si, não só naquilo que descrevem, mas em como é feita a descrição.
Podemos verificar nos diários a forma como a experiência foi incorporada em poemas, desenhos e frases que revelam o ser estético, sensível e engajado em cada participante.
Abaixo, trechos selecionados de algumas transcrições dos diários de bordo que exemplificam esse processo:
Cantar para mim é me realizar. Meu sonho quando era adolescente era ser cantora. Eu adorava cantar com meu pai que tocava violão. Hoje, cantando a música ‘’tristeza do Jeca’’, voltei a minha adolescência. Hoje, nesta aula, adorei quando a música ‘’se esta rua fosse minha’’ foi cantada em ritmo diferente.
Adoro esses momentos que passo aqui com meus colegas, interagindo de corpo e alma e soltando a minha voz. A aula é muito bem conduzida e fico muito à vontade. Conto os dias para que chegue logo o sábado. Saio daqui em estado de graça, cantando pela rua (…) A cada dia me sinto melhor nesse ambiente. As músicas me trazem lembranças e eu vou recuperando partes da minha vida que eu havia esquecido. Também o fato de interagirmos uns com outros me traz um sentimento de fraternidade. Essa troca me realiza e me auxilia a ser uma pessoa melhor. Amo participar! (Neide, 70 anos)
Essas vivências de canto me ajudam a estar em contato profundo com minhas emoções. Perceber que o grupo também vive e sente isso me coloca em igualdade de condições com os colegas, pois, cada um a seu modo, está tentando lidar com seus sentimentos, suas emoções. Nossa condição humana nos une no canto. Mas ao mesmo tempo, aquilo que há de mais belo, mais promissor, mais lúdico e cheio de esperança, através do canto, insiste em ganhar espaço…por dentro, por fora…por todos os lugares. (Monique, 46 anos)
Esse encontro me trouxe muita saudade da minha mãe. Ela sempre foi uma pessoa contente e continua sendo um ser musical. Percebo que a cada encontro abrem-se “portais” de lembranças que me emocionam muito. Do início para o fim do encontro vou me abrindo num crescente. E a abrindo para as lembranças e também para as pessoas do grupo. Hoje tive uma descoberta com a minha respiração. Encontrei um ponto em que a voz fluiu sem esforço. Foi muito bom! (Julia, 30 anos)
Senti fisicamente a vibração do meu canto (no peito). Me senti UNIDA (LITERALMENTE DE VERDADE) com a pessoa do meu lado enquanto cantávamos. Por um momento estivemos no mesmo lugar, numa única vibração. Minha percepção se abre a cada dia. Senti a vibração do canto da Cecília, acho que estamos na mesma vibração. Traduz o que é paz. Hoje foi muito rápido, não vi o tempo passar. Que pena que está no fim, o que eu vou fazer depois? Como faço para continuar? Sinto-me bem, animada e principalmente ligada aos companheiros. Sinto uma onda quente passando e ligando todos nós. (…). É muito bom criar junto com os outros, é muito bom cantar. Lava a alma. Obrigada Cecília! Sou muita afortunada por ter encontrado você! Que pena! Que pena! Que pena! Por hora… Só por hora… acabou! O que aprendemos e vivemos aqui não acaba, não tem fim. Está em mim, está em todos nós que tivemos esta experiência maravilhosa. Foi mágica pura! Hoje estou em estado de graça! Sintome unida com todos os companheiros e com os amigos e família deles e meu. Obrigada Cecília! Obrigada! Obrigada! Obrigada! (Regiane, 60 anos)
2. Desvelando os fios da experiência
Na medida em que o estudo foi amadurecendo, os pressupostos anteriores foram revistos e os conceitos, alargados. Novos tópicos e categorias emergiram a partir da compreensão das narrativas dos participantes. Pôde-se verificar que a auto percepção, a percepção do outro, a auto cognição e a capacidade de expressar-se compunham todos os relatos, bem como diversas percepções do tempo e espaço, que revelaram o envolvimento ativo e engajado do participante na oficina. Verificou-se, igualmente, que os sentimentos de pertencimento ao grupo, o vínculo com a facilitadora, o engajamento e os valores relacionados ao campo estético seguiram uma linha crescente de aprofundamento, confiança e envolvimento, do primeiro ao último encontro, como mostram os relatos de Valéria (62 anos):
10/05/2014
A música sempre foi para mim agradável. A oportunidade de estar participando desta atividade caiu como uma benção: ouvir e cantar músicas que estavam na memória, porém guardadas e reviver as coisas do passado de uma forma gostosa.
17/05/2014
Os sábados são bem esperados. Durante a aula brotam muitos sentimentos, hoje em especial o sentimento de ternura quando cantamos: Nessa rua, nessa rua existe um bosque… São sentimentos guardados que afloram, emocionam. Muitas vezes dá vontade de chorar, ainda mais para mim que tenho essa dificuldade.
24/05/2014
O sábado mais uma vez foi bastante esperado. Nessa semana por estar fazendo quimioterapia cancelei tudo que tinha que fazer, por não estar me sentindo tão bem, menos a aula da Cecília. Não me arrependi. Volto com outra expressão renovada para casa. Hoje notei, com mais detalhes, as letras das músicas e o que elas dizem.
31/05/2014
Estou cada vez mais ‘’alimentada’’ a medida que participo. Me pego cantarolando no ponto de ônibus e até dando uns passinhos no ritmo da música. Sinto-me mais integrada, mais bem-humorada, mais harmonizada; e porque não dizer mais “solta”. Só pode dizer que faz um bem danado…. Essa semana assistindo um programa de TV, apareceu uma cantora da minha época, que ganhou um festival com o músico Luciano. E frase que fez muito sentido da letra da música é: “abrace esta cantiga’’…Acho que é isto o que estamos fazendo aqui.
07/06/2014
Bem, o que posso dizer é que esses encontros têm trazido muitos benefícios. De repente quando estou fazendo minhas caminhadas diárias lembro-me de músicas (e letra também), que já estavam esquecidas na memória. Quanto a aula, me sinto integrada, cantando com todas as pessoas, por que, apesar de gostar muito de cantar, sozinha não tenho coragem. E aqui me sinto tão a vontade harmonizada a cada dia que passa.
14/06/2014
A cada sábado que passa sinto que uma energia positiva toma conta de mim. Sinto que canto melhor, meu corpo se solta, fico mais alegre, mais harmonizada com o grupo. Sinto que me sintonizo melhor com as pessoas, que as pessoas me compreendem e eu as compreendo também. É uma pena ser a minha última aula deste projeto, que me fez tão bem. É espírito corpo e alma que se expressam através da música. Obrigada e muita gratidão por ter me ajudado num momento difícil.
Valéria participou do grupo em um momento crítico de vida. Vinda do interior do Estado, estava em São Paulo para um tratamento de quimioterapia. Encontrou na oficina não só um meio para suportar o momento difícil, mas para acessar sentimentos e valores que lhe trouxessem a energia de vida que precisava para um reencontro consigo mesma e com sua expressão. Como já apontado, verificou-se nas narrativas um espectro de sentimentos e valores que permearam todas as experiências. Como exemplos de sentimentos, distinguiram-se: alegria, bloqueio, felicidade, conexão, paz, frio, leveza, harmonia, distância, ansiedade, raiva, tristeza, rejeição, limites, alma lavada, calma, tranquilidade, aconchego, comunhão, descoberta, bemestar, amor, satisfação, encantamento, motivação, empatia. Como exemplos de valores, destacam-se: gratidão, confiança, integridade, compaixão, generosidade, liberdade, solidariedade, compartilhamento, sentido (motivo para viver), fraternidade.
2.1. As dinâmicas como facilitadoras para a constituição de um campo estético favorável para a experiência e o engajamento da sensibilidade
O trabalho começa fora da sala. Inicia com a percepção de como estamos quando chegamos. A respiração, o som, o canto… A memória, as lembranças, os sentimentos que cada trabalho, canto, música, movimento e silêncio nos causam (…) as palavras são poucas para descrever (Luci, 46 anos)
O primeiro exercício lá fora, já foi prazeroso. Senti abertura de coração, alívio nas tenções e melhora na postura. (Márcia, 55 anos)
As dinâmicas visaram, por meio do canto, o alargamento da sensibilidade, da auto percepção, da cognição e da expressão. Sua elaboração incluiu: a escuta consciente, o desenvolvimento técnico vocal pessoal e coletivo, jogos e práticas de livre improvisação, de percepção dos parâmetros do som e da música, de consciência corporal, de imagens sonoras e memória, permeadas por práticas para a integração do grupo, para o reconhecimento de si e do outro. Foram fundamentais para criar o campo sensível, ativar o engajamento na experiência, promover um jogo perceptivo entre os participantes e de cada um consigo mesmo, em um processo integrador e inclusivo que despertou emoções, a escuta do outro, memórias e lembranças, reflexões, senso de pertencimento a si mesmo e a uma comunidade, trocas de experiências e saberes entre gerações.
As dinâmicas conferiram, aos participantes, também, a apreensão de uma sequência no tempo e de uma nova totalidade, alinhavando a percepção de um tempo simultaneamente cronológico e experiencial, além de permitirem ao participante o espaço para se observar, possibilitando a consciência do significado da experiência para ele, conforme observado nos diários de Mauro, Luci e Ártemis:
Fiquei muito emocionado em trazer para o grupo, uma senhora que vi pela primeira vez e poder percebê-la apesar da dificuldade de comunicação que ela apresenta. Mesmo assim na dinâmica proposta, que era expressar através de qualquer som os sentimentos de cada um de nós, me foi de uma emoção tão grande poder sentir o grito silencioso daquela pessoa que estava ao meu lado. Outras sensações percebidas, foram de pertencer a um grupo bem como de relembrar momentos lindos da infância quando entoávamos a música Maria Bonita. (Mauro, 58 anos)
Hoje cheguei um pouco triste. A aula me ajudou a reorganizar os sentimentos, a repensar sobre o que escolhemos sentir, o que queremos guardar. E o canto é paralelo a isso. Parece que quando apoiamos os pés para cantar melhor, firmamos os pés para nos apoiarmos enquanto ser. (Luci, 43 anos)
Antes, vivenciamos o compartilhar do que queremos despertar em nós. Com as mãos realizamos trocas energéticas onde olhares, toques e sons/cantos foram compartilhados para formar o todo. Sinto-me acolhida nesse círculo constituído, cantando “aê, tao, aê, aê, aê…” (Ártemis, 48 anos)
2.1.1. A condução da facilitadora como tecelã do campo da experiência
Hoje acordei bastante animada para brincar de cantar. Brincar porque ontem assisti um documentário “Tarja Branca” que diz sobre o brincar e aqui é essa a sensação que eu tenho quando venho fazer essa aula, ter esse encontro. Há um resgate da minha essência, da minha criança que brincava com a música, só que foi se perdendo no decorrer da vida. O exercício de imaginar a árvore foi bastante revelador para mim: era um tronco grosso, não muito alto, com raízes grandes que apareciam com evidência na superfície. A copa, de início não apareceu, depois clareou e surgiu grande, arredondada, cheia de galhos enormes. Tive dificuldade de ver a flexibilidade dela apesar de contrastar com a firmeza, o tamanho dela. Aos poucos foi surgindo um balanço… sutil, mas estava ali. A árvore estava um pouco isolada, num vale, mas era forte, apesar de sozinha. Adorei a música que fala sobre essa árvore, dos índios americanos. Saio com muita gratidão. (Manu, 39 anos)
As dinâmicas foram criadas pela facilitadora a partir da sua percepção e da observação de cada um e do grupo como um todo, levando em conta o aspecto intergeracional da oficina, bem como os diferentes contextos de vida, crenças e aspectos culturais dos participantes, buscando incluir as distinções, integrar as diferenças e alinhar as semelhanças que emergiam do grupo.
Movendo afetos e mediando emoções, a qualidade da ativação e do desenvolvimento do processo dinâmico está intrinsicamente ligada à qualidade da atenção do facilitador aos movimentos que surgem no grupo, da sua presença diante do outro e à consciência da força da sua ação diante daqueles que se dispõem a receber sua liderança:
Cantos em cânone evocam imagens de aldeia. Também o medo de me perder no caos. Encontro apoio nos olhos de quem orienta, volto em mim. Volto em nós… Fundamental sonora sustentada pelo canto macio do outro que sou eu… “a gente agora já não tinha medo”… (Lícia, 31 anos)
Tal como o artista engajado no fazer da arte, o facilitador busca tecer os fios que criarão o tecido da experiência, em uma realização mútua com o participante. Como afirma Berleant,
O performer na arte corresponde ao professor no campo educacional. Ele compartilha funções similares, ativando o objeto de atenção, abrindo o assunto para a consciência do estudante, engajando-o nele e trazendo-o à vida dentro de uma realização mútua. (BERLEANT, 1971, p.144)
O método pedagógico adotado pela facilitadora vem dos seus muitos anos de estudo e experiência como artista e educadora, que resultaram em uma abordagem desenvolvida por ela, a qual chamou de Arte do Ser Cantante. Tal abordagem considera, primordialmente, que cantar é uma habilidade inata em qualquer pessoa e que cantor é todo aquele que se manifesta musicalmente pela voz.
Em linhas gerais, a abordagem da Arte do Ser Cantante inclui as dimensões corporal, emocional, cognitiva, musical e poética para o desenvolvimento e consciência do ser que canta como cantor e cantante, tendo em vista a educação para a sensibilidade por meio do canto. Educar para a sensibilidade significa possibilitar o reconhecimento, o alargamento, o refinamento e a transformação da percepção estética que se manifesta no modo de ser, nos movimentos e na expressão do sujeito. Tal perspectiva pedagógica e metodológica está em ressonância, em boa medida, com o conceito de Educação Estética desenvolvida por Arnold Berleant (1971). A educação como processo estético, segundo Berleant, envolve o objeto de estudo, o professor, o estudante e o pesquisador como participantes ativos do campo no qual a experiência acontece, cada qual com sua função, agindo mutuamente em um processo colaborativo, não competitivo. Para Berleant, o campo educacional corresponde ao campo estético onde toda a percepção e ação estão engajadas. Como campo estético compreende-se a ocasião da situação na qual a experiência acontece, em todas as suas características:
Assim como o campo estético é físico-perceptualmente integrado, então, o campo educacional é uma unidade vital entre professor, estudante, pesquisador e o objeto de estudo. No campo perceptivo da experiência educacional bem-sucedida, esses quatro agentes não são coisas independentes elencadas em alguma combinação. Eles são muito mais faces de uma totalidade. O campo educacional é o plano da experiência no qual tudo se converge. (BERLEANT, 1971 p. 144)
Nesse sentido, o campo educacional, que envolve a ação do educador e do estudante como componentes da experiência estética que, aqui, é dada pelo canto, compreende o ato criativo pessoal em um processo que é social:
Hoje quando a Cecília falou sobre a postura do corpo e como ela influencia na voz e transmite o emocional da pessoa, me lembrei das experiências que tive. Durante estes anos, essa postura mais aberta fez com que as pessoas se aproximassem mais de mim, falassem mais comigo e para mim isso é um pouco difícil. Mas vou experimentando e sentindo e aprendendo. Acho que hoje me sinto melhor. E isso tem ajudado a melhorar a voz, a me expor mais. (Luci, 43 anos)
Sinto-me bem, animada e principalmente ligada aos companheiros. Sinto uma onda quente passando e ligando todos nós. É muito bom criar junto com os outros, é muito bom cantar. Lava a alma. Obrigada Cecília! Sou muito afortunada por ter encontrado você! (Regiane, 60 anos)
2.1.2 A importância do desenvolvimento técnico vocal como meio para a auto percepção e expressão
Receber orientações de como dar sustentação aos sons produzidos e como produzi-los com mais sonoridade, foi um trabalho técnico realizado com consciência que ampliou a minha percepção do meu canto e do canto coletivo. (Ártemis, 48 anos)
Os relatos trazem à tona a importância do desenvolvimento técnico vocal como meio para o autoconhecimento e para maior consciência das potencialidades vocais, tanto em nível pessoal, como na integração com o grupo. A partir da sua experiência com as práticas propostas na oficina, Cristiana constata: “preciso respirar melhor para cantar um som agradável aos meus ouvidos e aos ouvidos das outras pessoas”. Para ela, não se trata apenas de angariar recursos para uma performance, mas, principalmente, de encontrar uma voz que a expresse e a coloque em consonância consigo mesma e em relação com o outro. Além disso, a consciência da “melhor” respiração como meio para que tal ocorra nos revela a percepção do canto como uma atividade essencialmente corporal, e demonstra um contato maior com sua potência na experiência estética.
A práxis estética envolve potências lúdicas, críticas e existenciais, envolve também o modo único de ser de cada pessoa. Daí a importância de se oferecer aos alunos um contato cada vez mais íntimo com a arte, e isso implica incluir no processo de ensino e aprendizagem algumas questões técnicas, alguns procedimentos artísticos para que a partir deles o aluno crie sua forma pessoal, única e reveladora de quem é. (FREITAS, J., 2005, p.9)
Em geral, reconhece-se como desenvolvimento vocal uma gama de recursos técnicos que garantem um melhor uso da voz. Técnica, dentro do modelo de pensamento dualista ocidental, refere-se a um conjunto de regras e práticas definidas, de ordem mecânica, apartadas do sujeito, impostas ao seu corpo, sem que haja o reconhecimento de suas necessidades e características próprias. Torna-se assim, um treinamento exaustivo e maçante, na maior parte das vezes prejudicial à saúde, que coloca o sujeito sempre como devedor diante de um parâmetro exterior a ele. Não obstante a atenção às discussões que envolvem as diversas considerações sobre técnica e tecnologia dentro do pensamento fenomenológico, relacionadas a mecanização do ser, procura-se retomar, aqui, uma outra concepção que busca, na origem da palavra “técnica”, um caminho para sua compreensão: do grego, Téchne significa habilidade e destreza em fazer, está relacionado ao sentido da arte e envolve a criatividade, a imaginação, a inventividade e a reflexão. Constata-se, assim, que seu significado é mais abrangente e, embora a etimologia não solucione o problema, permite uma nova reflexão sobre o tema, como propõe H.J. Koellreutter⁴:
Sabemos que é necessário libertar a educação e o ensino artísticos de métodos obtusos que ainda oprimem os nossos jovens e esmagam, neles, o que possuem de melhor. A fadiga e a monotonia de exercícios conduzem à mecanização tanto dos professores quanto dos alunos. [..] Inútil é a atividade daqueles professores de música que repetem, doutoral e fastidiosamente, a lição já pronunciada no ano anterior. Não há normas, nem fórmulas, nem regras, que possam salvar uma obra de arte na qual não vive o poder de invenção. É necessário que o aluno compreenda a importância da personalidade e da formação do caráter para o valor da atuação artística e que na criação de novas ideias reside o valor do artista. (KOELLREUTTER, H.J. apud BRITO, T, 2001, p.31)
Entende-se, aqui, que o desenvolvimento técnico compreende o ⁵corpo e a participação de todo o organismo na percepção do ambiente, fundamenta-se na ocasião da experiência e abarca todos os matizes que distinguem o sujeito em ação. Pode-se compreender a técnica como a melhor forma encontrada para se responder a uma necessidade que se coloca em um processo de aprendizagem que inclui a percepção e a reflexão e onde ocorre, também, a escolha dos melhores recursos para que se atinja os diversos objetivos propostos. Incorporada e vivenciada no corpo, passa a compor o modo de ser do sujeito e sua expressão. Dessa forma, a técnica vocal passa a ser um recurso para o alargamento da auto percepção e da cognição, resultando em uma expressão consciente e verdadeira para ele e para com o outro, compondo o processo social.
