O que acontece quando a gente canta junto?
Tese de Doutorado
A sensibilidade compartilhada pelo cantar junto: um estudo sobre suas
implicações no campo da Estética Social
Cecilia Valentim
Fev 08, 2024
Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutora em Psicologia.
Área de concentração: Psicologia Social
Orientador: Prof. Dr. Arley Andriolo
2023
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO PARCIAL OU TOTAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO,
PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE
COELHO, C.M.V.T. O que acontece quando a gente canta junto? ou A sensibilidade compartilhada pelo cantar junto: um estudo sobre suas implicações no campo da Estética Social. Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo para a obtenção do título de doutora em Psicologia (Área de concentração: Psicologia Social)
Dedicatória
Aos meus pais, que permanecem vivos em mim.
Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, Sei a verdade e sou feliz.
(O Guardador de Rebanhos in Poemas de Alberto Caeiro)
(...) A música, derretia o demorado das realidades. Mas dava receio. Assim, a música amolecia a sustância de um homem para as lidas, dessorava o rijo de se sobresser.
Soava forte, no viro do vento, o reprechume do Bastião:
“Companheiro, me ajuda a contar a minha vida... Vou-me embora, ei-ai!
Eu não tenho amor aqui,
Minhas queixas são pedidas... Vou-me embora, ei-ai!”
A música repartia as tristezas por todos, cada qual com o seu quinhão.
(Guimarães Rosa in Manuelzão e Miguilim)
Agradecimentos
A travessia que iniciei ao decidir pelos caminhos que nortearam a experiência do doutorado levou-me a enfrentar desafios não imaginados: uma pandemia, um país desgovernado e polarizado, uma mudança transatlântica de território e o que tudo isso provocou em mim. Portanto, tenho muito a agradecer a todos que estiveram ao meu lado nessa jornada, durante a qual fiz-me outra, mais fortalecida, madura e transformada. Começo pelo meu orientador, o prof. Arley Andriolo, que nas horas de desânimo, impulsionou-me e encorajou-me, sempre disponível e amorosamente presente para minhas dúvidas e indagações e para apontar direções que foram imprescindíveis para sua conclusão. Agradeço imenso a Prof. Helena Rodrigues pela amizade, apoio e confiança, e por abrir-me os caminhos para concretizar as oficinas em Portugal. Agradeço com igual intensidade todas e todos os participantes das oficinas, que se engajaram generosamente e sem os quais a investigação certamente não teria acontecido. Agradeço, igualmente, pelo inestimável apoio, ao Projeto Montanh’arte, em Santo Antônio do Pinhal/SP; ao Museu Felícia Leirner, em Campos do Jordão/SP, na pessoa da diretora à época, Marina Silveira e sua equipe; ao CESEM/NOVAFSCH, Centro de Estudos em Sociologia e Estética Musical, unidade de investigação da Universidade Nova de Lisboa, juntamente com o LAMCI, Laboratório de música e Comunicação na Infância, núcleo de atividades investigativas pertencente ao CESEM, nas pessoas dos seus coordenadores, Profs. Helena Rodrigues, Ana Isabel Pereira e Paulo Ferreira; à Santa Casa de Misericórdia de Lisboa e ao Centro de Promoção Social Rainha D. Leonor, na pessoa da Diretora Profa. Isabel Mota, instituições que acolheram o projeto de pesquisa.
Amplio minha mais profunda gratidão ao querido Prof. Arnold Berleant, sempre presente, mesmo distante geograficamente, e aos colegas do GES, Grupo de Estética Social, pelos encontros instigantes e pelas ricas discussões sobre nosso campo de estudo. Agradeço também a Teresa Cristina Peres, Rosângela Sigaki e Selma Loyola, responsáveis pela secretaria de pós-graduação em Psicologia Social e do Trabalho, pelo cuidado amoroso e orientação confortante nos ritos e trâmites acadêmicos, e a Rodrigo Valentim Chiquetto, pelas sugestões e pela cuidadosa revisão.