Perceber os sons cada vez mais. Aguçar os sentidos e despertar a consciência de que meu corpo todo vibra e todo o corpo participa da emissão do som. Perceber as sutilezas que acontecem com um simples movimento de língua, de lábios, do controle do ar. (Beth, 52 anos)
Hoje é um dia muito especial para mim porque vou cantar no aniversário do meu pai a música “Meu querido, meu velho, meu amigo” e com a aula de hoje acredito estar preparada com as técnicas de respiração e de sustentação da voz e o tempo certo. Contar a pulsação do ritmo da música também é importante para o canto. (Cris, 41 anos)
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⁴ H. J. Koellreutter (1915–2005), educador musical, ensaísta, instrumentista e compositor alemão, chegou no Brasil em 1937, refugiado do nazismo, viveu no Brasil por mais de 40 anos. Dedicado à música contemporânea e à educação musical, formou e influenciou inúmeros músicos e educadores musicais brasileiros com suas ideias musicais e pedagógicas extremamente avançadas. Tive a honra e o privilégio de ser sua aluna e assistente por 12 anos, de 1990 a 2002.
⁵ Segundo Marcelo Petraglia (2010), “fazer música é deixar fluir para o corpo e, deste, para o espaço, sons que traduzam aquilo que intimamente captamos no nosso interior. A música não nasce fora, brota do nosso âmago. Quem toca não é o braço, nem os dedos, mas a escuta interior. A técnica de um instrumento é, na verdade, a habilidade que temos de deixar fluir, de forma ordenada e consciente, para o corpo, os impulsos dessa escuta interior. Devemos exercitar e tornar o corpo tão sensível, alerta e disponível que ele possa reagir aos impulsos mais sutis, às nuances e amplitudes da alma musical. ”
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A compreensão da técnica como recurso acessível a qualquer pessoa, e não como objetivo último da arte, exige do orientador habilidade para se movimentar com o orientando. Requer criatividade para oferecer recursos que façam sentido para o aprendiz, para que este pesquise o seu melhor modo de fazer, suas habilidades e destreza. Assim, o desafio do orientador passa a ser desapegar-se de suas verdades absolutas e, com isso, abrir-se para uma troca genuína de saberes. Sensível à escuta do outro, coloca-se flexível; consciente do seu propósito, estimula uma atitude criativa. O equilíbrio dinâmico dessa flexibilidade, que é articulada por cada grupo, por cada contexto e por cada relação, passa pelo engajamento do orientador na experiência. A qualidade desse engajamento é refinada pela prática, pelo reconhecimento dos seus recursos e possibilidades, pela percepção de si mesmo e de seus valores. Passa, também, por levar em conta o contexto, a história de vida, a estética presente no modo de ser do orientando e, dessa forma, contribuir efetivamente para a expansão consciente da expressão deste. Desse modo, chega-se ao ponto da sua presença se tornar completamente desnecessário para o aprendiz:
Como o artista, o professor é, com o tempo, dispensável e seu papel é preenchido pelo estudante. De fato, o ponto máximo do professor de arte, ao final, para o estudante com quem, então, ele está trabalhando, é fazer-se desnecessário. (BERLEANT, 1971, p. 144)
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Tal perspectiva, adotada pela facilitadora para as práticas realizadas na oficina, pode ser averiguada nos relatos: Minha percepção se abre a cada dia. Senti a vibração do canto da Cecília, acho que estamos na mesma vibração. Traduz o que é paz. (Regiane, 60 anos)
Hoje estou me buscando. Como cantar sem esforço? Sem tencionar o que não precisa? Percebo-me no canto coletivo e isso me ajuda a me achar. (Gabi, 39 anos)
2.2. O repertório: as canções como fios da história nas tramas da experiência
Ouvir a voz da avó da Luciana cantando me emocionou muito. Sou descendente de nordestinos e este canto sempre esteve presente em minha infância. Memórias, sentimentos alegrias e tristezas emergindo lentamente com as canções. Sons, cheiros, sabores, tudo vem, tudo me pertence, tudo sou eu. (Beth, 52 anos)
As canções, trazidas pelos participantes e pela facilitadora, tiveram como tema “o canto dos antepassados” e foram o fio condutor para a partilha das histórias pessoais e o reconhecimento do outro, das semelhanças e diferenças das experiências de vida, do sentimento de pertencimento a uma comunidade — neste caso, a comunidade formada pelos cantantes que compuseram a oficina. A maior parte das canções eram conhecidas por todos, faziam parte do cancioneiro popular e de uma memória musical coletiva. Ao mesmo tempo, como verificado em todos os relatos, compunham a trilha musical nas cenas da vida de cada um. “Se essa rua fosse minha”, é um exemplo de uma dessas canções que fazem parte de um repertório coletivo/pessoal. Tradicional, cantada por gerações em muitas rodas de diferentes origens, foi trazida por Regiane como parte da trilha sonora da sua relação com seus antepassados e possibilitou, para ela, um sentimento de intimidade e de integração ao grupo. Diz Regiane:
Sinto-me um com todos os meus companheiros cantantes, como é bom! Me sinto próxima trocando músicas e histórias da minha vida e dos outros companheiros. (Regiane, 60 anos)
Além disso, pôde-se observar que uma mesma canção ativava um sentido singular na memória de cada participante, modulava a relação deste consigo mesmo e com o grupo, e se estendia para o cotidiano das relações sociais vivenciadas no presente.
Quando cantadas em conjunto, alinhavavam novas percepções, descobertas, reflexões e significados, como podemos verificar nos diários de Mauro, Cris, Gabi e Lícia, em relação a canção trazida por Regiane:
“Se essa rua se esta rua fosse minha’’…transportei como em um passe de mágica, a lembrar das brincadeiras de rua. A rua de então era um ponto de encontro de trocas, de brincadeiras, de choros e alegria. De um tempo que não dispúnhamos de tantos bens materiais, mas certamente éramos mais felizes. (Mauro, 58 anos)
“Se essa rua” me fez lembrar de quando eu brincava de beijo, abraço, aperto de mão ou passeio no bosque. (Cris, 41 anos)
A música “Se essa rua fosse minha” me tocou bastante também. Lembrei-me da minha infância, minha vó e minhas tias cantando. Acho que percebi minhas tias cantoras pela primeira vez. (Gabi, 39 anos)
“Se essa rua fosse minha”…traz a lembrança das “minhas crianças” (alunos). Me encanta. Cintila nos olhos delas quando fazem arte. (Lícia, 31 anos)
Tecendo imagens, memórias e emoções, a forma como o repertório foi constituído mostrou-se de extrema importância para a partilha de cada história dentro do grupo, contribuindo, como já dito, para o sentimento de pertencimento a si mesmo e a uma comunidade. Como pode ser verificado nos “diários de bordo”, as canções, trazidas do horizonte do passado, quando cantadas no presente, possibilitaram a ressignificação dos valores e do percurso de vida, favoreceram a autoestima dos participantes e, principalmente, revelaram, para o próprio cantante, uma estética pessoal na forma de perceber o mundo.
Como fios da memória das histórias pessoais observamos, no relato de Manu, as sensações físicas de leveza e alegria que sentiu depois de cantá-las:
Adorei cantar “Beira no mar”. Me lembrei da infância, acho que tinha uns dez anos mais ou menos, na escola de música do CLAM, do Zimbo trio, onde fiz iniciação musical. Aprendíamos essa música na flauta doce. A melodia do canto dos índios americanos também me emocionou. Desde a primeira vez que ouvi. Cantar pedrinhas de brilhantes, não sei se esse é o nome da música, também me levou à infância, mas não lembro uma situação exata com ela. E “Felicidade”, também me trouxe uma lembrança gostosa, de ouvi-la em acampamentos de férias que frequentei desde os 9 ou 10 anos. A sensação física depois de cantar é de leveza e alegria. (Manu, 39 anos)
Assim como no diário de Mauro, que fala sobre a “sensação de poder resgatar coisas/sentimentos que ficaram guardados muito tempo e por um instante poder se deliciar e se emocionar com essas lembranças. ” Das 20 canções trazidas pelos participantes, dez foram selecionadas e compuseram o repertório. A seleção teve como critério o momento do grupo e a duração da oficina, pois não havia tempo hábil para que todas fossem realizadas. Foram escolhidas canções que fossem conhecidas pela maioria do grupo e que fizessem sentido para eles. A seleção foi acordada por todos. Não houve relato, por parte de qualquer participante, de desagrado ou de sentir-se preterido. As canções selecionadas foram:
1. Acorda Maria Bonita (Antônio dos Santos)
2. Felicidade (Lupicínio Rodrigues)
3. João e Maria (Chico Buarque)
4. Jura (Zé da Zilda/ Zilda do Zé/ Adolfo J. Macedo)
5. Meu limão, meu limoeiro (José Carlos Burle)
6. Nanatsu No Ko (Seven baby crows)
7. Num torvejo de vontade ou Oi, Zé (Geraldo Junior)
8. Se essa rua fosse minha (Cancioneiro Popular)
9. Terezinha de Jesus (Cancioneiro Popular)
10. Tristeza do Jeca (Angelino de Oliveira)
As canções e cantos-danças circulares trazidas pela facilitadora com finalidade didática e que integraram o repertório foram:
1. Fanga Alafia (Canção tradicional africana)
2. Lugar Comum (Gilberto Gil)
3. Minha voz, Tua Voz (Plínio Cutait)
4. Shanoon (Canção dos Índios Norte-Americanos)
5. Tumiaki (Canção Tupy-Guaraní)
6. Wataho (Canção dos Índios Norte-Americanos)
Observando as características do conjunto do repertório composto pelos participantes, constatou-se um novo enredo alinhavado pela temática surgida das canções: todas, sem exceção, tratavam das decepções amorosas, da traição do amante, da espera pelo amado ideal, da busca da felicidade, dos encontros e desencontros amorosos. Tal enredo, gerado em um processo coletivo, demonstra o processo social ativado pelo tema inicial “o canto dos antepassados”. Mais ainda, revelou a ânsia humana em sentir-se incluído e amado e os desafios em alcançar tal desejo, um desejo que é compartilhado por todos:
Cada música trazida por alguém, mesmo que desconhecida ou longe do alcance da memória, é como se fosse minha também. Sinto muitas referências. Sinto-me neste grupo, com suas alegrias e seus pesos. Identifico-me com quem vibra de alegria, bem como com uma participante bem quieta e aparentemente triste. Como são as músicas que cantamos. (Monique, 46 anos)
A realização do repertório possibilitou trazer à tona os sentimentos relacionados às canções e expressá-los, tornando-se uma via para a reflexão e para a autodescoberta:
Levamos as músicas. Músicas que tem a ver com a história de vida de cada um. E quando cantamos juntos, criam uma nova história também. E muita coisa acontece… As palavras são poucas para descrever. (Luci, 43 anos)
Senti muita completude… muita sintonia com cada um do grupo… e a possibilidade de sentir a alegria mesmo nas canções melancólicas. É como se cantá-las fosse dizer a nós mesmos e ao mundo, que é possível sentir contentamento e plenitude, em qualquer situação de vida. Mesmo nas que parecem diversas. (Monique, 46 anos)
Convém reforçar que não foi objetivo dessa pesquisa analisar a estrutura específica de cada canção, tampouco avaliar sua participação na memória social. O principal objetivo, é importante lembrar, foi possibilitar o compartilhamento das histórias pessoais, a integração do grupo e a tecedura de uma experiência coletiva, criada e partilhada em uma comunidade específica.
Em resumo, na medida em que o repertório foi sendo trabalhado, verificou-se que:
As canções, trazidas a partir do tema proposto, evocaram memórias, imagens, aprendizados e reflexões. Localizadas em vivências do passado, quando ouvidas e cantadas à luz da perspectiva do presente, possibilitavam a ressignificação daquela experiência, conferindo-lhe um novo sentido.
Houve uma maior consciência do repertório pessoal de sentimentos, sensações e modos de perceber as coisas, a partir da experiência promovida pelo canto das canções trazidas pelos participantes e pela facilitadora.
As experiências compartilhadas por meio das canções no contexto do canto coletivo trouxeram a percepção de cada um como um agente da experiência do outro e de sua história, em um processo claramente social, que superou qualquer diferença entre gerações.
4. Sua constituição e prática evidenciaram que uma mesma canção pode ter, simultaneamente, um significado singular dentro da história pessoal e um significado social.
5. Alinhavou um novo enredo a partir da lírica das canções trazidas pelos participantes.
2.3 O canto coletivo entre gerações: misturando cores, amalgamando vozes no processo social.
Cantar é bom, cantar junto é demais. É reverência. (Jandira, 49 anos)
Como verificado nos relatos, o canto coletivo é outro aspecto fundamental da experiência. A prática do canto coletivo envolve: um estado de atenção e presença na escuta da sua própria voz e na escuta do outro simultaneamente; a timbragem do conjunto de vozes, ou seja, o encontro de uma sonoridade comum, que preserve as características de cada voz; a busca de uma afinação, um pulso e um ritmo em conjunto, que exigem um trabalho de refinamento da percepção pessoal e grupal. Além disso, foi possível observar que, no ato de cantar coletivamente as canções do repertório, as distinções eram acolhidas e qualquer diferença entre os componentes, integrada:
Uma canção caipira, um caipira ao meu lado. Seu José, quanta presença! A escuta expande, ressoa, suporta e sustenta toda essa sutileza! (Lícia, 31 anos)
O Sr. José, de 75 anos, citado por Lícia, era considerado, por ele mesmo, um “matuto, caipira da roça”. Seu gosto por cantar era antigo. Solitário, cantava em qualquer lugar: no supermercado, nos parques, nos corredores do Sesc-Pompéia. Orientado pelos funcionários do Sesc, veio para a oficina e encontrou, no canto coletivo, um lugar para sua expressão e a alegria de pertencer a uma comunidade. Por questões de saúde, ausentou-se do grupo por alguns encontros. A ausência não passou desapercebida, como verificamos no relato de Gabi, que além de se emocionar com sua volta, teve sua escuta ampliada: “emocionei-me ao ver seu José voltando hoje para o grupo. Ao mesmo tempo, sinto que me ouvi bastante. Estive conectada com a escuta da minha própria voz. Senti-me mais em mim. ” (Gabi, 39 anos)
Pôde-se constatar que todos buscavam apoiar-se solidariamente, de forma cooperativa. No espaço social específico do grupo surgem elementos distintos do espaço social de origem, evidenciando o canto em conjunto como uma prática educativa para o exercício de pertencimento a uma comunidade, onde todos atuam igualmente como solistas e componentes de um campo coletivo. Intensificada pelo fazer da arte, a sensibilidade compartilhada constitui o processo social e o senso de comunidade.
2.4. Alargando o campo da experiência: a apresentação final como partilha e oferecimento para a comunidade.
Saio de casa, preparo o coração, me visto de amor. Canto ao anjo e chego ao encontro feliz. O grupo vibra. Afinamos-a-ação e fazemo-nos instrumento. Divino é fazer a cura através do ser cantante. Doamos canções e recebemos sorrisos. Expandimos nossos corpos para o espaço e nos refazemos em harmonia. Realmente muito emocionante! O meu ser sagrado saúda o seu ser sagrado! (Lícia, 31 anos)
Último dia da oficina. Depois do ensaio geral na “nossa sala”, no primeiro andar, descemos para a área das oficinas do Sesc-Pompéia, no térreo, e nos reunimos próximo ao elevador, em frente ao laboratório fotográfico. Lá começou nossa apresentação. Em roda, entoamos algumas melodias oferecidas por mim e sintonizamos nosso canto, percebendo a acústica do ambiente. De lá, seguindo minha orientação, formamos um bloco e subimos pelo corredor principal cantando “Wataho” até a área de convivência, um espaço amplo, logo na entrada do Sesc onde também fica a biblioteca e as mesas de leitura. Durante a subida, pessoas paravam para nos ver e alguns nos acompanhavam, cantando e dançando conosco até lá. Já dentro, olhando através das grandes portas de entrada da área de convivência, era possível ver alguns frequentadores sentados nas mesinhas da lanchonete em frente. Formamos um círculo e realizamos a dança circular dessa mesma canção. Esse movimento chamou a atenção de mais algumas pessoas, que se aproximaram para assistir. Uma plateia se formou espontaneamente, juntando-se aos familiares e amigos convidados que estavam nos aguardando. Em seguida, formamos uma meia-lua e ofertamos as canções da história de cada um que, durante o processo, se tornaram nossas e teceram a história do grupo. Convidados a participar, familiares, amigos e público sorriam e cantavam, compondo uma atmosfera especial em uma experiência que transcendeu ao tempo, levou-nos para outro espaço e criou uma realidade única, compartilhada. Formou-se um grande coro na área de convivência. Alguns se aproximavam e se posicionavam com o grupo, como se já fizessem parte; outros cantavam da plateia. Ao final, entre aplausos, abraços e risos, cúmplices um do outro, voltamos cantando “Fanga Alafia” pelo mesmo corredor central que havíamos subido. Podíamos ver o sorriso nos olhos daqueles que nos acompanhavam até a entrada do galpão das oficinas onde, de fato, a apresentação se encerrou para nós. Subimos para “nossa sala”. Lá, pela última vez, cada um escreveu em seu diário de bordo. Ao final (ou será começo?), abraçamo-nos com o sentimento de satisfação da tarefa bem cumprida e nos despedimos com a promessa de nos encontrarmos novamente.
2.4.1. Imagens da apresentação final da oficina “ Viver o Canto”.
A apresentação final buscou expor participante e grupo diante de um contexto que possibilitasse o reconhecimento construtivo do processo coletivo e em diálogo com a comunidade do Sesc-Pompéia. Como parte da experiência, a estratégia adotada foi tratá-la como um oferecimento do trabalho realizado para o público e familiares, amenizando medos e expectativas da exposição, que geralmente abatem sobre a performance, e conferindo, dessa forma, leveza, alegria e diversão aos cantantes. Estabelecido um campo estético favorável ao engajamento na experiência, valores e sentimentos positivos emergiram, bem como novas percepções e reflexões, como podemos observar nos diários de bordo dos cantantes:
Foi uma delícia oferecer nosso canto para as pessoas. Me aqueceu, me senti muito presente e com muita alegria. Foi contagiante! (Julia, 31 anos)
Hoje adorei ouvir minha voz no todo das vozes. No ‘’bolinho’’ e na meia lua da convivência pude ouvir claramente as outras vozes junto com a minha. Oferecer nosso canto para o mundo foi muito gostoso e tranquilo! (Gabi, 39 anos)
Oferecer, surpreender, dar o seu melhor com muito amor. Não precisamos muito para ser feliz e para fazer momentos felizes. Tudo o que oferecemos de coração é lindo e tem muita força. Este é o aprendizado que levo hoje. Feliz, feliz, feliz!!! Gratidão a todos os amigos presentes e gratidão a Cecília minha mestra e inspiradora. (Beth, 52 anos)
As narrativas sobre o compartilhamento do resultado artístico na apresentação final para o público desconhecido, bem como para familiares e amigos, evidenciaram a percepção de cada um como artista que compõe a experiência. Mobilizando emoções, expandiu do aconchego do interior do grupo para a comunidade ampliada na área de convivência. Alargando significados, “ vencendo medos, timidez, ansiedade com o rigor de perfeição, lá fomos nós! ”, como enfatiza Monique em seu relato:
Este círculo, neste formato, neste momento, se encerra aqui. Hoje a experiência especial foi nossa apresentação em público. Vencendo medos, timidez, ansiedade com rigor de perfeição, fomos nós! Unidos pelo desejo de estar ali e realizar aquele propósito, cheio de outros pequenos e grandes propósitos. (Monique, 46 anos)
E como também conta Manu:
Foi muito prazeroso esse último encontro! Todos cuidados, bonitos para se apresentarem! Tive um súbito medo da minha voz não sair e pensei por que não fiz mais os exercícios de fono? (Manu, 39 anos)
A apresentação, como marco para um final de ciclo, trouxe reflexões sobre o processo. Verificou-se grande enfoque às mudanças que ocorreram em um período de tempo específico, que permitiram um transbordamento de várias emoções. Evidenciou-se, também, um sentimento de completude coletiva, específico do grupo, além do desejo de se viver a experiência novamente, como pode ser verificado nos relatos a seguir:
Hoje é o encerramento do nosso curso de canto, fiquei muito emocionada as lágrimas escorreram pelo meu rosto, eu não conseguia controlar a emoção. Mas foi encantador, foi muito lindo, fomos cantando até o centro de vivência, tinha muitas pessoas assistindo e aplaudindo. Meu sobrinho veio nos prestigiar junto com sua esposa e filho e filmou, foi tudo muito gratificante. (Eulália, 74 anos).
Estamos em mais um final de curso. E compartilhamos com alegria as canções que trouxemos. Canções que sempre trazem nossas histórias de vida. E vamos nos conhecendo pelas músicas. Esta semana estava pensando sobre isso, qual a minha história de vida? O que trago desses anos vividos? E é grande e singelo e solitário, e compartilhado e cantando fica muito melhor. Só tenho a agradecer a oportunidade de viver isso tudo. (Luci, 49)
Hoje foi o máximo! Apresentação ao público da área de convivência, aqui mesmo. Eu me emocionei e me segurei para não chorar quando cantamos a música ‘’tristeza do Jeca’’, lembrei do meu pai, que adorava música sertaneja. (Neide, 70 anos)
Neste dia ocorreu a apresentação do viver em canto. Foi ótima, para a próxima quando será? Com acompanhamento de violão, sempre procuro melhorar. Vou aguardar os próximos. (Lori, 60 anos)
Hoje, nesta data comemoramos o termino das aulas de canto e foi muito bom porque todos cantaram com muita alegria. Cantamos bastante com muita alegria. (Leônidas, 86 anos)
2.5. Conclusões dos participantes sobre a oficina
Eu, Maria Eulália, tenho imenso prazer em ter participado, deste curso de canto junto com outras pessoas. Fez muito bem para a minha vida, fiquei mais alegre, muito mais otimista. Espero que tenhamos outros encontros iguais ou parecidos. Muito obrigada. (Maria Eulália, 74 anos)
As conclusões dos participantes, descritas nos últimos relatos, sobre o impacto que o trabalho causou, demonstram que a oficina cumpriu os propósitos iniciais estabelecidos pela facilitadora e pelo Sesc-Pompéia.
A professora nos ensinou com muita paciência e nós aprendemos bastante. Um grande abraço para o Sesc e para a professora. (Leônidas, 86 anos)
Senti o canto vibrar em mim. A sensação que fica é de integração. (Julia, 31 anos)
Dia do ensaio geral. Para variar foi ótimo. Praticamente, hoje termina este ciclo. Só tenho a agradecer aguardando outras oportunidades que o Sesc possa oferecer. Cecília espero que nos encontremos mais vezes. Estar com você é muito bom! Grande beijo, Neide. (Neide, 70 anos)
Felicidade, cada dia me sinto inserida e participante do grupo. (Satiko, 60 anos) Que pena! Que pena! Que pena! Por hora… só por hora… acabou! O que aprendemos e vivemos aqui não acaba, não tem fim. Está em mim, está em todos nós que tivemos esta experiência maravilhosa. Foi mágica pura! Hoje estou em estado de graça! Sinto-me unida com todos os companheiros e com os amigos e família deles e meus. Obrigada Cecília! Obrigada! Obrigada! Obrigada! (Regiane, 60 anos)
Esta vivência me ajudou, junto com este grupo, através da imensa generosidade da Cecília (sua!!) e de todos o participantes, a sentir que posso sim, expressar meus sentimentos… dar vazão a todas as minhas intensidades, minhas subjetividades e que está TUDO BEM! Posso ser eu mesma, posso ser aceita como sou, posso estar num grupo, posso brincar, trocar de personagem, imaginar coisas… e assim ser mais feliz, estar mais relaxada, ser mais espontânea. Gratidão eterna a você, Cecília! Você é uma das poucas pessoas pelas quais nos encantamos, pois, participar de alguma vivência de canto com você, é ter a certeza de que você está fazendo aquilo que deveria estar… o dom recebido pelo universo. Estar perto de você e sentir isso é ter esperanças de que isso pode acontecer conosco também. (Monique, 46 anos)
Delícia de encontro, pré-apresentação do semestre. Muita harmonia dessa convivência tão diversa e rica. Saio daqui torcendo para que o programa semestre que vem. (Manu, 39 anos)
Deixo a fala de minha vó… “Eu vou-me embora amanhã, e sei que deixarei saudades, levarei saudades…’’Agradeço por tudo. (Luci, 43 anos)
2.6. E a trama continua…
O trabalho desenvolvido na Oficina do Canto no Sesc-Pompéia me fez perceber ainda mais como é prazeroso cantar. O canto que vem da alma, o canto que vem aos poucos e que nos tornam pessoas mais felizes. Hoje o que está influenciando minha vida é que geralmente quando estou preocupada vem na minha mente a arte de cantar e passa para o canto propriamente dito. Me deparo cantando até na rua. Eu me sinto bem dessa forma que estou hoje. Sempre gostei de cantar, mas com a oficina do canto percebi que cantar com tranquilidade e leveza é sempre bom. Também aprendi como respirar no momento de cantar e eu acredito que melhorei bem nesse sentido. Hoje não faço parte de coral por opção, porém sempre que posso vou com o meu namorado no videokê e com isso distraio minha mente e me faz bem. Gostava muito quando chegava a época de apresentação, que era a hora de demonstrar o que fizemos na oficina. Gosto muito de cantar para o público, alguns se agradam, outros não, mas o que importa é sentir-se bem e cantar me faz feliz. (Cris, 43 anos)
Dois anos depois, a pesquisadora voltou a contatar alguns participantes. Foi pedido para que relatassem livremente como sentiam a presença do trabalho em sua sensibilidade, na sua expressão e em suas ações no cotidiano. Também foram questionados sobre eventuais transformações que tivessem ocorrido, em suas vidas, a partir daquela experiência:
No período do curso no SESC com a Cecília Valentim, tive um prazer imenso em ouvir novamente minha voz. Sempre gostei de cantar, mas pouco fiz. Cantar em grupo foi mais prazeroso ainda porque o exercício de ouvir o outro e trocar as vozes além de olhares, sorrisos, gestos trouxe uma alegria muito grande, uma sensação de que no coletivo tudo fica mais forte, mais bonito. Outro detalhe importante, foi o tema do repertório: escolher músicas que tivessem uma memória afetiva significativa através de músicas ancestrais. Cada música linda! Foi bastante especial. Mesmo que praticasse pouco os exercícios vocais, em casa, a sensação de mais alegria na vida, definitivamente era mais presente. Atualmente canto pouco, seria ótimo retomar. (Manu, 41 anos)
Participar por dois semestres da Oficina Intergeracional de Canto conduzida pela Cecília foi um dos maiores presentes que já recebi. Serei para sempre grata a ela e a esta possibilidade. Quinta-feira eu já começava a sentir a alegria que seria estar no Sesc no sábado de manhã. Alegria, sentimento de pertencer, de haver um momento e local em que as músicas da minha vida e do meu coração teriam um alargamento de importância, ao mesmo tempo comungando tudo com o grupo, que de repente e rapidamente se tornava muito próximo, muito referencial. Era muito fácil nos reconhecermos uns nos outros. Um lindo fluir de sincera empatia. Comecei a entender e a achar mesmo que a delícia de me expressar através do canto era para mim uma porta que se abria para um caminho de cura. Meu corpo ficava mais leve, o riso mais solto, a vida mais interessante… E minha autoestima melhorando cada vez mais, afinal, tinha descoberto algo muito bom e definitivo para minha vida. Algo só meu. Na verdade, algo que foi virando o que eu mesma sou. Descobri na minha voz, algo especial que pertence só a mim. E algo que não tem relação necessariamente com afinação ou tom, mas com auto-expressão… com alegria simples e genuína. A partir desta oficina, fui fazer aulas de violão, comecei a cantar em um coral e faço parte de um grupo chamado “Despertar da Musicalidade”. Um grupo lindo, com muita conexão, que exercita o estado de presença através do canto. Brincamos com a música das mais variadas formas. E gostamos de nos movimentar para diferentes lugares, e fazer isso com diferentes pessoas também. Ou seja, hoje a música está no meu dia-a-dia. Cantar é minha terapia e a forma que escolhi para entender e dar fluxo a muitos dos meus sentimentos. (Monique, 48 anos)
Participar desta Oficina foi uma experiência que contribuiu muito para criar um novo olhar e nova percepção sobre o meu canto. Libertar de alguns preconceitos e crenças que impediam a livre expressão deste canto. O trabalho realizado nas aulas possibilitou abrir a escuta interna e externa, aguçar a sensibilidade e a auto percepção. Despertamos a consciência sobre os sons ao nosso redor e como interagimos com eles compondo uma paisagem sonora. Estas experiências ajudaram a expressar melhor o meu canto porque na medida em que me torno mais sensível, mais atenta ao meu corpo como um todo, mais presente e mais consciente, o canto começa a fluir naturalmente e assim, posso expressá-lo com mais propriedade e mais segurança. Sigo cantando e agradecendo pela oportunidade de ter participado desta oficina e trazer comigo este aprendizado que levarei por toda a vida. (Beth, 54 anos)
[sobre] O tempo em que participei com o coral em sua direção, conhecendo outras pessoas. A minha participação: fui acompanhar a minha namorada e também fiz a inscrição. Quando começaram os ensaios não sabia que precisava de toda a preparação. Aprendi respirar melhor, falar, sentar. Teve dia que dormi durante os ensaios. Noto que estou melhor para falar, nas apresentações tremia, ganhei experiencia. Cantar, vou com a namorada em videoke. Espero ter um pouco contribuido para sua conclusão de mestrado. Abraço. (Lori, 62 anos)
Pensando sobre nossa vivência com o canto…naquele momento eu passava por um processo de distanciamento de minha família…no grupo me dei conta que minhas memórias musicais vinham muito de minha mãe que sempre cantarolava pela casa. Acabei escolhendo para cantar a música “Oi Zé” que ouvia de minha mãe na infância e quando cantava, ela trazia um balaço alegre no corpo e na voz que contagiava a mim e a quem estivesse por perto. Pesquisando sobre a música descobri que ela era um ponto de umbanda pra entidade Zé Pilintra, compartilhei com minha mãe que se surpreendeu, já que na minha infância ela era bem distante de qualquer religião de matriz afro e hoje como frequentadora de um terreiro de umbanda, seu Zé é um de seus guias protetores. Todo o processo de trazer os sons e soltar a voz, trabalhar com essa música e com tantas outras carregadas de histórias e afetos importantes para aquele coletivo me ajudaram a ir dissolvendo pontos tristes e duros que eu nem sabia que estavam em mim. Foi muito suave e intenso. Adorei participar! (Julia, 31 anos)
Minha filha, Amanda, inscrevendo-se para uma oficina de fotografia naquela unidade do SESC, observou no folheto de divulgação dos trabalhos, esta oficina de canto e captou que a proposta seria do meu interesse. Realmente, foi uma descoberta fascinante. Conhecer Cecília e estar ao lado dela já foi acessar um plano espiritual, que se materializava durante os encontros e ficava ecoando por muito tempo em meu ser. Sua presença é diferenciada. É iluminada. Ela não precisa dizer nada para conduzir. Ela se manifesta pelo olhar, pela linda voz, e guia-nos pelas mãos. Numa condução sutil acessamos sua alma, rica em amorosidade. Esta convivência com ela já é transformadora. Dizem que os verdadeiros mestres ensinam muito mais pelo exemplo do que pela expressão verbal. E ela é assim, uma verdadeira mestra. Ensina revelando para nós um mundo espiritual, mágico, fascinante, onde reina o amor. Durante as vivências, acessei um repertório riquíssimo de ensinamentos. Ela compartilhava conosco músicas cantadas em vários idiomas: tribos indígenas, tribos africanas, músicas da cultura sufi, MPB de primeira qualidade, músicas eruditas, enfim, era um repertório variado, de elevado nível musical, cujas letras consistiam em mensagens pró vida, mensagens de esperança, ou convites para refletirmos sobre as mudanças a serem realizadas no mundo carente de amor e de justiça social. E em um ambiente democraticamente instalado durante os encontros, tivemos oportunidade de propor repertório para cantarmos com o grupo. E compartilhamos também nossas histórias, reconhecendo-nos, recriando-nos. Esta experiência foi integradora, revelando-nos um envolvimento das pessoas, gerando um sentimento de pertencimento. Estes aprendizados promovidos via repertório todos foram transformadores. Sempre o encontro era preparado com um círculo de harmonização, que acontecia na ante-sala do espaço onde seria realizado a oficina. Esta prática era marcante. Na ante-sala, nós recebíamos estímulos para despertar o nosso ser para a prática do
canto e da dança. Ali, nós recebíamos uma espécie de massagem em nossas almas. Um convite para deixarmos lá fora as preocupações mundanas. Um convite para acessarmos a integralidade dos nossos seres. E quando estávamos estimulados, e embebidos por este afago, entrávamos cantando, harmonizados, num clima energético construído cuidadosamente e favorável à realização das vivências. Durante este trabalho de harmonização preparávamos nossos corpos, desacelerando a respiração, relaxando a musculatura, soltando os bloqueios, ativando nossos sentidos para ouvir, para observar, para cheirar, para olhar, para estar presente. Esta experiência repercute em mim ainda hoje de forma muito intensa. (Ártemis, 50 anos)
As novas narrativas foram fundamentais para verificar que a importância e o impacto da Oficina “Viver o Canto” no modo de vida do participante perduram até hoje e trouxeram novas possibilidades. De acordo com os relatos, a experiência proporcionada pelo canto e pela forma como a oficina transcorreu, contribuiu efetivamente para a autodescoberta, auto percepção, autorreflexão, abertura para o novo, a comunhão com o outro, o exercício de comunidade, aprendizados para toda a vida. Possibilitou a emersão de valores como generosidade, liberdade de expressão, fraternidade, sinceridade, compreensão, reconhecimento do outro. Conectou sentimentos de gratidão, propriedade, segurança, pertencimento, alegria, empatia, acolhimento e a compreensão do corpo como reduto de toda e qualquer experiência no alargamento da sensibilidade, pela consciência dos estados de presença, fluidez, leveza, prazer, graciosidade, pela percepção das funções básicas como respiração, pela organização corporal e dos movimentos e nos registros da memória em toda sua extensão.
2.7. Conclusão da compreensão dos dados
O estudo dos relatos trouxe à tona e afirmou o engajamento estético e oalargamento da sensibilidade tecido pelo canto como caminho para a transformação pessoal e social. Levou à concentração das categorias em três novos tópicos principais, que passaram a fundamentar esse estudo: Sensibilidade, Tempo e Pertencimento. Concluiu-se que esses três tópicos compreendiam a gama de sensações, sentimentos e reflexões levantadas pela experiência observada e que, a partir deles, a conceituação teórica deveria ser formulada.
Em resumo, demonstrou:
1. A veracidade da experiência estética proporcionada pelo canto como forma de desenvolver a sensibilidade, a auto percepção e a autoconsciência do modo de ser do sujeito.
2. A percepção e consciência do corpo como reduto e agente da experiência, da expressão e da voz
3. A elevação da autoestima e a expressão genuína e livre.
4. O alargamento da escuta e do reconhecimento de si e do outro.
5. A ampliação da percepção e consciência do cantante como agente no processo social.
6. Que o canto como arte, no foco da experiência perceptiva, constituiu um campo estético efetivo e favorável para a emersão de valores e do sentimento de pertencimento a si mesmo e a uma comunidade.
7. A importância do modo como o repertório foi constituído como meio para acessar memórias afetivas e significativas das histórias pessoais e para a integração do grupo ao compartilhá-las.
8. O encontro das diferentes percepções de tempo na experiência: o tempo da memória, o tempo de cada um, o tempo do grupo, o tempo da experiência, o tempo medido.
3. A experiência estética tecida pelo canto no processo social: Sensibilidade, Tempo e Pertencimento
É proposta desse trabalho que a teoria se fundamente na experiência, dentro de uma abordagem fenomenológica. Com isso, o estudo de campo se tornou essencial para definir o espectro teórico a ser trabalhado, utilizando-se do método fenomenológico, que a filosofia empresta à psicologia social como caminho para a investigação: da experiência dos participantes, relatadas nos diários de bordo e de sua compreensão, surgem os três principais tópicos e seus desdobramentos, que serão os pilares de sustentação teórica. São eles: Sensibilidade, Tempo e Pertencimento.