Por fim, quero expressar meu amor e gratidão ao meu amado companheiro Marcos por seu amor e dedicação, por sua sensibilidade, apoio prático e paciência, e aos meus filhos Ana Luiza, Rodrigo e Bárbara, fontes da minha inspiração.
Resumo
A partilha da sensibilidade pelo cantar junto e suas implicações no campo da Estética Social é o tema deste estudo. Fundamentado na compreensão fenomenológica de Merleau-Ponty e no método fenomenológico, as estratégias para seu desenvolvimento basearam-se na realização de oficinas de canto realizadas no Brasil e em Portugal, nas quais acumulei os papéis de condutora e pesquisadora, em uma agência que me permitiu criar, conjuntamente com os participantes, os caminhos percorridos. Dos relatos de suas experiências, descritos a cada encontro em diários de bordo, colhi os dados e categorias que conduziram a argumentação teórica, tecida a partir das proposições de Arnold Berlant sobre Comunidade Estética e da Estética Social; de Georgina Born para uma Estética Social voltada para arte e suas relações com a música; de Tia DeNora, para o entendimento das relações entre música e saúde; e de Steven Feld, para a apreensão do repertório cantado como uma cartografia poética. Os resultados encontrados contribuíram para a compreensão do campo estético constituído por meio da sensibilidade compartilhada por um cantar em comum, no qual o engajamento sensível pôde ocorrer. Da intercorporalidade e intersubjetividade das vozes que se entrelaçaram no espaço do encontro, emergiram os sentimentos de integração, bem-estar e pertencimento, bem como a aquisição pessoal de recursos para a autorregulação e para a corregulação de uma coletividade criada conjuntamente, assim como o cultivo de um sentido de comunidade, que evidenciaram a prática do canto em conjunto como uma "Tecnologia do Nós". Por fim, a formulação da síntese das experiências dos participantes conduziu-me ao Sentido de Liberdade, Sentimento de Conexão e à Liberdade de Conexão, pelos quais arrematei a trama dos argumentos encontrados no âmbito da Estética Social como campo qualitativo das relações humanas.
Palavras-chaves: estética social; comunidade estética; sensibilidade; psicologia social; fenomenologia; canto em conjunto; música; bem-estar.
Abstract
The sharing of sensibility by singing together and its implications in the field of Social Aesthetics is the theme of this study. Grounded on Merleau-Ponty's phenomenological understanding and on the phenomenological method, the strategies for its development were centered on singing workshops held in Brazil and Portugal, in which I accumulated the roles of conductor and researcher, in an agency that allowed me to create with the participants the paths followed. From the reports of their experiences, described at each meeting in logbooks, I gathered data and categories that led to the theoretical argumentation, woven from Arnold Berlant's propositions of Aesthetic Community and Social Aesthetics, from Georgina Born for a Social Aesthetics focused on art and its relations with music; from Tia DeNora, for the understanding of the relations between music and health; and from Steven Feld, for the apprehension of the sung repertoire as a poetic cartography. The results found contributed to the understanding of the aesthetic field constituted through the sensibility shared by a common singing in which the sensible engagement can occur. From the intercorporeality and intersubjectivity of the voices that interlaced themselves in the space of the encounter, emerged feelings of integration, well-being, and belonging, as well as the personal acquisition of resources for self-regulation and for co-regulation of a collectivity created together and the cultivation of a sense of community, which evidenced the practice of singing together as a "Technology of Us". Finally, the formulation of the synthesis of the participants' experiences led me to The Sense of Freedom, The Feeling of Connection, and the Freedom of Connection, through which I wove the weft of the arguments found in the scope of Social Aesthetics as a qualitative field of human relations.
Keywords: social aesthetics; aesthetic community; sensibility; social psychology; phenomenology; sing-along; music; well-being.