A sensibilidade envolve todos os relatos das experiências. Tal constatação levou à formulação e aprofundamento da questão da sensibilidade, concebendo, como meio para o seu engajamento, um campo estético definido pelo fazer do canto. Reconheceu-se, na compreensão de experiência estética concebida por Arnold Beleant, um fio condutor para respondê-la, na medida em que a análise foi se desenvolvendo. A experiência estética, como uma teoria da sensibilidade (BERLEANT, 2012) inclui todos os aspectos do fenômeno: o campo estético, que é o contexto onde a experiência acontece, o campo perceptivo, onde estão envolvidos fatores individuais, ambientais, sociais e políticos inerentes à situação onde a experiência perceptiva ocorre, o corpo, como reduto da experiência perceptiva, a auto percepção e autorreflexão. O que faz uma situação ser considerada uma situação estética é o fato de ser o centro apreciativo entorno da experiência: por ser primariamente perceptiva, envolve todos os sentidos.
Além disso, pressupõe relações: acontece entre eu e o outro, entre eu e o espaço, entre eu e o percebido, entre eu e meu corpo, de onde emergem valores éticos, políticos e sociais, diferentes perspectivas, percepções e compreensões, dentro de um tempo que é o tempo da experiência (BERLEANT, 2000). Percebeu-se, então, que tal teoria, de fato, abarcaria os três tópicos inicialmente levantados, propondo um novo olhar, onde a experiência estética, engajada na sensibilidade tecida pelo canto, possibilitaria um alargamento reflexivo da percepção de si e do outro, da experiência do tempo e do senso de pertencimento a uma comunidade.
No que diz respeito ao tempo, as diferentes percepções proporcionadas pelo canto como meio para o fazer musical que emergem dos relatos, levaram a procura da compreensão daquilo que, nesse trabalho, nomeou-se como “bordas do tempo”: o tempo constituído, o tempo da experiência e o tempo da memória como reguladores da experiência pessoal no processo social. De acordo com Arley Andriolo, “ a concepção fenomenológica em Merleau-Ponty considera que o esquecimento de processos básicos é acompanhado pela possibilidade de relembrar” (ANDRIOLO, 2007). Um relembrar-se intensificado pelo canto e pelas canções que compõem a trilha sonora pessoal, que constituíram a trilha sonora da experiência partilhada no grupo.
Assim como sensibilidade e tempo, o sentimento de pertencimento a uma comunidade permeia boa parte das narrativas, contribuindo para a reflexão de que o sentimento de pertencimento proporcionado pela experiência do cantar junto com o outro é relativa à experiência de compartilhar algo em comum em um campo sensível — um fazer criativo que possibilita conexões entre os participantes e que colabora de forma efetiva para o surgimento e fortalecimento do senso de comunidade.
Quatro autores principais contribuíram para a formulação teórica: Arnold Berleant, Merleau-Ponty, Frayze-Pereira e Arley Andriolo.
3.1. Experiência estética e sensibilidade
Tomar consciência dos sons, da vibração e das sensações que isto provoca em meu corpo. Esta vibração aguça a minha sensibilidade e me leva para um lugar que não sei bem onde é, mas que causa muito prazer. Este prazer, este bem-estar, esta sensação que falta palavras para expressar às vezes é arrebatadora fico meio perdida sem saber como lidar. Sinto como algo muito grande que estava represado e que transborda e me inunda. (Beth, 52 anos).
Etimologicamente, a palavra estética, do grego aesthesis, significa aquilo que é percebido pelos sentidos. Estética é fundamentalmente percepção. Compreende-se percepção como muito mais do que mera experiência sensória: envolve a experiência perceptiva e a capacidade de reconhecê-la. Diz respeito a todo contexto da experiência, ao que é percebido e apreendido, ao que é compreendido a partir do que é percebido:
Falo aqui da percepção mais do que sensação porque percepção inclui mais do que a percepção sensória. A expressão “sense perception” denota a parte sensória da percepção, de apenas parte das influências do ambiente. Mas esta sensação é mediada, qualificada, apreendida e formada por uma multiplicidade de fatores: biológico, social, cultural e de forças concretas que são partes integrantes do mundo humano. (BERLEANT, 2010, p.5)
Com isso, é importante reconhecer que não há percepção pura. Toda percepção passa pelas influências da cultura, pela experiência pessoal dentro de um campo social na vida diária, pela educação e, principalmente pelo corpo, reduto de toda e qualquer experiência.
Não é proposta desse trabalho abordar as questões que envolveram a compreensão filosófica da estética no ocidente, relativas às artes, especialmente a partir do século XVIII, quando percebida a partir da premissa da contemplação desinteressada e dos juízos de valor estabelecidos para a sua apreciação⁶. Propõe-se a compreensão da estética como incorporada na textura do mundo, como seu fundamento e, em sendo, tangível e tangente, pertencente ao campo de toda experiência e de toda ação humana, envolvendo-a em sua totalidade: “Não é evidente, precisamente se minha percepção é percepção do mundo, que devo encontrar no meu comércio com ele as razões que me persuadem a vê-lo e, na minha visão, o sentido de minha visão?” (MERLEAU-PONTY, 1964, p.41).
Aqui, o termo estética refere-se à capacidade humana para a experiência perceptiva, envolve a auto percepção e a cognição. (BERLEANT, 2010). Toda percepção é percepção de algo. Pressupõe a capacidade para a apreensão direta, imediata e autentica da situação, e a capacidade cognitiva para a compreensão do percebido em sensações⁷, sentimentos, ideias, pensamentos e conceitos que surgem da experiência, contribuindo para torna-la mais intensa, rica em significados. Logo, a auto percepção e a cognição caminham de mãos dadas. É sempre importante relembrar que a percepção e a cognição são mediadas por fatores culturais, sociais e por tudo aquilo que compõe o mundo humano (BERLEANT, 2010).
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6 “A noção da unidade perceptual na experiência estética tem gradualmente se tornado uma alternativa à teoria Kantiana da contemplação desinteressada. A apreciação não se faz produzir por um treino mental sobre um objeto de arte. Muito mais, uma reciprocidade essencial vincula objeto e apreciador, onde cada um atua e responde através de um intercâmbio de forças invisíveis. A percepção apreciativa não é meramente um ato psicológico ou mesmo exclusivamente pessoal. Acontece em um mútuo engajamento entre pessoa e objeto, onde ambos são ativos e receptivos. Uma teoria integradora deve incorporar a reciprocidade que desperta o encontro estético para unir os laços íntimos da percepção do objeto e do objeto da percepção dentro da indissolúvel unidade da experiência. ” (BERLEANT, 2012, p.45)
7 Falo de sensação mais do que mera percepção sensória. Ela está amalgamada nas influências culturais e modula os processos sociais: “sensação não é apenas sensória ou psicológica; ela se funde com as influências culturais. Isto é, de fato, o único caminho que um organismo cultural pode experimentar. A separação de sensação e significado é mais uma das sutis divisões que a atual experiência não pode suportar, pois como seres sociais, nós percebemos através dos modos da nossa cultura. A percepção da neve, da chuva, da distância, do peso, da confusão ou ordem, são todas discriminadas e identificadas através dos paradigmas e categorias embebidos nas práticas culturais e nunca apenas pela retina ou pela estimulação tátil. O mesmo pode ser dito sobre o nível de barulho, as qualidades dos aromas e sabor, e a intensidade da luz” (BERLEANT, 2012, p.53)
Considerando, então, o caráter sensível e transitório da estética, que envolve e modula todas as ações humanas, Berleant afirma:
Finalmente, não há nada de sagrado no termo “estética” ou “estéticas”. Como conceito, eles não têm nenhum status ontológico ou normativo. Como todo mundo da linguagem, seus significados são apenas internamente especificados, dentro de um sistema de linguagem, como Ferdinand de Saussure deixou claro. Eu não chamo por essa razão, por nenhuma verdade permanente e universal localizada na estética, mas eu encontro utilidade no termo como um veículo para chamar nossa atenção para aquilo que envolve toda humanidade — a capacidade para a experiência perceptiva, experiência na qual todo o espectro de variáveis e impressões são apreendidas apenas raramente. Eu falo de percepção mais que sensação porque, como nós devemos constantemente nos lembrar, percepção incorpora mais que experiência sensória. É mediada, quantificada, apreendida e formada por características e padrões de apreensão psicológicos e culturais e das múltiplas forças que compõem o mundo de todos. (BERLEANT, 2010, p.35.)
Experiência é tudo: nosso corpo, nosso movimento, a percepção do espaço, dos sons, daquilo que nos rodeia, que nos compõe e que, em última instância, somos nós mesmos. Segundo Berleant (1992), a experiência é ambiental, pois somos parte do ambiente do qual participamos:
A paisagem pela qual me movo, dirijo ou vôo é meu mundo, ordena minha compreensão, define meus movimentos e modela meus músculos, minhas reflexões, minha experiência, minha consciência para, ao mesmo tempo, eu me impor sobre ela. De fato, muitos de nós gastamos o tempo de nossas vidas no espaço eletrônico da televisão ou nos computadores. “O” ambiente, último dos sobreviventes do dualismo mente-corpo, um lugar distante, que pensamos contemplar de longe, se dissolve em uma complexa rede de relações, conexões, que são continuamente envolvidas pela condição física, social e cultural e que descrevem minhas ações, minhas respostas, minha consciência, que me dá forma e que contém toda vida que é minha. Não há mundo fora, não há fora. Nem há um lugar interno onde eu possa me refugiar das forças externas inimigas. O percebedor (mente) é um aspecto do percebido (corpo) e inversamente; pessoas e ambientes são continuas (BERLEANT,1992, p.4).
Na experiência, não há separações, mas diferenças, contextos, valores, modos de ser. Modo de ser refere-se a como cada um apreende o mundo de acordo com sua percepção, dentro de um campo de possibilidades, onde unidade não é o mesmo que uniformidade, onde:
Existem diferenças mais que divisões, continuidade mais que quebras; distinções mais do que separações. É oferecida uma visão que une ontologia com a estética e metafísica com pragmatismo, pois o domínio estético da experiência não é desenraizado e flutua livremente, mas tem suas raízes profundas no mundo humano. (BERLEANT, 2010, p.8).
Com isso, chegamos à compreensão de experiência estética que fundamenta este trabalho. Aqui, a experiência estética se expande para além do significado tradicional, está além da arte, inclui valores éticos, sociais e políticos, todo o contexto da experiência. É, também, uma estética social.
A estética tem, também, um importante lugar nas relações humanas, tanto no âmbito pessoal como social, e afeta as atividades diárias das pessoas. Eu chamo a estética, aqui, de “estética social”. A estética social está presente não só na amizade, na família e no amor, mas na educação e no trabalho. Decisões estéticas e experiências estão, também, incorporadas na concepção e uso das condições e características do ambiente cotidiano, que tem ramificações sociais. Isso se estende da escolha da roupa, o uso de utensílios, o empacotamento de artigos, o cuidado e administração da casa, e outros objetos e aspectos que constituem a vida diária, para as normas pessoais e a estruturação das relações entre empregado e empregador, i.e., a organização social da produção e do comercio. Não se deve ignorar a grande importância dos fatores éticos nesses últimos casos, de fato, os valores éticos residem no coração da estética social. (BERLEANT, 2010, p.95)
Como visto, a experiência estética é uma experiência do sensível, em um escopo que envolve e amplia o espectro da percepção. Como afirmou Frayze-Pereira (2010), “o sensível é o modo de existir do corpo e das coisas”.
Compreendida por Berleant (2010) como uma teoria da sensibilidade, a experiência estética se fundamenta no domínio estético da experiência, enraizada no mundo humano, social. Em resumo, segundo Berleant (2010), podemos considerar dois aspectos principais inerentes a experiência estética:
1- Sensória, que é a primordial
2- A experiência dos significados ou o significado da experiência
Experiência do significado é diferente de conhecimento do significado. Inclui a percepção do significado, a consciência do que acontece no corpo, na nossa totalidade, na ocasião da experiência. Os dois aspectos, considerados como percepção qualitativa do processo natural e do mundo social em seus diferentes ambientes, conferem sentido para a experiência.
A experiência estética parece transcender barreiras que estão ordinariamente separadas das coisas que encontramos no mundo. Frequentemente temos emoções difusas e podemos nos sentir expostos e vulneráveis a forças que não estão próximas das nossas ideias prontas. Alguns percebem como liberdade, outros, como perigo às convenções. (BERLEANT, 2010, p.29)
3.1.1. Qualidades da experiência estética
Então, toda percepção é estética? Sim, é, mas em diferentes gradações (BERLEANT, 2010). Depende do contexto, do ambiente, da qualidade da experiência, dos valores que nela residem, em um espectro complexo, que inclui o bizarro, o erótico, o repugnante ao lado do prazeroso, o bonito e o sublime, como nuances de igual valor. Tradicionalmente, estética é relacionada aos valores da arte e da beleza, no entanto, é importante reconhecer que a estética, por envolver todo o contexto da experiência, abrange um espectro de valores que podemos chamar de negativos e positivos, com o cuidado de observar que tais termos podem nos levar a uma compreensão simplificada. Não se está se referindo, aqui, a polaridades, mas a um largo espectro, complexo e repleto de nuances. Tampouco se refere a crítica negativa, que enquadra a percepção em julgamentos estabelecidos, fora do corpo da experiência, pois se trata é uma atividade intelectual que analisa e confere juízo de valor à experiência. A estética está além da ordem normativa (BERLEANT, 2010). Como experiência sensória, nem sempre é positiva:
Hoje paramos com imprevisto de sons que me atrapalhou. Para quem produziu devia estar bom, mudou o diálogo, o cantar demorou para pegar o ritmo. Som com volume elevado atrapalha-me. (Lori, 60 anos)
Reflexão sobre o som irritante e as sensações que ele provoca para mim: o sentimento de impotência. A resposta pode fazer cessar o barulho. (Ártemis, 48 anos)
Nas experiências relatadas pelos participantes da oficina, observamos uma cena opressiva: o grupo está cantando e subitamente um caminhão de som para embaixo da janela da sala voltada para a rua, tocando em alto volume, invadindo sonoramente o ambiente. Todos param de cantar e retraem-se. Um corte abrupto em uma experiência sensível, que se torna dolorida. Uma experiência estética intrusiva, que cala, ensurdece, reduz a sensibilidade positiva⁸. A experiência estética negativa (BERLEANT, 2010) é aquela onde a experiência sensível não possui valores claramente positivos, experiências que são ofensivas, estressantes ou que provoquem consequências dolorosas:
Quando uma ocasião estética é perceptualmente estressante, repelente, ou dolorosa, ou tem efeitos que são prejudiciais ou destrutivos, a compreensão estética nos obriga a reconhece-los negativamente. Então, nós podemos falar de valores estéticos negativos, de uma estética negativa quando, na primazia da experiência perceptiva, a experiência é inteiramente sentida como insatisfatória, estressante ou prejudicial. A experiência estética nem sempre é benigna. (BERLEANT, 2010, p.158)
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8 Chamamos de negativo aquilo que manipula, ofende, interrompe, restringe, oprime. De positivo aquilo que integra, liberta, que estabelece conexões, amplia.
Como na situação relatada pela participante:
Cheguei triste, perdi a hora de manhã, fiquei chateada e este simples atraso acordou uma fera que tenta dormir dentro de mim. Uma fera passando por um processo de rejeição. E que aguarda que o tempo que sabe todas as coisas sobre todos os amores. No início ainda doía, tive a impressão que estava atrapalhando, me arrependi de ter vindo. (Jandira, 49 anos)
No entanto, mesmo em uma situação estética considerada negativa, podem emergir valores e reflexões que a transformem em positiva, dependendo da qualidade do campo estético em que acontece. Nos casos de Lori e Ártemis, a situação gerou uma ampliação da auto percepção e trouxe a reflexão, para Lori, daquilo que lhe “atrapalha” e, para Ártemis, de que é possível encontrar uma resposta que “pode fazer cessar o barulho”, diante do sentimento de impotência. No caso da Jandira, podemos perceber que ela estava vivendo um processo doloroso, uma experiência sensível de auto percepção modulada por valores negativos sobre si mesma, que transbordou para o campo estético. Ao transbordar, encontrou um campo estético favorável, um contexto, dado pelo canto e pela presença do outro, que permitiu um movimento de reflexão e transformação:
Depois da música “meu limão, meu limoeiro” o amigo cantou para mim: “Tem gente que ama melhor se for rejeitado”. Depois outro amigo sacramentou: “só não maltrate o coração dessa mulher”. É isto. E a mulher que vive em mim falou: pegue esse recado, é para você, continue amando e ame-se ainda mais. Como sempre a música me consola. E as companhias. (Jandira, 49 anos)
O relato de Jandira aborda um outro aspecto importante já apontado nesse estudo: a experiência perceptiva como constitutiva do campo estético no processo social. Como dito anteriormente, a percepção estética não é apenas a experiência direta. É importante reconhece-la como meio pelo qual processamos os valores que dela emergem, como a pedra fundamental dos valores humanos na organização social.
3.1.2. Sensibilidade e engajamento estético
Experiência Estética é uma teoria da sensibilidade, um caminho para entender a sensibilidade:
Se torna cada vez mais claro que a apreciação estética é um engajamento perceptual ativo, usualmente com um objeto, mas sempre em um foco perceptual, por meio de um desenvolvimento da sensibilidade. Eu volto ao reconhecimento de que estética é, em seu fundamento, uma teoria da sensibilidade. Em linha gerais, nos leva a reconhecer a dimensão estética em todas as experiências, quer seja edificante ou degradante, quer dignifique ou brutalize. (BERLEANT, 2010, p.8)
Sensibilidade é muito mais do que sensação: envolve a consciência dos sentimentos, significados, memórias, associações, contexto e qualidade da experiência estética. É tal qualidade que nos faz engajar. Como qualidade, entende-se a experiência que nos leva além dos sensos de separação e divisão, para nos integrar ao campo estético. Engajamento é o mais completo estágio da experiência estética.
Engajamento é um aspecto essencial do mundo em ação, da troca social, dos encontros pessoais e emocionais, do brincar, tocar, dos movimentos culturais e, como conclamamos aqui, da mais direta e intensa experiência, da qual nos aproximamos ainda mais nas situações que envolvem arte, natureza, ou o mundo humano em seu mais íntimo e eloquente caminho. (BERLEANT, 1991, p.44)
Segundo a teoria proposta por Arnold Berleant, sete dimensões perceptuais caracterizam o engajamento estético: acuidade, intensidade, complexidade, sutileza, ressonância, percepção cognitiva, engajamento perceptivo. Todas acontecem simultaneamente. Na relação com a arte, esses aspectos são intensificados, pois se trata do sensível em um campo perceptivo onde a experiência estética e o fazer da arte se encontram:
A arte não se parece com uma experiência, não é um reflexo ou uma imitação da vida real, mas ela é, exatamente, a experiência, presente na forma mais direta e pungente. Arte, então, não é um reflexo pálido da vida e do mundo, mas a coisa real, em sua forma mais clara e mais pura. Experimentamos “o sentir do que é verdadeiro” em nós. Nos descobrimos como parte da experiência presente, seja um judeu, um católico, um comunista, um homossexual, um alcoólatra. Nos conscientizamos da grande incerteza humana, paixões, crises e relações às quais todos estão submetidos e que todos compartilham. Somos mais verdadeiros porque outras pessoas estão mais verdadeiras. Descobrimos a habilidade, como Blake reconheceu, de “ver o mundo em um grão de areia e o céu em uma flor selvagem”. (BERLEANT, 2000, p.102)
O canto como foco da experiência artística cria o campo estético para que a sensibilidade esteja totalmente engajada. Ao engajar-se na ação de cantar, o cantante se torna um com o canto, alargando sua percepção, sua sensibilidade. Os valores intrínsecos à experiência, sentimentos⁹ e conexões exteriorizam-se. De acordo com Berleant, os valores que emergem no engajamento estético não são singulares e homogêneos:
Não são os valores estéticos singulares ou homogêneos. A situação pode conter valores complexos e mesmo incompatíveis. Uma situação dramática, por exemplo, pode ser, ao mesmo tempo, bizarra, patética, estúpida e até mesmo trágica, combinações de diferentes tipos que Harold Pinter era mestre em evocar. Mais ainda, em se tratando dos valores estéticos, não podemos nos consignar a procurar uma qualidade ou característica do objeto como se beleza estivesse simplesmente em um fator adicionado a outros. Nós podemos preferir, como Gilles Deleuze faz, considerar a força da arte que é exercida sobre o corpo e manifestada em sensações. Na visão que trago aqui, valor é inerente ao campo estético ou situação e não a uma característica ou qualidade em particular, tal como o objeto ou o apreciador. Valores designam o caráter da experiência, o que consideramos importante para a vida, para as relações humanas, para a experiência estética. (BERLEANT, 2010, p.157).
Evocados pelo canto, tais valores, sentimentos e conexões podem ser verificados no relato de Carin:
Daqui deste ponto onde a voz começa e expressa meu ser… Em alegria e expansão. Das profundezas do meu centro emana este som; que reverbera em reconhecimento e reencontro, conhecimento e encontro, o novo e o velho se encontrando, e explorando esta própria descoberta. Alegria e verdade se manifestam… E meu ser vibra em comunhão. Retornando ao centro, me sinto reintegrando minhas partes; partes que se encontram num espaço dentro de mim. Com alegria que brota do canto, da troca, dos olhares e sorrisos de reconhecimento, celebro a presença e meu canto que reverbera. Sinto gratidão, alegria e comunhão. Sinto meu coração se abrindo em presença amorosa. Gratidão pela oportunidade! (Carin, 36 anos)
O relato de Carin é um exemplo vívido daquilo que chamamos de engajamento estético. Todo foco perceptual está na experiência, ativando conexões, memórias, sensações e sentimentos. Como nos conta em seu diário, na criação de novos movimentos, um encontro consigo mesma: “me sinto reintegrando minhas partes, partes que se encontram em um espaço dentro de mim”. Podemos verificar que tal engajamento possibilitou novas compreensões em um corpo envolvido, ativado e presente em um campo estético sensível gerado e intensificado pelo canto, que permitiu o alargamento da sensibilidade, um sentimento de comunhão consigo mesma e com o outro. Na troca de olhares e sorrisos de reconhecimento, quaisquer diferenças foram ultrapassadas. O relato revela a integridade e unidade da experiência, característicos do engajamento estético.
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₉ De acordo com Antônio Damásio (1996), no que diz respeito aos sentimentos, podemos considera-los como a compreensão de estados do corpo que designam uma emoção. Como descreveu Willian James: “É-me muito difícil, se não mesmo impossível, pensar que espécie de emoção de medo restaria se não se verificasse a sensação de aceleração de ritmo cardíaco, de respiração suspensa, de tremura dos lábios e de pernas enfraquecidas, de pele arrepiada e de aperto no estômago. Poderá alguém imaginar o estado de raiva e não ver o peito em ebulição, o rosto congestionado, as narinas dilatadas, os dentes cerrados e o impulso para ação vigorosa, mas, ao contrário, músculos flácidos, respiração calma e um rosto plácido? ”. (JAMES, W. apud DAMÁSIO, 1996, p.158)
3.1.3. O Ser no engajamento estético proporcionado pela arte por meio do canto
É no encanto do canto que se dá o Ser (HESÍODO, 1992)
3.1.3.1 O canto como música
“Acredita-se que cada ancestral totêmico, ao viajar pelo país, tenha espalhado uma trilha de palavras e notas musicais ao longo de suas pegadas… Essas Trilhas de Sonhos acham-se sobre a terra como “vias” de comunicação entre as tribos mais distantes. [Elas] (…) vagueavam pelo continente no Templo-dos-Sonhos cantando o nome de tudo o que cruzava o seu caminho — aves, animais, plantas, rochas e fontes de água — e, assim, fizeram com que o mundo existisse através do canto.” (CHATWIN, B., 1981, p.2).
Quando falamos do fazer da arte por meio do canto, estamos nos referindo a um modo de fazer música. Um fazer ancestral que remete aos primórdios da humanidade:
Não há povos ou tribos que não tenham música, por mais primitivos que sejam. Onde quer que exista a fala, existe também a canção. As harpas de Ur e os discos sonoros da floresta da Malásia, são testemunhas do fato que a música é mais antiga do que os registros históricos. Não há nenhum argumento real contra a suposição de que a música é coeva à linguagem e a aparição da raça humana no tempo se anuncia igualmente em palavra e som. Sobre esta música dos primórdios, nós que testemunhamos sua fase culminante, estamos tão afastados, na verdade tão distantes que a perdemos de vista. (ZUCKERKANDL apud PETRÁGLIA, M., 2015, p. 154).
Com isto, como dito anteriormente, considera-se que a habilidade de cantar é natural e inata no ser humano, compõe a sua musicalidade e é a forma primeira para sua conexão e expressão na sua relação consigo mesmo e com o mundo que percebe ao redor. Como afirma Zuckerkandl:
Musicalidade não é propriedade de indivíduos, mas atributo essencial da espécie humana. A implicação não é que alguns homens são musicais enquanto outros não o são, mas que o homem é um animal musical, isto é, um ser predisposto à música e com necessidade de música, um ser que para sua plena realização precisa se expressar em tons musicais e deve produzir música para si mesmo e para o mundo. Neste sentido, musicalidade não é algo que alguém pode ter, mas algo que — junto com outros fatores — é constitutivo do ser humano. (ZUCKERKANDL apud PETRÁGLIA, 2015, p.157).
Mas, o que é música? Segundo Berleant (2012), experiência em geral e a experiência musical em particular, é um fenômeno complexo que envolve uma série de fatores, eventos e condições para acontecer. Para ele, a palavra “música”, na conotação Quando falamos do fazer da arte por meio do canto, estamos nos referindo a um modo de fazer música. Um fazer ancestral que remete aos primórdios da humanidade:
Não há povos ou tribos que não tenham música, por mais primitivos que sejam. Onde quer que exista a fala, existe também a canção. As harpas de Ur e os discos sonoros da floresta da Malásia, são testemunhas do fato que a música é mais antiga do que os registros históricos. Não há nenhum argumento real contra a suposição de que a música é coeva à linguagem e a aparição da raça humana no tempo se anuncia igualmente em palavra e som. Sobre esta música dos primórdios, nós que testemunhamos sua fase culminante, estamos tão afastados, na verdade tão distantes que a perdemos de vista. (ZUCKERKANDL apud PETRÁGLIA, M., 2015, p. 154).
Com isto, como dito anteriormente, considera-se que a habilidade de cantar é natural e inata no ser humano, compõe a sua musicalidade e é a forma primeira para sua conexão e expressão na sua relação consigo mesmo e com o mundo que percebe ao redor. Como afirma Zuckerkandl:
Musicalidade não é propriedade de indivíduos, mas atributo essencial da espécie humana. A implicação não é que alguns homens são musicais enquanto outros não o são, mas que o homem é um animal musical, isto é, um ser predisposto à música e com necessidade de música, um ser que para sua plena realização precisa se expressar em tons musicais e deve produzir música para si mesmo e para o mundo. Neste sentido, musicalidade não é algo que alguém pode ter, mas algo que — junto com outros fatores — é constitutivo do ser humano. (ZUCKERKANDL apud PETRÁGLIA, 2015, p.157).
Mas, o que é música? Segundo Berleant (2012), experiência em geral e a experiência musical em particular, é um fenômeno complexo que envolve uma série de fatores, eventos e condições para acontecer. Para ele, a palavra “música”, na conotação que lhe é dada atualmente, não é capaz de abarcar inteiramente a ocasião da experiência. Ainda segundo Berleant, música pode ser entendida como a experiência humana diante do fenômeno acústico, como uma arte socioambiental: Como então, devemos compreender música? Como podemos entender música em termos próprios? A questão tem sido frequentemente perguntada, especialmente desde Hanslick e permanece sendo debatida. Deixe-me aproximar-me da questão indiretamente, para localizar a música mais do que a descrevendo, como tenho feito até aqui, falando das suas manifestações e modos de trabalha-la, como na composição e na performance. Nós podemos fazer isso pensando na música como uma arte ambiental, não nos referindo à musica ambiental ou à música no ambiente, mas como um caminho para caracterizar a experiência musical. Primeiro, deixe-me dizer que música não é abstrata. De fato, é talvez a mais concreta, presente e especificamente localizada das artes. Isto é, música ocorre. Ocorre no espaço-tempo. Sua manifestação é direta e imediata e, como evento, ela é sempre contextual, em outras palavras, ambiental. Pesquisadores tem se engajado em intermináveis debates sobre o que constitui o objeto musical: a efemeridade do som, a partitura, a performance tradicional e outras mais. Mas eu penso que a questão está mal colocada, pois não há objeto musical, como não há objeto estético, não há objeto como tal. Falar desse modo é oferecer uma abstração no lugar de uma experiência, hipnotizar a experiência. Mais ainda, a tendência, de fato, a implicação em introduzir a ideia de objeto musical (ou qualquer outro objeto) é que há alguma coisa fora, independente de nós, para ser localizada e identificada, alguma coisa separada e apartada que necessita ser compreendida. Mas música não é um objeto, assim como ambiente não é um lugar separado de nós. Com efeito, a noção comum de ambiente como algo fora, como entorno, envolve o mesmo processo objetificante que trata a música como objeto. Eu tenho tentado longamente explicar ambiente como o campo contextual que inclui a participação humana, não como parte separada, mas como um fator integrado. Similarmente, como participantes na experiência musical, nos tornamos parte da música ou, falando mais precisamente, somos participantes ativos e, engajados no processo musical, contribuímos com nosso componente criativo. (BERLEANT, 2012, p.34)
Complementando a perspectiva de Berleant (2012), Marcelo Petraglia (2010) nos orienta para uma definição abrangente, múltipla e interdisciplinar, que procura abarcar todo o espectro daquilo que podemos compreender sobre o que é música e o fazer musical:
De modo a tornar esta definição de música mais operante para este estudo, gostaria de acrescentar o seguinte: música é, portanto, uma expressão humanizada da natureza. Música é cultural na medida em que revela a natureza (e o próprio ser humano enquanto dimensão indissociável da mesma) ao engendrar uma estrutura sonora, formal e autônoma por meio da intencionalidade criativa e original do ser humano. É motivada por um sujeito que reconhece leis objetivas e sistêmicas de tons e tempos e as imprime na dimensão acústica da realidade. É cultural pois é modelada pelo paradigma vigente e compartilhado, de uma cultura e de uma época. É revelação de vida, pois articula e tem como base o movimento e o tempo, processos estes subjacentes a tudo que nasce, cresce, vive e morre. É sonora pois é transmitida por um suporte acústico e vivenciada internamente por meio do processo auditivo, que o conduz o fenômeno acústico através do ouvido, até a última instância do processamento neurológico e sua transmutação em experiência auditiva e estética. É formal pois articula, segundo um “pensamento musical”, um conjunto de significados repertoriados na cultura e fundamentados na acústica. É autônoma e tem vida própria, pois, uma vez criada, transcende sua substancialidade (fato acústico) e o impulso original, humano (sentimento, movimento, ato cognitivo), que levou à sua criação e manifestação, adquirindo uma existência e significado per si; de modo que se pode ter uma criação musical perenizada enquanto obra. Acredito que entender a música nestas múltiplas camadas de significado será necessário para que se possa lidar, de forma mais apropriada, com os resultados encontrados nesta pesquisa, e poder compreendê-los numa perspectiva ampliada da relação música-ser humano. A partir do que foi dito acima, pode-se caracterizar o “fazer musical” como o ato de realizar o impulso musical natural, com os recursos que se tem, seja individualmente ou em grupo, de forma intuitiva ou estudada. Ao manifestarmos ativamente nosso ser musical por meio do corpo e, em especial, da voz cantada, somos todos músicos, e expandimos nossa natureza humana ao tornarmos audível aquilo que existe sob forma de potência criativa dentro de nós.(PETRAGLIA, 2015, p.37)
Há muitas maneiras de se fazer música, assim como existem infinitas formas do humano de percebê-la e compreendê-la como tal. Como fenômeno perceptivo, depende do contexto, da cultura, do ambiente em que acontece. Não se pretende, neste trabalho, aprofundar nos caminhos históricos pelos quais se constituiu a música no ocidente, onde, como aponta Berleant (2012), definiu-se um modo de percebê-la como objeto apartado do humano. Seja como for, qualquer que seja o modo pelo qual se constitui, para que a música exista é necessário alguém que a ouça, crie, expresse e aprecie. Segundo Berleant, essas quatro ações compõem uma totalidade e não devem ser pensadas isoladamente. Cada uma envolve e requer a outra e todas e, juntas, constituem um campo estético, uma situação musical, um ambiente musical, que nos engaja na experiência, envolvendo todos os sentidos:
O que faz tal situação estética é que o centro em torno do qual a experiência apreciativa acontece, que é primariamente perceptivo, envolve todos os sentidos, não só o auditivo, mediados e formados através de múltiplos fatores culturais que afetam a percepção e que, por ela, conferem um valor. Chamar uma situação de estética, então, identifica o tipo de experiência normativa complexa na qual nos engajamos, aqui com a música, em outro momento com outras artes, em outros domínios da experiência. (BERLEANT, 2010, p.48)
Assim, o canto como música é uma experiência estética da ordem do sensível, onde a pessoa está totalmente imersa e presente no fazer da arte. Ou seja, com atenção plena e corpo presente, engajada em um campo estético onde todas as dimensões perceptivas estão acontecendo. Trata-se de uma experiência de descoberta e de expressão de si mesmo, com o outro. Como expressão, entende-se a incorporação ativa de algo que envolve o sujeito por completo, transborda e se torna visível para o mundo, evidenciando um modo estético de ser em seus movimentos, desvelado em sua voz. Afirma-se, aqui, a primazia do corpo como reduto sensível de toda experiência, cuja expressão, proporcionada pelo canto, inclui a compreensão, pelo cantante, daquilo que expressa.
3.1.3.2. O canto como arte
Por conseguinte, pode-se considerar o canto como arte. A palavra arte, do latin Ars-tis, significa “habilidade em fazer”. Observando a etimologia, podemos conceber que tal fazer é imbuído de uma função, pois habilidade refere-se a um refinamento da destreza para a realização de algo. Dewey, filósofo, pedagogo, fundador do pragmatismo americano, sustenta que a arte é “a mais direta e completa manifestação que existe da experiência como experiência” (DEWEY apud CUNHA, M.V. 2015, p.75) e que a função da arte é conscientemente restaurar “a união dos sentidos, da necessidade, impulso e ação da criatura viva” (DEWEY apud BERLEANT, 1991, p. 17). É o processo de transformar em fazer aquilo que apreendemos e dar forma à experiência, que é estética “em si”, em um processo continuo: “Mais uma vez: a arte é um fazer. Mas um fazer específico. Ou seja, é um tal fazer que, enquanto faz, inventa o por fazer e o modo de fazer”. (FRAYZE-PEREIRA, 2005).
O canto como arte integra e restaura as dimensões do cantante consigo mesmo e com o que está ao seu redor. Ao compartilhar o canto, reconhece-se compondo e composto pelo ambiente no qual a experiência estética e arte ocorrem de forma unificada, o que faz com que a intensidade do foco da experiência perceptiva seja amplificada em um campo estético onde o cantante emerge como canto e canção: quando canta, o sujeito se torna canção, cria e escreve a narrativa sonora de sua existência, ativa todo o seu ser, faz-se sensível ao outro e ao ambiente que o envolve.
Inerente ao ambiente onde ocorre, o Ser da arte, no engajamento estético proporcionado pelo canto, assim como em outras artes, é sempre pessoal, social e político: pessoal porque, como dito antes, cada Ser percebe ativamente e expressa o mundo a sua maneira; social porque há sempre um contexto onde tal fazer acontece, criado por todos que o compõem; político, porque modifica o ambiente ao alargar a sensibilidade, abrindo a possibilidade para a percepção e criação de novas realidades.