Sumário
1. Os caminhos da experiência 17
1.1. As oficinas de canto: métodos e abordagens 17
1.2. Estratégias para o levantamento de dados e análise do material recolhido 20
1.3. Os campos de pesquisa, o método pedagógico adotado e a ação da
1.3.1. O método pedagógico adotado para criação do campo da experiência 24
1.3.2. A ação da condutora/pesquisadora 26
1.3.3. As dinâmicas como recurso para o desenvolvimento pessoal e constituição
2.1. A experiência no Brasil 32
2.1.1. A narrativa da oficina em Santo Antônio do Pinhal 32
2.1.1.2. Sobre Santo Antônio do Pinhal 32
2.1.1.3. O projeto Montanh’arte 33
2.1.1.4. O local dos encontros 34
2.1.1.5. Um relato da experiência vivida nos encontros 35
2.1.1.6. A coletânea de canções desenvolvidas neste grupo 38
2.1.2. A narrativa da oficina de Campos do Jordão 39
2.1.2.1. Campos do Jordão / Museu Felícia Leirner/Auditório Claudio
2.1.2.2. O Local dos encontros 42
2.1.2.3. Um relato da experiência vivida nos encontros 43
2.1.2.4. A apresentação final 47
2.1.2.5. A coletânea de canções desenvolvidas neste grupo 52
2.2. A Experiência de Portugal 55
2.2.1. A narrativa da oficina realizada no LAMCI 56
2.2.1.1. O Colégio Almada Negreiros 56
2.2.1.3. O Grupo de Educação e Desenvolvimento Humano 57
2.2.1.5. O Local dos encontros 58
2.2.1.6. Um relato da experiência vivida nos encontros 58
2.2.1.7. A coletânea de canções realizadas neste grupo 62
2.2.2. A narrativa da experiência no Centro de Promoção Social Rainha D.
2.2.2.1. Sobre o Centro de Promoção Social Rainha D. Leonor/SCML 65
2.2.2.2. O Local dos Encontros 66
2.2.2.3 Um relato da experiência vivida nos encontros 68
2.2.2.4. A coletânea de canções realizadas neste grupo 71
3. A Estética Social na sensibilidade compartilhada por meio do cantar junto 73
3.1. A Estética Social e a Comunidade Estética 74
3.1.4. Comunidade Estética, Estética Social e a “Tecnologia do Nós” 77
3.2. O repertório como Cartografia Poética 84
4.1. O sentido de liberdade 91
4.2. O Sentimento de Conexão 96
6. Referências bibliográficas 112
7.1. As vozes dos cantantes 115
8.1. Eu canto, nós cantamos! 117
I. Sobre o processo das filmagens 118
IV. Captação das imagens e de som 120
VIII. Referências Bibliográficas do projeto videográfico 122
8.2. Quadro síntese dos participantes por oficina 123
8.2.1. Participantes da oficina Santo Antônio do Pinhal 123
8.2.2. Participantes da oficina Campos do Jordão 124
Introdução
A motivação para esse estudo surgiu dos muitos anos da minha experiência com grupos de canto e da pesquisa que realizei para a dissertação de mestrado A experiência estética tecida pelo canto no processo Social: Sensibilidade, Tempo e Pertencimento (2017), dentro do programa de pós-graduação do departamento de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, o mesmo pelo qual concluo esse estudo no âmbito do doutorado.
A inspiração para o projeto de doutorado surgiu do encontro inusitado entre dois grupos de canto em Santo Antônio do Pinhal/SP em 2017, quando eu era moradora da cidade e condutora de um dos grupos. A ideia do encontro partiu da percepção que tive da relação ambivalente entre os forasteiros, como são vistos os moradores migrantes de outras cidades, e os locais, nativos da região, provocada pelas relações conflitantes das diferentes percepções de mundo e capital cultural, que acirravam um olhar desconfiado de um para o outro, ao mesmo tempo que proporcionavam uma troca significativa de informações e saberes.
Na qualidade de forasteira, conversando com Cida, prestadora de serviço como diarista em minha casa, soube do grupo de canto da igreja do Bairro de Vila Velha, existente há 20 anos, conduzido por Nelson, violeiro respeitado na região, e do qual Cida era fundadora e cantora. Na época, como condutora de um grupo de canto na cidade formado integralmente por forasteiros, propus-lhe um encontro entre os dois grupos, já instigada pela experiência do canto como meio de integração da comunidade em outras situações. Disse-me que iria levar a proposta a Nelson e retornaria em breve. Após alguns dias, retornou com a resposta positiva. Levei a ideia para o meu grupo, que concordou prontamente.
Juntamente com Cida e Nelson, consideramos que caberia ao grupo dos forasteiros ir em direção aos locais e que o encontro ocorreria na igrejinha Nossa Senhora de Aparecida, no bairro Vila Velha, zona rural de Santo Antônio do Pinhal, cerca de 7 km do centro da pequena cidade. O espaço da igreja foi escolhido por ser o território onde o grupo dos locais costumava ensaiar e cantar, além de ser um ponto de encontro importante daquela comunidade. Nenhum dos grupos sabia, ao certo, o que iria acontecer. Sabiam apenas que cantariam uns para os outros e que, em algum momento, cantaríamos juntos. No dia combinado, os grupos se encontraram: o grupo dos locais recebeu-nos com o espaço organizado, dando-nos boas-vindas.
Era perceptível a excitação e a curiosidade nos grupos. O local do encontro era constituído por uma área coberta, com algumas paredes abertas para a área de fora, uma pequena copa e cozinha onde, ao final, foi oferecido um lanche para todos. Após uma primeira roda de apresentações, cada grupo sentou-se de frente para o outro e deu-se início a um ritual improvisado pelo grupo dos locais, que cantou um canto típico de chegança da região para nós. A partir daí, ambos os grupos se alternaram para levantar e cantar sua canção, sentar e ouvir a canção do outro. Esse movimento foi repetido várias vezes até o momento em que o repertório se esgotou. Propus, então, um canto-dança coletivo, para aprendermos juntos, sobre a música Lugar Comum, de Gilberto Gil, desconhecida para os dois grupos. A partilha do canto-dança criou um momento de celebração (GADAMER, H.G,1985) que derreteu qualquer barreira que ainda houvesse e proporcionou uma maior intimidade e integração entre todos. Após o canto-dança vieram os abraços e, depois, a partilha do delicioso lanche que foi carinhosamente preparado para nós. Comemoramos:
Comemoramos – e isso fica bastante claro, quando se trata da experiência da arte -, reunindo-nos para algo. Não apenas o estar junto, mas antes a intenção, que une todos e impede-lhes de dispensarem-se em conversas isoladas ou desunirem-se em vivências paralelas. (GADAMER, H.G., 1985. p.63)
A experiência vivida nesse encontro inspirou-me a aprofundar minhas reflexões sobre o cantar junto como prática para o reconhecimento e valorização dos seus membros e de integração das distinções entre eles, em um processo que acolhe a multiplicidade das experiências de vida por meio de um cantar junto no qual a voz de cada um compõe a criação de um canto em comum. Tal perspectiva já estava presente nos caminhos que trilhei pelas minhas próprias experiências de mais de 30 anos como cantora, educadora musical/vocal e terapeuta somática em Biossíntese e Análise Bioenergética - dimensões que reúno na condução dos diversos grupos que realizo. Procurando alargar constantemente meus conhecimentos e práticas para aprofundar-me em mim mesma e na minha relação com o outro que se dispõe a seguir minha liderança, aproximei-me do doutorado pelo interesse em realizar uma investigação que me levasse ao aprofundamento e à sintetização das minhas experiências e dos meus estudos nas áreas da música, da psicologia, da filosofia e da biologia, que agrego para o entendimento da prática do canto pelo cantar junto como inerente ao ser humano e acessível à qualquer pessoa. Deste modo, percebo o cantar junto como um recurso potencialmente importante para o alargamento da sensibilidade, do autoconhecimento, da integridade e expressão plena do sujeito, bem como gerador do sentimento de pertencimento a uma comunidade, o que vivencio desde que comecei a cantar aos 9 anos de idade e que contribuíram, mais tarde, para a constituição do meu Ser artista e do meu Ser terapeuta, para minha ação como educadora e para a criação e formatação do método da Arte do Ser Cantante, que reúne os pressupostos metodológicos que utilizo nas oficinas e que, assim como eu, está em constante transformação. Portanto, o que apresento aqui é a perspectiva da prática e dos estudos de boa parte de uma vida quase inteira que, em seu decorrer, modelaram meu corpo, minha sensibilidade, meus sentimentos, minha subjetividade e minha consciência, refletindo no meu modo ser e perceber o mundo, na qualidade da minha interação com os outros, nos meus movimentos, no meu estilo de vida, nos valores que propago e na potência das minhas ações diante de tudo que me envolve cotidianamente.