3.1.3.3 O corpo do canto
Hoje no início do encontro percebi/lembrei-me da minha escuta. Engraçado que esse ano foi a primeira vez que percebi que escuto muitas coisas diferentes da maioria das pessoas. Em outros tempos eu diria que a minha escuta é “distorcida” mas hoje percebo e entendo que ela é menos comum. Esse reconhecimento pode me ajudar a perceber ainda mais como escuto, como permito que os sons vindos do mundo vibrem em mim. Ando refletindo sobre a minha escuta na vida diante dessa constatação/percepção. Sempre pensei que tinha uma escuta aberta e receptiva para o que vem. Estou me percebendo diferente agora. É uma sensação parecida que sinto comparada aos momentos em que percebi /fui percebendo minhas assimetrias, desvios, ’imperfeições’’. (Gabi, 39)
O primado do corpo em toda e qualquer experiência deve ser reconhecido. Esse reconhecimento passa por ultrapassar a dualidade cartesiana que separou o corpo em partes, reduzindo-o a uma mera máquina de sensações, tornando-o um invólucro incômodo, mas necessário para abrigar os pensamentos e ideias advindos da concepção de uma mente separada e superior a ele, abstraindo-o de sua profundidade. Na incorporação ativa do mundo, o corpo é o lugar onde reside a experiência, de onde surge toda e qualquer percepção, compreensão e expressão. A escuta interna e a escuta do mundo são camadas que residem em um corpo perceptivo: é a partir dele que a pessoa percebe a si mesma e ao outro, que compreende o mundo ao seu redor e expressa seu modo de ser. Um corpo que ocupa um lugar físico no mundo, um espaço e um tempo, onde a experiência sensível acontece. Um corpo estético:
Nós podemos pensar em um corpo estético, então, como culturalmente modelado, entrelaçado e embebido em uma complexa rede de relações, cada qual com um caráter e dinâmica distintos. Raça, classe, gênero e geografia, são vividas através de formas e estruturas corporais. Essas diferentes estruturas culturais, sexuais, raciais e sociais, estão inseridas em corpos vivos. O corpo estético, como receptor e gerador da experiência sensorial, não é estático ou passivo, mas possui sua própria força dinâmica, mesmo quando inativo. A incorporação estética está acontecendo, completamente presente, através da presença característica do corpo, por meio do foco e da intensidade sensoriais que nós associamos com a experiência da arte. (BERLEANT, 2004, p.10)
É o corpo que se engaja na experiência:
É o corpo que permite a pregnância das experiências auditivas, táteis e visuais, fundando a unidade predicativa do mundo percebido que, por sua vez, servirá de referência à expressão verbal e à significação intelectual. Nesse sentido, não é ao objeto físico que o corpo é comparável, mas sobretudo à obra de arte. Quer dizer: uma pintura, um poema, uma peça musical são indivíduos, isto é, seres nos quais não é possível distinguir a expressão daquilo que exprime, cujo sentido só é acessível mediante o contato direto, sem que abandone seu lugar espacial e temporal. (FRAYZE-PEREIRA, 2005, p.182).
Um corpo sensível, perceptivo e vibrante, um corpo vivo:
Os indivíduos cujos corpos estão cheios de vida e vibrantes conseguem sentir a realidade de seu ser e podem ser descritos como pessoas sensíveis. A sensibilidade é a qualidade de uma pessoa que está plenamente viva (LOWEN, A., 1990, pp. 36–219).
A partir destas influências, falamos, neste estudo, do corpo em uma atividade artística específica: um corpo que é constituinte e constituído pelo canto, na relação consigo mesmo e com o outro. O corpo do canto:
Senti o calor no meu corpo todo aumentar logo no início dos cantos. E hoje está um pouco frio. Frio que nem sinto mais…Calor, vibração que permanece, energizando meu corpo, meu olhar, meu sentir, minha relação com o outro. (Monique, 46 anos)
Cantar é uma atividade essencialmente corporal. Um corpo emocionado que traz dentro de si o registro de todas as experiências vividas, que cria marcadores somáticos¹⁰ que modelam uma forma e um modo de ser e agir no mundo que definirão a qualidade sonora e expressiva daquele que canta. Movendo-se em direção a si mesmo, fala a todos os seus sentidos em um movimento unificado:
Ou seja, os aspectos sensoriais de uma coisa constituem conjuntamente uma mesma coisa, como o olhar, o tato e todos os outros sentidos são conjuntamente os poderes de um mesmo corpo integrados em uma única ação. Em suma: os sentidos se comunicam. E, paradoxalmente, isso ocorre porque o corpo é uno. (FRAYZEPEREIRA, 2010, p.177)
Assim, o corpo do canto impõe o aprofundamento de um tipo específico de percepção que envolve a escuta dos movimentos internos que o constituem e a apreensão das suas possibilidades expressivas na descoberta de uma linguagem que o comunica em cada gesto, em cada olhar, em cada som que manifesta. Um ser sonoro que encontra no corpo o eco motor da sua expressão:
Entre meus movimentos, existem alguns que não conduzem a parte alguma, que não vão nem mesmo procurar no outro corpo sua semelhança ou seu arquétipo: são os movimentos do rosto, muitos gestos e, sobretudo, estes estranhos movimentos de garganta e da boca que constituem o grito e a voz. Tais movimentos terminam em sons e eu os ouço. Como o cristal, o metal e muitas outras substâncias, sou um ser sonoro, mas a minha vibração, essa é de dentro que a ouço; como disse Malraux, ouço-me com minha garganta. E nisto, disse ele também, sou incomparável, minha voz está ligada a massa de minha vida como nenhuma outra voz. (MERLEAU-PONTY, 1964, p.140).
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¹⁰“Em suma, os marcadores somáticos são um caso especial do uso de sentimentos gerados a partir de emoções secundárias. Essas emoções e sentimentos foram ligados, pela aprendizagem, a resultados futuros previstos de determinados cenários”. (DAMÁSIO. A, 1996, p.206)
O ser sonoro, aconchegado pelo corpo do canto evidencia, para aquele que canta, que ao cantar ele se torna visível e vidente, cantado e cantante, ouvinte e audível, tocante e tocado, para além do corpo na densidade da matéria:
Ainda mais uma vez: a carne de que falamos não é a matéria. Consiste no enovelamento do visível sobre o corpo vidente, do tangível sobre o corpo tangente, atestado, sobretudo quando o corpo se vê, se toca vendo e tocando as coisas, de forma que, simultaneamente, como tangível, desce entre elas, como tangente, domina-as todas, extraindo de si próprio essa relação, e mesmo essa dupla relação por deiscência ou fissão de sua massa (MERLEAU-PONTY, 1964, pag.141).
Incomparável em seus movimentos, revela em sua voz toda extensão de uma existência ancorada em uma experiência estética singular, exposta no relato emocionado de Lícia:
Ainda ecoa dentro de mim um canto, um brado de cabocla. No alto da minha cabeça, um canto contínuo e agudo atemporal, alinha meu corpo inteiro. Eleva meus pensamentos, o meu ser estar, em estado de gratidão e alegria. Como suportar os atravessamentos? Apoio em oposição e não perco o eixo, o sentido, o estado. Volto a atenção ao propósito de aqui estar, crio conexão. Há uma coluna de ar que voluntariamente sustenta o meu cantar. Há lembranças do passado e a dádiva do presente! (Lícia, 36 anos).
Em suma, o canto entrelaça a expressão de uma estética única e pessoal no corpo daquele que canta. O cantor se torna cantante em um corpo receptivo que o revela e que é revelado por ele. Um ser estético em si, que se move à sua maneira, deslocandose para dentro de si mesmo para transitar do ouvir interno para a escuta do mundo, tornando-se ao mesmo tempo obra de arte e artista, em uma trama expressiva do sensível (FRAYSE — PEREIRA, 2010, pg. 185). Reflexivo e autoconsciente, o cantante debruça sobre si mesmo na ação de cantar:
Perceber os sons cada vez mais. Aguçar os sentidos e despertar a consciência de que meu corpo todo vibra e todo o corpo participa da emissão do som. Perceber as sutilezas que acontecem com um simples movimento de língua, de lábios, do controle do ar. A qualidade do som que vibra em mim e que vibra em todos entrando em sintonia. Harmonização do som refletindo no espaço, em nós, em nossa alma. (Beth, 52 anos)
3.2. As bordas do tempo
1º de maio 1914. A aula desse dia começou às 10h. Chegamos mais ou menos 30 alunos. E foi muito animada. Teve um tempo de 2h e terminou ao ½ dia. (Leônidas, 86 anos)
Hoje, 9 de maio. Viver o canto que todas as mães sejam felizes com todos e tudo que elas têm. Hoje, 24 de maio que foi aceito agora. Maio são flores a pastorear que visita Maria mãe de Jesus (João, 71 anos).
Hoje o dia está frio. A sensação é que demoramos mais tempo para que o grupo funcionasse (Mauro, 58 anos)
Lembrei-me de quando tinha 18 anos. Fiquei alegre, melhorou a respiração. (José, 75 anos)
Esta semana estava pensando sobe isso, qual a minha história de vida? O que trago desses anos vividos? (Luci, 43 anos)
Que pena! Que pena! Que pena! Por hora… Só por hora… acabou! (Regiane, 60 anos)
No fluxo do tempo se encontram as bordas que constituem a percepção da temporalidade neste trabalho: o tempo constituído, o tempo na experiência estética — que inclui o tempo na música e no canto — e o tempo da memória. No relato de Leônidas, observa-se o tempo medido como referência de duração e localização: a aula começa às 10h, dura duas horas e termina ao meio dia. Ali, observa-se também o contorno para o tempo da experiência: foi muito animada. Também podemos verificar o “fora do tempo”, quando ele assinala a data de 1 de maio de 1914. Será o tempo da memória ou será que o tempo lhe escapou? O que guarda essa data, que aparece assinalada em seu diário como sendo o dia do nosso encontro? Seja como for, estava presente naquele momento. Tempos que se tocam e que acontecem simultaneamente, que transitam pelas dimensões do nosso ser, onde o tempo não é uma linha, mas uma rede de intencionalidades (MERLEAU-PONTY, 2014, p.558).
As diferentes percepções sobre o tempo serão o tema deste capítulo. Não aquelas que partiriam de uma análise filosófica aprofundada, mas, sim, as que emergiram da experiência dos cantantes, colocadas em perspectiva na relação com a experiência estética tecida pelo canto.
3.2.1. O tempo constituído
Cheguei triste, perdi a hora de manhã, fiquei chateada e este simples atraso acordou uma fera que tenta dormir dentro de mim. Uma fera passando por um processo de rejeição. E que aguarda o tempo que sabe todas as coisas sobre todos os amores. (Jandira, 49)
O tempo constituído surge, em princípio, como forma de regulação das atividades humanas em comunidade, nas sociedades tradicionais e pré-industriais. Intrínseco às tarefas cotidianas, é enraizado no ritmo, na pulsação e nas circunstâncias particulares de cada comunidade, configurando um tipo de tempo qualitativo e heterogêneo, um tempo social, como é definido pelos sociólogos Pitrin Sorokin e Robert Melton (apud INGOLD, 2011, p.9) e que, segundo Tim Ingold (2011), emerge não só dos movimentos humanos, mas ressoa com o ambiente nos movimentos das marés, dos ventos, do dia e da noite, das estações, criando uma unidade na experiência.
A partir da revolução industrial, o tempo tornou-se ordenador do processo social e das linhas de produção, estabelecendo uma clara divisão entre os domínios da vida social e do trabalho (INGOLD, 2011). Colocado como objeto fora de nós, o “tempo do relógio” instituiu-se a partir da crença de que é apreendido por todos de uma mesma maneira, de forma homogênea e quantitativa. Percebido como uniforme, nivela¹¹ os acontecimentos, colocando “em linha” — passado, presente e futuro sucessivamente — e, com isto, a direcionando as pessoas para uma vida previsível, na qual os valores¹² para sua manutenção são estabelecidos e as emoções são controladas. Identificado com o valor do dinheiro, este modo de organizar o tempo determina novas diretrizes para as relações sociais ao ampliar seu domínio sobre a produção e o consumo, significando a existência. Assim, o tempo “objetificado” influencia de forma contundente nosso modo de ser e perceber a nós mesmos e aos outros, no entendimento das nossas competências, da nossa sensibilidade, nos valores que adotamos. Na nostalgia de um ritmo coexistente alinhado ao ser, espera-se, com um misto de angustia e alivio, o momento futuro onde se poderá recuperar o “tempo perdido”, gerado pela separação entre vida e trabalho, como podemos observar no relato de Jandira quando, enfurecida seu pelo atraso e sentindo-se rejeitada, diz esperar pelo tempo que sabe todas as coisas sobre todos os amores.
Por outra perspectiva, no relato de Luci, quando pergunta a si mesma qual sua história de vida e o que traz dos anos vividos, observamos a reflexão e o entrelaçamento entre o tempo constituído, histórico, e o tempo vivido. Bordas que se encontram no trânsito da existência e que integram seu registro final. Para Merleau-Ponty, o tempo constituído, desdobrado em passado, presente e futuro não é mais tempo, pois, para ele, é essencial ao tempo fazer-se ser:
O tempo constituído, a série das relações possíveis segundo o antes e o depois não é o próprio tempo, é seu registro final, é o resultado de sua passagem que o pensamento objetivo sempre pressupõe e não consegue apreender. Ele é espaço, já que seus momentos coexistem diante do pensamento, é presente, já que a consciência é contemporânea de todos os tempos. Ele é um ambiente distinto de mim e imóvel em que nada passa e nada se passa. Deve haver um outro tempo, o verdadeiro, em que eu apreenda aquilo que é a passagem ou o próprio trânsito. (MERLEAU-PONTY, 2014, p.556)
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¹¹ Pela perspectiva de Merleau Ponty, o tempo como objeto imanente de uma consciência é um tempo nivelado. Em outros termos, não é mais tempo. Só pode haver tempo se ele não está completamente desdobrado, se passado, presente e porvir não têm o mesmo sentido. (MERLEAU-PONTY, 2014, p. 556)
¹² O estabelecimento do tempo “em linha” e a identificação do tempo como o dinheiro delimitou valores que podemos verificar em frases como: “tempo é dinheiro”, “ todo homem tem seu preço”, o “tempo livre” em oposição ao “tempo do trabalho” definido pelo relógio, “é preciso pensar no futuro”, entre outros.
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3.2.2. O tempo na experiência estética
O tempo não é feito para ser conhecido, mas para ser vivido. (Cioram, E., 1964, p.177)
Desse modo, chegamos ao tempo na experiência. O tempo vivido, daexperiência do sentir, constituído em Kairós ¹³, que está para além do tempo medido em Kronos ¹⁴, está presente em todos os relatos que conduzem essa investigação. Um tempo incorporado, onde o sujeito se reconhece engajado na unidade da experiência, em seu modo de ser¹⁵ e de perceber a si e ao mundo. No relato de Amauri, ao dia frio é atribuída sua sensação em relação a demora para ele e o grupo “aquecerem-se”; no relato de João, o tempo é marcado poeticamente pelas festas e datas comemorativas que movem seus afetos e lembranças. Experiências de tempo que relembram aquelas mencionadas por Tim Ingold (2011), no tópico anterior, acerca dos primórdios do tempo constituído pelo ser e sua relação com o todo da paisagem em que vive, qualitativo e heterogêneo que é, simultaneamente, um tempo social. Falam, também, de um modo de perceber que é singular ao sujeito que percebe e que apreende aquela realidade à sua maneira. Tratam de um tempo presente, que ocorre em um contexto único: o clima estava frio naquele dia, provocando uma sensação corporal que influiu na percepção do tempo, que delimitou uma possível compreensão da situação, assim como a festa e as datas comemorativas, apreendidas no decurso do tempo transcorrido, registraram uma experiência vivida no presente. Como dimensão do nosso ser, a percepção do tempo desenrola-se em um “campo de presença”, como afirma Merleau- Ponty:
É em meu “campo de presença”, no sentido amplo — neste momento em que passo a trabalhar tendo, atrás dele a jornada transcorrida e, diante dele, o horizonte da tarde e da noite — que tomo contato com o tempo, que aprendo a conhecer o curso do tempo. (MERLEAUPONTY, 2014)
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¹³A palavra Kairós, em grego, significa o momento certo ou oportuno. Refere-se a percepção emocional, significativa do tempo.
¹⁴Kronos, em grego, refere-se ao tempo medido pelo relógio, sequencial, linear e objetivo, relatado no tópico sobre o tempo constituído, e que se torna dominante, principalmente, a partir da revolução industrial.
¹⁵ Para Roman Ingarden (1964), modos de ser referem-se ao modo de existir e ao momento de existir, onde o real é o que está manifesto, para cada um, em sua percepção do presente, na sua realização, que inclui todos os aspectos que envolvem o contexto da experiência.
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Na experiência estética proporcionada pela arte, o campo estético e o campo de presença se entrelaçam. No engajamento do fazer da arte, os sentidos estão totalmente imersos e envolvidos. Nos encontramos no coração da experiência do tempo. Um tempo que se torna eterno e, ao se tornar eterno,¹⁶ acontece totalmente no presente, apreendido em seus resultados:
Sob a intencionalidade de ato ou tética, e como sua condição de possibilidade, encontramos uma intencionalidade operante, já trabalhando antes de qualquer tese ou juízo, um “logos do mundo estético”, uma “arte escondida nas profundezas da alma humana” e que, como toda arte, só se conhece em seus resultados. (MERLEAUPONTY, 2014, p.575).
Seu valor não está na duração, mas na intensidade e profundidade com que é vivido. Tal intensidade acontece no corpo, prova da nossa existência no mundo. Um corpo “aqui”, que, intensificado pelo fazer da arte, neste caso pelo canto, apreende em profundidade “algo que não acaba”, como observamos no relato de Regiane, quando nos conta sua experiência e inclui todos que participaram dela:
Hoje foi muito rápido, não vi o tempo passar. O que aprendemos e vivemos aqui não acaba, não tem fim. Está em mim, está em todos nós que tivemos esta experiência maravilhosa. (Regiane, 60 anos)
Pode-se pensar, então, que na experiência estética intensificada pela arte, o tempo constituído surge como borda para dar continência ao tempo da experiência. Na maior parte dos diários de bordo, a palavra “hoje” foi constantemente assinalada. Bordas que se encontram e transpassam, transitam e fluem, criando o tempo e o espaço para a constituição do campo estético e de presença, onde o fenômeno ocorre. Espaço que é presentemente ocupado pela temporalidade corporificada na ação de cantar, vivida no sujeito que canta. Podemos, aqui, exemplificar em trechos dos relatos de Julia (31 anos) e Gabi (39 anos), respectivamente:
17/05/2014
Hoje tive uma descoberta com a minha respiração. Encontrei um ponto em que a voz fluiu sem esforço. Foi muito bom!
24/05/2014
Hoje senti um pouco de dificuldade de cantar. Estou no início de uma gripe e minha garganta está irritada. Mas também foi um aprendizado, no sentido de não forçar meu corpo e me abrir para ouvi-lo, sentir os limites e respeita-los. Fiquei muito emocionada e o sentimento de saudade esteve bem presente.
31/05/2014
Hoje me senti fechada, fui pouco afetada pelo canto e estava pouco presente.
14/06/2014
Hoje eu estava mais aberta. Ter trazido a música que minha mãe cantava e compartilha-la com o grupo foi muito bom. Trouxe-me muita ALEGRIA. (Julia, 31 anos)
17/05/2014
Hoje foi engraçado. Senti mais meus ombros e pescoço tensionados no final da aula. Geralmente é o contrário. Penso que pode ter a ver com o fato de que hoje senti claramente a expansão e compressão do ponto abaixo do umbigo. Talvez tenha forçado para sentir, foi uma nova percepção de mim. Emocionei-me ao ver seu José voltando hoje para o grupo. Ao mesmo tempo, sinto que me ouvi bastante. Estive conectada com a escuta da minha própria voz. Senti-me mais em mim.