Foi por meio da minha investigação do mestrado, concluída em 2017, que primeiramente tomei contato com os conceitos de experiência estética, comunidade estética e estética social concebidos por Arnold Berleant, apresentado a mim pelo meu orientador, o Prof.Dr. Arley Andriolo. Impactada pelo alinhamento que senti de suas concepções com a minha prática, adentrei-me em suas ideias e, juntamente com a perspectiva fenomenológica de Merleau-Ponty, encontrei a sustentação teórica para o trabalho que desenvolvi e que primeiramente influenciou-me na direção do estudo da experiência estética tecida pelo canto no processo social.
Passados dois anos, mais amadurecida e no seguimento das minhas inquietações, apresentei o projeto de doutorado com o propósito de compreender a partilha da sensibilidade pelo cantar junto e suas implicações no campo da Estética Social. Novamente apoiada na fenomenologia de Merleau-Ponty e no método fenomenológico como procedimento essencial para a investigação que se fundamenta na experiência perceptiva, conforme apontado por Arnold Berleant, e sustentada pelas narrativas descritas em cadernos de campo pelos participantes das quatro oficinas de canto que constituíram o campo de pesquisa dessa investigação, segui a diante. Realizadas no Brasil e em Portugal, respectivamente em Santo Antônio do Pinhal/SP, no projeto Montanh’arte, apoiado pela prefeitura local e em Campos do Jordão/SP, no Museu Felícia Leirner; e em dois diferentes locais de Lisboa, nomeadamente no
Laboratório de Música e Comunicação na Infância (LAMCI) com o apoio do CESEM, Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical da Universidade Nova de Lisboa e no Centro de Promoção Social Rainha D. Leonor, mantido pela Santa Casa de Misericórdia de Lisboa, as oficinas constituíram um campo privilegiado e imprescindível para o levantamento de dados para a composição desse estudo. A experiência transatlântica foi idealizada com o intuito de verificar de que modo a partilha da sensibilidade pelo cantar junto ocorreria em contextos culturais aparentemente tão distintos e complexos, dentro do pressuposto descrito acima, que situa o cantar junto como prática sensível, que favorece os sentimentos de bem-estar e pertencimento, integrador do sujeito consigo mesmo e da comunidade. Sem pretender examiná-los em profundidade quanto a sua diversidade contextual e cultural, meu principal objetivo, para atender ao propósito deste estudo, foi a colheita de material a partir da experiência dos participantes. Nas oficinas, acumulei os papéis de condutora e
pesquisadora, em uma ação participativa que permitiu-me criar, conjuntamente com os participantes, o caminho da experiência. Das impressões, sensações e sentimentos experimentados nos encontros, desenvolvi o percurso e a argumentação teórica. Os achados e conclusões aos quais cheguei e que ora apresento estão compostos em quatro capítulos: no primeiro capítulo, “Os caminhos da Experiência”, reflexiono sobre o método e as estratégias adotadas para essa investigação, sobre minha atuação como condutora e pesquisadora, sobre o método pedagógico e a escolha das dinâmicas e descrevo, em linha gerais, o campo de pesquisa formado pelas quatro oficinas. No segundo capítulo, “O campo da experiência”, detalho os locais, o ambiente, as características e o modo como as oficinas foram constituídas tanto no Brasil como em Portugal, bem como teço um relato da experiência vivida em cada uma, entrelaçado às vozes dos participantes. No terceiro capítulo, “A Estética Social na sensibilidade compartilhada por meio do cantar junto”, compus a argumentação teórica dividida em dois tópicos principais. No primeiro tópico, “A Experiência Estética e a Comunidade Estética”, apoio-me no entendimento de Comunidade Estética e Estética Social de Arnold Berleant (2010) somados às proposições de Georgina Born (2017) para uma Estética