24/05/2013
MEMÓRIAS E POSSIBILIDADES. Esta foi e está sendo a sensação de hoje. Cantar em mim de lugares diferentes, acessando partes diferentes de mim. Gostei muita da canção inicial “será minha a tua voz, será minha? Será tua a minha voz, será tua”?
Enquanto cantava, ouvia outras vozes ao redor de mim, que se misturavam e se separavam.
31/05/2014
Hoje me percebi cantando junto. Senti o poder do grupo transformando cada um. Um dia de encontros.
07/05/2014
Hoje gostei muito de ouvir algumas histórias das músicas na vida de cada um. Senti-me me conhecendo e me reconhecendo com os cantos do Y Francês e o pensamento nas vogais. Estou em mim.
Registro 5- 14/06/2014
Estou em mim. Foi uma delícia o encontro hoje. Senti-me mais aberta para o encontro comigo, com cada um, com o espaço. Sinto-me. Continuo sentindo as vibrações. (Gabi, 39 anos)
O “Hoje” de cada encontro configura uma percepção onde o tempo presente é também espaço. Não está “fora”, mas compõe a percepção de ser no mundo e a descoberta do seu modo de existir. Como afirma Gabi, “Estou em mim. Senti-me mais aberta para o encontro comigo, com cada um, com o espaço. Sinto-me. Continuo sentindo as vibrações”. Assim, o tempo da experiência caracteriza-se por um estado de ser pleno em um corpo sensível que ocupa um lugar “aqui”, no espaço da eternidade do momento presente.
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¹⁶ “Qual é então esse tempo desperto que a eternidade se enraíza? Ele é o campo de presença no sentido amplo, com seu duplo horizonte de passado e de porvir originários e a infinidade aberta dos campos de presença findos ou possíveis. Só existe tempo para mim porque estou situado nele, quer dizer, porque me descubro já envolvido nele, porque todo o meu ser não me é dado em pessoa, e enfim porque um setor do ser me é tão próximo, que ele nem mesmo se expõe diante de mim e não posso vê-lo, assim como não vejo o meu rosto. Existe um tempo para mim porque tenho um presente. É vindo ao presente que um momento do tempo adquire a individualidade indelével, o “de uma vez por todas” que lhe permitirão, em seguida, atravessar o tempo, e nos darão a ilusão da eternidade. Nenhuma das dimensões do tempo podem ser deduzidas das outras. Mas o presente (no sentido amplo, com seus horizontes de passado e de porvir originários) tem, todavia, um privilégio porque ele é a zona onde o ser e a consciência coincidem.” (MERLEAU-PONTY, 2014, p.568)
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3.2.2.1. A percepção do tempo no fazer musical pela experiência estética tecida pelo canto
A música, o inteirado da música, às vezes cativava: bonito como o dinheiro… A música derretia o demorado das realidades. Mas dava receio. Assim, a música amolecia a sustância de um homem para as lidas, dessorava o sobresser. (ROSA, 1964, p.164).
A percepção do tempo no fazer musical¹⁷está presente nos tópicos e relatos descritos até aqui, pois é inerente à experiência estética tecida pelo canto. Falar do tempo na música e no canto envolve múltiplos fatores que vão da experiência pessoal, ambiental e cultural ao fenômeno acústico em si, o que exigia um aprofundamento maior do que aquele que se dispõe aqui. Neste item, tratar-se-á, de forma objetiva, do que interessa a este estudo, que é a experiência de tempo possibilitada pelo canto no fazer musical, com base no que foi apreendido dos relatos dos participantes desta investigação.
Como visto anteriormente, o fenômeno do tempo e a construção do tempo social foram e são constantemente modulados por nossa percepção, mediados pela cultura, assim como também o é a escuta do humano diante do fenômeno acústico. H.J. Koellreutter¹⁸ refere-se à apreensão do tempo na música como relativa às mutações de consciência do humano ao longo do seu desenvolvimento na história. Já Suzanne Langer (1953) coloca o tempo como essência e criação do fazer musical: “A essência da música é a criação de um tempo virtual e é a determinação completa do movimento em formas audíveis” (SUZANE LANGER apud BERLEANT, 1991, p. 135). Para Zuckerkandl (1973), no fazer musical as relações temporais não existem separadamente. O que percebemos não é o tempo nele mesmo, como objeto, isoladamente, mas naquilo que acontece e seus resultados, o que é exemplificado pela experiência de Mauro:
Foi muito interessante e legal o grupo compartilhar desse nosso trabalho, que foi resultante de muitos encontros, que nos permitiu, através do canto, conhecermos um pouco das pessoas que participaram do grupo. (Mauro, 58 anos).
Assim, como experiência, o tempo no fazer musical acontece “durante”, em um fluxo integrado entre as várias camadas estruturais que o compõe (PETRAGLIA, 2015, p.252), onde pulso, ritmo, métrica, compasso e suas subdivisões, andamento e tom, são bordas de um tempo constituído que oferecem continência ao tempo da experiência, estabelecem uma duração e criam uma unidade perceptual na qual Kronos e Kairós se manifestam como bordas complementares que se integram e transpassam uma a outra, oferecendo ao cantante o espaço para estar além da percepção ordinária do tempo:
Esqueci-me da vida. São duas horas melhores da semana. Curto intensamente. (Neide, 70 anos)
Como o canto e a música tem o poder de nos transportar para momentos que de alguma maneira marcaram nossas vidas (Mauro, 58 anos).
Segundo Berleant, nos encontramos, em nós mesmos, em um continuum multidimensional onde as manifestações do tempo são espaciais, a ativação do espaço é temporal, e o movimento do som é o gerador do espaço tempo audível (BERLEANT, 1999). Como assinala Manuelzão, em Manuelzão e Miguilim, de Guimarães Rosa (1964), o “inteirado da música” derrete “o demorado das realidades”. A criação de uma realidade única e singular, vivida em um tempo e espaço unificados e comum a todos, pode ser observado nos relatos dos diários dos participantes dessa investigação, já descritos anteriormente. Uma realidade onde foi possível encontrar um pulso em comum, um ritmo compartilhado, uma afinação sincronizada, dados pelo canto no fazer musical coletivo, no qual, ainda segundo Manuelzão (ROSA, 1964), naquele momento, “A música repartia as tristezas por todos, cada qual com seu quinhão”.
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¹⁷Optou-se pelo uso do termo fazer musical por considerar que o termo música abrange muitos aspectos que não caberiam nessa investigação e porque refere-se à experiência, que é a essência e o foco desse trabalho.
¹⁸ Encontros sobre Estética e Análise musical por H.J. Koellreutter, oferecidos aos seus alunos em 1992, em sua casa.
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3.2.3. O tempo da memória
Desde que cantamos através da memória, repetimos as músicas, associamos as músicas com o que estamos sentindo e lembramos de fatos relacionados com aquelas canções, meu sentimento de vazio tem diminuído. Observar os sentimentos, as lembranças, que as vezes são boas, outras vezes não são e lidar com elas, isso tudo tem me ajudado a uma organização interna. Já resgatei tantas histórias que não lembrava mais, respostas para tantas questões, relacionar um fato com outro, ver muitas coisas com outros olhos… (Luci, 43 anos)
A sensação de poder resgatar coisas/sentimentos que ficaram guardados muito tempo e por um instante poder se deliciar e se emocionar com essas lembranças. (Mauro, 58 anos)
O tempo da memória surge, neste trabalho, como organizador de eventos significativos que marcam um momento no fluxo do tempo, constituindo, para o sujeito, uma história que lhe confere sentido. Segundo a fenomenologia de Merleau-Ponty, a lembrança de uma percepção antiga é um ato de representação que acontece totalmente em um presente que se configura como a “zona em que o ser e a consciência coincidem”, ampliada por seus horizontes de passado e porvir originários (MERLEAUPONTY, 2014):
Quando me recordo de uma percepção antiga, quando imagino uma visita ao meu amigo Paulo que está no Brasil, é verdade que viso o próprio passado em seu lugar, o próprio Paulo no mundo, e não algum objeto mental interposto. Mas enfim meu ato de representação, à diferença das experiências representadas, me está efetivamente presente, um é percebido, os outros justamente são apenas representados. Uma experiência antiga, uma experiência eventual, precisam, para me aparecer, ser trazidas ao ser por uma consciência primária, que é aqui minha percepção interior da rememoração ou da imaginação. (MERLEAU-PONTY, 2014, p.568)
Fundamentado nos relatos dos “diários de bordo”, o tempo da memória revelase nas lembranças que preenchem, conectam e restauram o sentido de ser, bem como na percepção de cada participante acerca do tempo pessoal necessário para memorizar, no próprio corpo, os recursos musicais e vocais, as associações e sentimentos que emergem durante a oficina, tal como apontam Luci e Mauro. Um tempo que se manifesta no ato de cantar e se recompõe em canções que fazem parte da trilha sonora daquele que as canta, que, ao final, é ele mesmo. Para Ecléa Bosi, “Todas as histórias contadas pelo narrador inscrevem-se dentro da sua história, a de seu nascimento, vida e morte” (BOSI. E, 1994), como pode-se verificar no relato de Beth:
Memórias, sentimentos, alegrias e tristezas emergindo lentamente com as canções. Sons, cheiros, sabores, tudo vem, tudo me pertence, tudo sou eu. (Beth, 52 anos)
Mais ainda, de acordo com a compreensão de Ecléa Bosi,
O caráter livre, espontâneo, quase onírico da memória é, segundo Halbwachs, excepcional. Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, “tal como foi” e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão aqui, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual. (BOSI, 1994, p.55)
Pode-se acrescentar, aqui, como já, dito, que há, igualmente, uma trilha sonora urdida às imagens da nossa existência. Segundo o músico e neurologista Oliver Sacks, em uma perspectiva que remete à visão fenomenológica, “a forma final da representação cerebral tem de ser, ou admitir a arte — o cenário e a melodia artística da experiência e da ação” (SACKS,1985). Sacks pergunta:
Qual será a forma final, a forma natural, do repertório de nossa vida? O repertório que fornece não apenas a “memória” e a “reminiscência”, mas nossa imaginação em todos os níveis, das simples imagens sensoriais e motoras aos mais complexos mundos, paisagens, cenas imaginativas? (SACKS, 1985, p.165)
Ele mesmo responde: “Um repertório, uma memória, uma imaginação de uma vida que é essencialmente pessoal, dramática e icônica. ” (SACKS, 1985, p.165)
Movidas pelo canto em canções que evocam o tempo da memória, Júlia nos fala da saudade e de “portais” de lembranças que a emocionam, enquanto Neide afirma recuperar partes da vida que havia esquecido:
Esse encontro me trouxe muita saudade da minha mãe. Ela sempre foi uma pessoa contente e continua sendo um ser musical. Percebo que a cada encontro abrem-se “portais” de lembranças que me emocionam muito. (Júlia, 30 anos)
As músicas me trazem lembranças e eu vou recuperando partes da minha vida que eu havia esquecido. (Neide, 70 anos)
Para Arnold Berleant, o tempo da memória evocado pela música é, aqui, mais do que a consciência de um passado audível. É uma consciência que expande, se projeta e abastece o futuro. “A função da música dentro da aura mnemônica fala, então, do passado e da presciência. Os sons ressoam por um tempo na percepção imaginativa e carregam, ao mesmo tempo, a antecipação do som que virá” (BERLEANT, 1991). Desse modo, podemos considerar que o som, que acontece inteiramente no momento presente, penetra em todas as camadas do tempo da memória, abarcando o passado e o porvir.
Valéria relata, em seu diário, seu encontro com sentimentos guardados que, aflorados por uma canção, emocionaram-na, possibilitando um relembrar que contribuiu para um novo modo de percebê-los:
Durante a aula brotam muitos sentimentos, hoje em especial o sentimento de ternura quando cantamos: Nessa rua, nessa rua existe um bosque…São sentimentos guardados que afloram, emocionam. (Valéria, 62 anos)
Pela perspectiva da percepção das marcas no corpo como registros do tempo da memória, José nos conta em duas ocasiões que, diante da lembrança do passado, sentiuse alegre e sua respiração melhorou. Viúvo, vive da aposentadoria e mora sozinho. Cantar é sua alegria. Portador de pressão alta e bronquite, a percepção corporal de bemestar e liberação trazidas pelas lembranças evocadas pelo canto são relevantes para ele:
24/05/2014
Gostei muito, trouxe meu passado, fiquei emocionado. Melhorou um pouco a respiração. Refrescou a cabeça.
01/06/2014
Lembrei-me de quando tinha 18 anos. Fiquei alegre, melhorou a respiração. (José, 75 anos)
Como já visto anteriormente nas narrativas dos participantes em outros tópicos desta investigação, podemos relembrar que o tempo da memória esteve constantemente presente, fazendo emergir sentimentos, conectando uns aos outros, tecendo uma memória comum, partilhada pelo grupo em cada encontro. Podemos concluir que no compartilhar das histórias por meio de canções, no convívio semanal, na repetição das canções, na percepção dos registros no corpo das experiências vividas, gradualmente uma história daquele grupo foi alinhavada pelas emoções e lembranças que afloraram do cantar.
3.3. O senso de pertencimento a si mesmo e a uma comunidade
Outra coisa que sinto é a possiblidade de contribuir, construir junto. Trazer uma música, uma história, uma poesia, uma dobradura. E tudo é a gente ali, eu e os outros colegas. A gente faz parte do trabalho e quando ouvimos os outros também aprendemos. Também emocionamos. E o contato que tenho é só nos encontros de sábado, na oficina. E apesar do grupo ir mudando, umas pessoas ficam, outras vão embora, tudo faz parte. E apesar disso, criamos vínculos. Como que a história ali vivida é parte da nossa vida, também. (Luci, 46 anos)
O senso de pertencimento a si mesmo e a uma comunidade, surgido dos relatos, levou à formulação de questões consideradas importantes para este trabalho: o que faz com que uma pessoa se sinta pertencente a uma comunidade? O sentimento de pertencer a uma comunidade é relativo ao sentimento de pertencer a si mesmo? De que modo o canto contribui para esse sentimento? O que faz um grupo perceber-se como comunidade? Afinal, o que é uma comunidade? Sem pretender investigar as diversas formas de comunidade existentes, as respostas para as questões pertinentes a este trabalho foram buscadas nas narrativas dos participantes, que levaram a investigação ao encontro do conceito de comunidade estética desenvolvido por Arnold Berleant (1997).
O relato de Luci é bastante esclarecedor e relevante como caminho para buscar responder tais questões. Nele, ela aponta para aquilo que parece estabelecer um sentimento de pertencimento e de conexão com outras pessoas, um sentimento de “juntidade”: contribuir, construir junto, fazer parte do trabalho comum, ouvir o outro, criar uma história juntos, onde, segundo Luci, “a história vivida é parte da nossa vida, também”.
Atraídos inicialmente pela proposta da oficina, que estabelecia o objetivo de “viver o canto”, pode-se observar que o senso de pertencimento a uma comunidade cresce, nas narrativas dos participantes, pouco a pouco, na medida em que as conexões entre as pessoas são estabelecidas a partir da auto percepção e compreensão de cada um sobre sua própria voz, pelas histórias partilhadas em canções que constituíram o repertório, pela regularidade do encontro semanal, pelo reconhecimento e entendimento de si e do outro, pela “soltura do corpo” na criação compartilhada de uma experiência proporcionada pelo canto:
A cada sábado que passa sinto que uma energia positiva toma conta de mim. Sinto que canto melhor, meu corpo se solta, fico mais alegre, mais harmonizada como grupo. Sinto que me sintonizo melhor com as pessoas, que as pessoas me compreendem e eu as compreendo também. (Valéria, 62 anos)
Cada música trazida por alguém, mesmo que desconhecida ou longe do alcance da memória, é como se fosse minha também. Sinto muitas referências. (Monique, 46 anos)
Em sua etimologia, a palavra comunidade vem do latim communis: “o ato de repartir deveres em conjunto”. Está relacionada a munus, cujo significado é tarefa, ofício, dom. Como já dito anteriormente, a etimologia não soluciona o problema, mas pode abrir o caminho para uma compreensão alinhada à sua concepção. Assim sendo, nesse trabalho podemos compreender comunidade como uma experiência social constituída por um grupo de pessoas que oferecem suas habilidades pessoais para compartilha-las na realização de uma tarefa ou objetivo comum. Segundo Berleant (1997), é pré-condição para a formação de uma comunidade a união do individual e social, na qual nenhuma dimensão domina a outra, mas cada uma valoriza e favorece a outra. Unidos pelo cantar, no fazer dessa arte cada participante se apropria do seu modo de ser, da expressão da sua estética pessoal, do ser sonoro e sensível que o constitui. Ao compartilhá-la com o outro, reconhece seu canto no encontro com o canto do outro, em uma experiência estética comum, onde a sensibilidade é a “cola” que agrega a “comunidade cantante” concebida por todos. Para Berleant (1997), “a arte carrega um sentido mais sutil de conexão que ilumina o significado estético da comunidade”, proporcionando um senso de “continuidade”, que favorece o campo sensível onde se aloja. Diz Regiane:
Sinto-me um com todos meus companheiros cantantes, como é bom! Me sinto próxima trocando músicas e histórias da minha vida e dos outros companheiros. Me senti UNIDA (LITERALMENTE DE VERDADE) com a pessoa do meu lado enquanto cantávamos. Por um momento estivemos no mesmo lugar, numa única vibração. (Regiane, 60 anos)
Continuidade, aqui, é exemplificada pelas relações internas estimuladas pela conexão entre os membros do grupo que sentem, com tanta força, serem parte da comunidade, que se percebem unidos às pessoas que a compõem. De acordo com Berleant (1997, p.148), “O que faz tal continuidade estética é o tipo de unidade que é descrita como um continuum do corpo, da consciência, de contexto, onde todos estão unidos na intensidade penetrante da experiência perceptiva”. Dentre as diversas ocasiões onde a percepção de continuidade, unidade e conectividade podem ocorrer, Berleant (1997) afirma ser na experiência da arte onde tal percepção surge de forma mais íntima e intensa:
Na sua mais generosa e poderosa força, nosso engajamento com a arte cria uma continuidade da experiência que une artista, apreciador, objeto artístico, e performer em um campo heterogêneo de forças continuas. (BERLEANT, 1997, p.151).