Social relacionada à música e às ideias de Tia DeNora (2007) e sua Tecnologia do Eu nas relações entre música e saúde, sobre a qual desenvolvi uma "Tecnologia do Nós", complementada pelo conceito de sentimento psicológico de comunidade (SPC) desenvolvido por McMillan & Chavis, (1986) revistos por João Amaro (2007), para avançar na compreensão dos sentimentos de bem-estar e pertencimento amplamente descritos nos relatos dos participantes das oficinas. No segundo tópico,“O repertório como Cartografía Poética”, investigo a importância do repertório musical da oficina na construção simbólica de um território delineado e preenchido por canções que compõem a trilha vocalizada e audível a ser percorrida por um grupo em específico e que confere sentido e memória ao constituir uma partilha transformativa entre seus membros. O quarto capítulo, “Liberdade (d)e Conexão”, está centrado na síntese que encontrei ao integrar os sentimentos, sensações e impressões relatadas pelos participantes, entre os quais me incluo, ativados pela coexistência proporcionada pelo cantar junto, dividido em três tópicos: O Sentido de Liberdade, O Sentimento de Conexão e Liberdade de Conexão. Nesse último capítulo, esclarecedor e conclusivo para mim, alinhavo e encerro a totalidade desse estudo.
Por fim, destaco quatro observações quanto ao modo de escrita e alguns termos escolhidos para minha narrativa:
1) Optei pela escrita na primeira pessoa do singular e, por vezes, na primeira pessoa do plural em consideração ao meu envolvimento como condutora e ao meu engajamento como participante e pesquisadora.
2) Optei pelo uso da expressão cantar junto e em algumas situações por canto em conjunto em detrimento de canto coletivo, por esse último estar associado à prática coral voltada para realização de repertório e performance.
3) Obedecendo ao acordo de anonimato, os nomes dos participantes foram trocados por nomes fictícios.
4) A ortografia utilizada pelos participantes em seus relatos foi mantida conforme o original.
1. Os caminhos da experiência
1.1. As oficinas de canto: métodos e abordagens
O método de pesquisa para este trabalho está fundamentado na fenomenologia e no método fenomenológico. Para oferecer uma melhor compreensão sobre a fenomenologia como método de investigação, recorro, inicialmente, à sua etimologia, que a define como a ciência do fenômeno, daquilo que se revela por si mesmo. Concebida como ciência das estruturas e essências da consciência pura por Edmund Husserl (1859-1938), que a divulgou como um método de investigação filosófica, a fenomenologia está fundamentada na experiência vivida, no contato com as “próprias coisas” naquilo que são em essência e que é dado à consciência, sendo essência a maneira ou característica do aparecer de um dado fenômeno, e consciência “uma atividade constituída por atos (percepção, imaginação, volição, paixão) com os quais se visa algo” (MOREIRA, 2004). Em síntese, entende-se a fenomenologia como o estudo do fenômeno e das essências daquilo que se manifesta na consciência. Como tal, novas tendências e ramificações derivam desse entendimento e ampliam seu significado ao longo do tempo, pelas diversas utilizações que dela se obtém (MOREIRA, 2004). No que tange ao entendimento do fenômeno estético, segundo Andriolo (2021), sua origem está situada nos trabalhos de Moritz Geiger, aluno de Husserl e membro do círculo fenomenológico de Munique (ANDRIOLO, 2021, p. 108). Acerca do fenômeno estético na fenomenologia contemporânea, Andriolo (2021) ressalta a compreensão estética de Mikel Dufrenne, exposta em seu livro Phenoménologie de l’éxperience esthetique (1953), “ao qual se seguiu uma série de estudos e publicações muito significativas para todo o campo da estética fenomenológica”, como fundamental para o avanço no domínio da estética fenomenológica, bem como para as teorias da arte (ANDRIOLO, 2021).