Para Berleant (1997), tal compreensão converteu-se no que chamou de “comunidade estética”. Uma comunidade onde não há fronteiras rígidas, nem profundas divisões. Tampouco há qualquer senso no qual a sociedade ou estado é separado das pessoas que a compõem. Sua fonte qualitativa reside na configuração de um campo de forças continuas e heterogêneas que une todos os aspectos da experiência, envolve e engaja a todos que participam dela.
A comunidade estética é uma comunidade em e da experiência. Sua semelhança com a situação que vivemos na arte empresta seu nome. Na arte, quando o campo estético está preenchido, uma rica reciprocidade se desenvolve entre a força criativa do artista, o objeto de arte, sua apreciação, e o performer ou ativador do trabalho. A distância contemplativa e a atitude objetificante adotada pelo processo cognitivo são estranhos à essa situação. Em vez disso, o engajamento estético determina seu caráter. A mesma reciprocidade dos elementos constitutivos, a multiplicidade de inter-relações, a assimilação do observador como participante, a proeminência da experiência, qualitativa — tudo isso distingue a comunidade estética, também. (BERLEANT, 1997, p.152)
Observou-se que tal senso de comunidade pôde ser ativado na experiência estética tecida pelo canto compartilhado na oficina, conforme narra Artemis;
“Ser a minha tua voz, ser a minha voz será tua”. Este é o lema deste trabalho: o canto coletivo, comunitário, horizontal, onde todos participam igualmente, se irmanam, se reconhecem importantes e reconhecem o valor dos outros e assim cuidam-se mutuamente. É maravilhoso viver esse canto e conectar-se com energias tão boas que nos movem para a vida. (Artemis, 48 anos)
O campo estético criado pelo compartilhar do canto e das histórias em canções possibilitou um ambiente favorável para o encontro entre humanos. Como dito anteriormente, houve mais distinções que separações, e as diferenças foram integradas. Ao cantarmos juntos, o sentimento de “juntidade” se estabeleceu. A mutualidade e reciprocidade permitiram ultrapassar barreiras e divisões, contribuindo para a criação de uma história coletiva na qual cada um com seu canto compôs uma canção de todos. Como conclui Neide em sua reflexão,
A música enquanto inclusão social é um instrumento que nos permite entrelaçar as mãos da alma sem discriminar raça, cor, idade ou qualquer outra diferença. Ela tem o poder de transformar nosso olhar para o outro na medida em que a emoção nos envolve e nos traz à realidade maior: somos todos iguais quando cantamos, pois, nesse momento mágico deixamos nos envolver por sentimentos de alegria elevando-nos a algo transcendental, inexplicável e que nos realiza interiormente. (Neide, 70 anos)
Ao final da oficina, a comunidade estética “cantante” se estende e se expande na apresentação final, diante do público presente no SESC- Pompéia:
Felicidade, cada dia me sinto inserida e participante do grupo. Mais uma experiência maravilhosa. Saber que podemos alegrar as pessoas que estão como ouvintes. Captar toda energia e participar. (Satiko, 62 anos)
4. Considerações finais: Sensibilidade, tempo e pertencimento a constituição de uma comunidade estética tecida pelo canto
É. Muita coisa aconteceu e acontece. E muita coisa parece que ainda vou entender com o tempo. Ainda está em processo. O relato ficou muito na primeira pessoa, mas foi como veio. Escrevi como veio o pensamento, sem elaborar muito as palavras. E veio tudo de uma vez só. (Luci, 46 anos)
Que pena! Que pena! Que pena! Por hora… Só por hora… acabou! O que aprendemos e vivemos aqui não acaba, não tem fim. Está em mim, está em todos nós que tivemos esta experiência maravilhosa. (Regiane, 60 anos)
Final do trabalho. O burburinho familiar do trânsito e do movimento no galpão das oficinas, no andar de baixo, ecoam na sala 1. Ainda imersos na atmosfera do ambiente criado pela apresentação na área de convivência, olhares marejados acolhidos em abraços apertados retardam nossa despedida. Agora, cada um segue seu caminho e leva, ao seu modo, para a vida cotidiana, a experiência “cantante” que compartilhamos ao longo dos doze encontros da oficina “Viver o Canto”. Pela última vez, como comunidade cantante, deixamos a “nossa sala”, pegamos o elevador e atravessamos o corredor do imenso galpão, com seus tecidos pendurados no teto, objetos de cerâmica empilhados nos beirais das meias-paredes que separam o espaço interno, e esculturas por terminar deixadas nos vãos entre as salas de aula — testemunhas silenciosas do nosso canto. Nos sorrisos dos últimos acenos no corredor interno do Sesc-Pompéia, que durante esse tempo acolheu aquelas pessoas, vindas de vários contextos, com diferentes expectativas, sem saberem exatamente o que esperar, percebia-se a satisfação alegre de terem realizado não só o propósito que as uniu, mas, também, de assumirem a consciência de que, após três meses, já eram outras. Não só cantaram, como, por meio do canto, vibrando em seus corpos, descobriram-se potentes em sua beleza única. Partilhando histórias, afetos e emoções, criaram vínculos, conexões, perceberam-se como comunidade. Pela descoberta e expressão do próprio canto, compartilharam sensibilidade tecendo, juntos, um canto de todos. Se nos encontraremos novamente ou não, fica por conta das tecelãs do destino, as mesmas que teceram nosso encontro de agora. O certo, ouso dizer, é que cada um levará em seu canto um pouco do canto do outro, que permanecerá eternamente presente no corpo das lembranças da experiência extraordinária que vivemos. Pelo meu lado, levo em mim cada canto, cada canção, cada nuance de expressão de dor e contentamento, cada gesto e palavra. Levo, também, o sentimento de ter vivido uma aventura transformadora, de pertencer a uma comunidade onde quer que eu vá e, mais uma vez, de gratidão por ter realizado o propósito da minha alma.
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Na minha jornada pessoal, o canto foi o meio pelo qual encontrei minha expressão, aprofundei-me em mim mesma, ampliei minha percepção na relação com o outro e com o mundo, descobri-me como sujeito, artista e educadora. Como cantante, descobri que, ao cantar, tecia, com meu canto, a narrativa da minha própria existência, compondo uma canção única e singular. Ao longo dos anos, atendendo alunos individualmente e trabalhando com grupos diversos, observei que, em diferentes níveis, o mesmo acontecia com as pessoas que procuravam meu trabalho. Assim, a pergunta que primordialmente motivou esta investigação permeou grande parte da minha experiência pessoal: é o canto um meio para a auto percepção, transformação pessoal e para o sentimento de pertencimento a si mesmo e a uma comunidade? Com essa questão como pano de fundo, iniciei este trabalho, tendo como campo a oficina que, atendendo à necessidade do Sesc-Pompéia, nomeei como “Viver o Canto”, e que conduzi por quatro anos. O grupo que compôs esta pesquisa aconteceu no primeiro semestre de 2014. Ao acumular o papel de condutora e investigadora, diferentes perspectivas se revelaram para mim. Como condutora, pude oferecer para a investigadora, como parte da experiência sensível daquele grupo, a percepção, vivida no corpo, do alargamento da sensibilidade que, por meio do canto, nos engajava em um momento incomum, levando, a mim e ao grupo, a viver outras temporalidades em cada encontro. Criava-se, assim, um continuun da experiência que, gradualmente, unia a todos em um sentimento de pertencimento, de “juntidade”, que ultrapassava quaisquer diferenças, despertando e fortalecendo o senso de comunidade. Como pesquisadora, pude estar presente e atenta ao fluxo dos movimentos, observando, refletindo e sistematizando a experiência;
oferecendo para a condutora a percepção da dimensão estética presente em cada um, no
seu modo de perceber o ambiente e o grupo, demonstrando a importância, na forma de
conduzi-lo, para a criação de um campo favorável ao engajamento estético. Mais ainda,
ao recompô-la em palavras, a partir dos relatos dos participantes nos “diários de bordo”,
a compreensão detalhada e profunda da potência do processo vivido entre todos.
As narrativas dos participantes da oficina “Viver o Canto” nortearam esta
investigação. Pautada no método fenomenológico, a dimensão estética da experiência
tecida pelo canto como fio que iria perpassar e alinhavar a trama da experiência, foi-me
revelada aos poucos, na medida em que os relatos eram lidos e relidos. Deles,
emergiram os tópicos a serem compreendidos e os pilares teóricos que fundamentaram a pesquisa.
Desapegando-me de caminhos anteriormente percorridos e das questões previamente estabelecidas, a compreensão de Experiência Estética, desenvolvida por Arnold Berleant como teoria da sensibilidade, conduziu meu olhar e sedimentou-se como “pedra filosofal” deste trabalho, tanto para a reformulação da questão inicialmente colocada, como para o entendimento das questões e respostas que emergiram das narrativas No capítulo 1, com a recomposição em palavras do campo da experiência e com a organização dos dados desfiz o emaranhado de impressões e encontrei o fio da meada nas memórias do caminho percorrido e no registro vivido da experiência relatada nos “diários de bordo” dos participantes. Na compreensão do material recolhido, na sistematização dos contornos do campo de pesquisa, do método e das estratégias utilizadas, iniciou-se o desvelamento da trama e os fios da urdidura começam a ser trançados.
Nesse movimento, a compreensão de experiência estética, proposta por Berleant, (2010) firmou-se como fio principal que teceu a “colcha de relatos” dos tópicos que emergiram das narrativas que compuseram o segundo capítulo. Nele, a importância das dinâmicas, do desenvolvimento técnico vocal, da condução da facilitadora como tecelã do campo da experiência, da constituição do repertório a partir de canções significativas trazidas pelos participantes, do amalgamar das vozes pelo canto coletivo e da expansão da comunidade na apresentação final foi aí revelada, tornando-se visível. Da conclusão dos participantes no final do capítulo, emergiram as respostas que iluminam os entremeios das tramas da experiência. Mais ainda, evidenciou-se a configuração de um campo estético sensível proporcionado pelo canto, favorável ao engajamento na experiência e aos seus desdobramentos, quais sejam: o alargamento da sensibilidade, as diversas percepções de tempo e o fortalecimento do senso de pertencimento a uma comunidade, que compuseram os tópicos para a sustentação teórica desenvolvida no terceiro capítulo. O entendimento da experiência estética concebida por Arnold Berleant (2010), a perspectiva fenomenológica da percepção em Merleu-Ponty (2014) e o entendimento de Frayze-Pereira (2010) e Arley Andriolo (2007) sobre o fazer da arte na psicologia social, constituíram, para essa investigação, os principais pilares para formulação teórica que costurou o terceiro capítulo, fundamentado nos tópicos desvelados nos capítulos 1 e 2, e que definiram o título final dessa investigação: A experiência estética tecida pelo canto no processo social: Sensibilidade, Tempo e Pertencimento.
Como visto no capítulo 3, a sensibilidade abarca, de acordo com os relatos, todo o espectro do fenômeno vivido na oficina “Viver o Canto”. A apreensão da experiência estética oferecida por Berleant (2010), como campo perceptivo que envolve todo o contexto da experiência e seus múltiplos fatores, foi fundamental para esse trabalho. A ativação, por meio da arte, da capacidade do percebedor de apreender e compreender o percebido, e a consciência da sua participação na conformação e na qualidade da situação onde ocorre a experiência, evidenciaram a força integrativa do canto como centro ativador do engajamento estético em um campo tecido por um conjunto de vozes mediadas por características e histórias pessoais inscritas em um corpo que se tornava cantante e audível na expressão musical/vocal de cada um. Da trama urdida entre todos, emergiram os valores que definiram a qualidade estética da experiência em um campo estético constituído pelo processo pessoal e social vivenciados na oficina.
Em resumo, constatou-se que a qualidade do campo estético gerado e intensificado pelo fazer do canto como centro apreciativo no engajamento da experiência estética, pessoal e coletiva, favoreceu um campo de forças dinâmico, que incluiu todas as relações e todo o ambiente, de tal modo que os valores e conexões intrínsecos a ele puderam emergir, possibilitando novas compreensões, dissolvendo barreira, restaurando as dimensões do cantante consigo mesmo, com o outro e com aquilo que percebe a sua volta, demonstrando, “a natureza integrativa da situação estética e a interconexão e interdependência de todos os seus componentes. Porque o campo estético não é uma combinação de elementos separados, mas um único todo” (BERLEANT, 2010). Aqui reside seu significado ambiental e social. Tratando-se de um campo tramado pelas relações humanas, revelou-se aquilo que Berleant chamou de “estética social”:
O ambiente humano inclui não apenas coisas no mundo natural e construído; ele compreende de modo mais significante, humanos dentro do mundo social. No entanto, a dimensão estética nas relações humanas frequentemente não é reconhecida e a sua importância é negligenciada. Afirmar a estética social não significa que sempre há uma dimensão estética dominante nas relações humanas, mas sim que ela geralmente está presente e, às vezes, pode predominar. Porque o engajamento estético frequentemente exerce uma parte significante na dinâmica das relações humanas. Ele pode ser vivenciado nas dinâmicas de grupo quando um entusiasmo comum se desenvolve e leva à transcendência do self em um propósito comum e a uma satisfação sensível na sua busca. Assim, o engajamento estético permeia a experiência humana e responde tanto pela apreciação das artes quanto pela apreciação do ambiente.
Nos conduzindo além das artes, o engajamento estético pode também iluminar e enriquecer as relações sociais. O reconhecimento da experiência pelo engajamento estético, faz com que sua presença seja apreciada e sua influência seja encorajada. (BERLEANT, 2016, p.4)
Podemos supor, então, que na experiência estética não há começo nem fim,
pois, segundo Berleant (2016) tudo é experiência e tudo é estética. Estas, vistas em sua abrangência absoluta, referem-se ao momento de existir, a auto percepção e à consciência do modo de ser e viver o momento. Intensificada pela arte, nos conduzem à uma realidade única, gerada em um processo criativo que é simultaneamente pessoal e social, onde as bordas do tempo se transpassam, transitam e fluem, criando o espaço para a constituição do campo estético onde o fenômeno ocorre. Expondo as diferentes percepções do tempo que emergiram por meio do canto como centro ativador do engajamento estético, constatamos que:
A) As bordas do tempo se entrelaçam e transitam entre si no continuum da experiência, instituindo um tempo social, que se manifesta no presente de cada encontro.
B) O tempo constituído é continente do tempo da experiência, tanto no campo pessoal como social, criando o espaço para a conformação do campo estético onde o fenômeno ocorre.
C) Cada um ocupa um espaço no tempo, dado pelo sentir, necessário para que a sensibilidade esteja totalmente engajada.
D) A percepção do tempo é intensificada pelo fazer musical por meio do canto, que está contido e contém todas as bordas. Um fazer que ocorre “durante”, em um fluxo integrado, totalmente presente, que cria uma unidade perceptual entre Kronos e Kairós, que trespassa sujeito e grupo para um tempo incomum.
E) O canto, por sua natureza acústica, ocupa todo o ambiente e se manifesta na temporalidade corporificada pela ação de cantar. Um cantar que, na sua impermanência característica, se revela de forma única a cada vez que ocorre, onde o tempo presente é também espaço no corpo sensível e vibrante que o abriga.
F) As lembranças evocadas pelas canções trazidas pelos participantes, que originalmente tinham como tema o canto dos antepassados, penetram em todas as camadas do tempo da memória, onde passado, presente e porvir se encontram. Emergem carregadas de emoções em cenas e imagens que, vistas à luz do presente, criam a possibilidade para um novo modo de as perceber, contribuindo para sua restauração ao lhe dar um novo sentido.
G) As canções que constituíram o repertório revelaram o registro de uma trilha sonora inscrita na memória de cada participante. Ao serem compartilhadas no grupo, descobriu-se que uma mesma canção ativava paisagens distintas na memória de outros, compondo uma paisagem comum.
Diante dessas constatações, propus uma possível compreensão da correlação entre o tempo social e o tempo da memória na experiência estética tecida pelo canto: no cantar, as experiências vividas são ativadas por canções que narram, no presente, a história de cada um. Ao serem cantadas em conjunto, compõem uma nova história que é, simultaneamente, pessoal e coletiva, que permite que cada um leve consigo um pouco do canto do outro, conferindo-lhe sentido e pertencimento.
É aqui que o sentimento de pertencimento a si mesmo e a uma comunidade é instaurado. As perguntas suscitadas pelos relatos, ao longo desse estudo, foram pouco a pouco sendo respondidas pelas próprias narrativas: unidos pelo canto, vivido nas histórias compartilhadas em canções, no ritmo dos encontros, na multiplicidade de interrelações, um sentimento de “juntidade” se estabeleceu. Ao cantarmos em conjunto, criamos vínculos, trocamos aprendizados, estabelecemos conexões, partilhamos valores.
Ao viver o canto coletivamente, entrançamos nossa comunidade cantante, compartilhamos sensibilidade, atando, em cada encontro, os fios da nossa experiência (in)comum, fundando, assim, o que Berleant (1997) chamou de comunidade estética, anteriormente descrita no decorrer do item 3 do terceiro capítulo.
Por fim, integrando todos os tópicos dessa investigação, espero que a compreensão da experiência estética e do engajamento estético tecidos pelo canto desenvolvidos nesse trabalho, que envolvem os conceitos de campo estético e de estética social, bem como os de educação estética e comunidade estética, propostos por Berleant, (2016), contribuam para iluminar o processo social gerado pelo fazer da arte em futuras investigações nos campos da educação musical e da educação em geral, da performance artística, da musicoterapia e da psicologia social.
E agora? Agora, passado o tempo, sinto a experiência da oficina “Viver o Canto” ainda presente em mim, modulando meus gestos, meu olhar, minha escuta, minha voz. E, ouso afirmar, também em cada participante, principalmente ao ler os relatos que recebi de alguns deles, dois anos depois de encerrada a oficina, contando as mudanças que perceberam em si mesmos e os rumos que tomaram depois do nosso encontro. Cenas e paisagens emergem continuamente no corpo vivo das minhas lembranças dos afetos, olhares e abraços trocados. Nas descobertas e aprendizados desvelados pela memória das canções que compuseram nossa história, ouço o canto de cada um. A cada releitura das narrativas dos participantes que, comigo criaram esse trabalho, novas conexões e reflexões vem à tona. Mais ainda, trazem a confirmação de que, pelo engajamento estético tecido pelo canto, o sentimento de “juntidade” que permeou esse encontro transformador entre seres humanos, dispostos a ouvir a si mesmos e a receber o canto do outro, alargou a sensibilidade, ultrapassou diferenças, acolheu distinções, mantendo o sentimento de pertencimento gerado na nossa comunidade estética vibrando, até hoje, em todos nós. Não há fim.
5. Referências Bibliográficas
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BERLEANT, Arnold. Aesthetic beyond the art: new and recent essays. Burlington: Ashgate Publishing Company, 2012.
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