Neste estudo, trabalharei com duas vertentes fundamentais no campo da estética fenomenológica. Em primeiro lugar, adoto a compreensão fenomenológica de Merleau-Ponty, cuja proposição está situada na produção de sentido resultante dos efeitos do entrelaçamento sensível das relações, que ocorre de modo perceptivo, intercorpóreo e pré-reflexivo, inseparável da intersubjetividade inscrita na experiência social e histórica (ANDRIOLO, 2021). Para Merleau-Ponty (2014):
A aquisição da Fenomenologia foi sem dúvida ter unido o extremo subjetivismo ao extremo objetivismo em sua noção de mundo ou da racionalidade. A racionalidade é exatamente proporcional às experiências nas quais ela se revela. Existe racionalidade, quer dizer: as perspectivas se confrontam, as percepções se confirmam, um sentido aparece. Mas ele não deve ser posto à parte, transformado em Espírito absoluto ou em mundo no sentido realista. O mundo fenomenológico é não o ser puro, mas o sentido que transparece na intersecção das minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem de umas nas outras; ele é, portanto, inseparável da subjetividade e da intersubjetividade que formam sua unidade pela retomada de minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, da experiência do outro na minha. (MERLEAU-PONTY, 2014, p.19)
Em seu livro Fenomenologia da Percepção (2014), Merleau-Ponty descreve a fenomenologia como sendo:
1) O estudo das essências. E todos os problemas resumem-se em definir essências: a essência da percepção, a essência da consciência, por exemplo;
2) Uma filosofia que repõe as essências na existência, e não pensa que se possa compreender o homem e o mundo de outra maneira senão a partir de sua facticidade;
3) Uma filosofia transcendental que coloca em suspenso, para compreendê-las, as afirmações da atitude natural. Mas é também uma filosofia para a qual o mundo já está sempre "ali", antes da reflexão, como uma presença inalienável, e cujo esforço consiste em reencontrar esse contato ingênuo com o mundo para dar-lhe, enfim, um estatuto filosófico;
4) A ambição de uma “ciência exata”, mas é também um relato do espaço, do tempo, do mundo “vividos”;
5) A tentativa de uma descrição direta de nossa experiência tal como ela é, sem nenhuma deferência à gênese psicológica e às explicações causais que o cientista, o historiador ou o sociólogo possam dela fornecer (MERLEAU-PONTY, 2014, pp. 1-2).
Em suma, para o filósofo, a fenomenologia só é acessível por um método fenomenológico e “é em nós mesmos que encontramos a unidade da fenomenologia e seu verdadeiro sentido” (MERLEAU-PONTY, 2014, p.2):
É diante de nós, na coisa onde somos colocados por nossa percepção, no diálogo em que somos lançados por nossa experiência do outro, num movimento cujas molas não são conhecidas por nós em sua totalidade, que se encontra o germe de universalidade ou a “luz natural”, sem as quais não haveria conhecimento.
(MERLEAU-PONTY, 1947/1989, p.135 apud ANDRIOLO,A. 2021, p.109)
Em segundo lugar, trabalho com a concepção de Arnold Berleant, músico e filósofo dedicado à fenomenologia, que orienta o método fenomenológico como procedimento essencial para a investigação que se fundamenta na experiência perceptiva:
O método fenomenológico tem dupla utilidade aqui, não só por sua rigorosa exposição e suspensão das hipóteses, mas também pelo foco na experiência perceptiva como ponto de origem da investigação.
É aqui que a fenomenologia compartilha um terreno comum com a estética, que é, como devemos rapidamente observar, enraizada na experiência perceptiva. O método fenomenológico fornece um procedimento purgativo e uma direção para qual a investigação estética pode prosseguir. (BERLEANT, 2010, p.22, tradução minha.)
De modo conciso, para Berleant, o território comum entre estética e fenomenologia reside na experiência perceptiva ao envolver o engajamento dos sentidos, a percepção e a consciência do seu significado, ou seja, o significado é experimentado na profundidade das sensibilidades (ANDRIOLO, 2018), de onde emergem indistintamente os sentimentos, os valores e as memórias que compõem determinada situação e fornecem sua compreensão. Desse modo, a proposição do método fenomenológico nessa investigação deu-se pela utilidade dos procedimentos que oferece para o entendimento da ligação entre a estética social e a sensibilidade em interface com as artes no âmbito da Psicologia Social, bem como sua repercussão na vida cotidiana do sujeito e da comunidade (ANDRIOLO et all, 2022). Neste caso em particular, pelo engajamento sensível promovido pelo cantar junto como prática musical que contribui para a criação de um tipo de coexistência na qual a mutualidade e a partilha das sensibilidades estão intensamente presentes.
1.2. Estratégias para o levantamento de dados e análise do material recolhido
Desenvolvidas junto ao LAPA, Laboratório de Pesquisa em Psicologia da Arte IP/USP coordenado pelo Prof. Dr. Arley Andriolo, e do qual sou membro desde 2013, as estratégias que adotei para o levantamento de dados nesse estudo encontram-se apoiadas no método fenomenológico e foram utilizadas por mim anteriormente na investigação que resultou na minha dissertação de mestrado. Tal abordagem partiu daquela realizada por Marcelo Petraglia (2015), cuja tese, também elaborada junto ao LAPA, examinou o conhecimento de si e do outro na aplicação de oficinas musicais. Nossas estratégias tinham em comum o trabalho com oficinas multigeracionais através da musicalidade. Porém, distinguem-se pelo foco que tenho atribuído ao cantar junto e à constituição do repertório.
Inicialmente, chamo a atenção para utilização das oficinas como contextos de pesquisa nos quais são criados “microssistemas” que reproduzem o processo social vivenciado na ação cotidiana. Situo as oficinas como campos específicos para práticas diversas, compostas por pessoas que se unem para um fazer em comum. Como práticas sociais, evidencio seu caráter político na produção de sentidos, percepções e valores que moldam a experiência, em uma troca sensível facilitada por uma interação grupal que ocorre em um percurso criado por todos os seus componentes, que dela participam livremente. Para essa investigação, as oficinas constituíram-se como espaços privilegiados para o estudo da sensibilidade compartilhada pelo cantar junto.
Do ponto de vista teórico-metodológico, Spink e Medrado (2014) posicionam a oficina como “estratégia facilitadora para a troca dialógica e da coconstrução de sentidos, cujos procedimentos metodológicos, à primeira vista, parecem articular grupos focais (Ressel et al., 2008), estratégias de dinâmica de grupo (Spink, 2003a) e rodas de conversa (Mello, Silva, Lima & Paolo, 2007)”, onde se negociam a multiplicidade de posicionamentos e busca-se ressaltar a plasticidade criativa das interações grupais:
No contexto das oficinas, a negociação de sentidos compreende um processo de interanimação dialógica e de coconstrução interpessoal de identidades, num constante jogo de posicionamentos (Davis & Harré, 1990), que faz fluir a multiplicidade de versões sobre o tema em discussão, atravessadas por “jogos de verdade”. Somos quem somos porque o outro nos interpela, acata ou disputa nossa versão de self. (SPINK e MEDRADO, p.41, 2014)
De maneira sucinta, os autores destacam três vetores que definem a dinâmica, o exercício de análise e a finalidade do uso das oficinas como estratégia metodológica (2014): foco, plasticidade e política. Para a análise de cada oficina, Spink e Medrado (2014) propõem a inclusão e compreensão de vários procedimentos, que vão desde os aspectos que a antecedem, como a divulgação, o convite, a receptividade, localização, duração, assinatura dos termos de consentimento livre e esclarecido e de imagem, bem como dos elementos que constituem sua ambientação, como: sala, clima, organização, decoração, até as reflexões e narrativas geradas pelo processo em si.
Para a realização desse estudo, adotei os seguintes procedimentos para o levantamento, análise e compreensão dos dados:
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A adoção de cadernos de campo para que os participantes registrassem suas experiências e impressões. Considero que os diários são a incorporação da experiência estética em si, tendo em conta não só aquilo que descrevem, mas também como é feita a descrição.
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Apresentação de um questionário para o levantamento de informações básicas, tais como: contexto de vida do interlocutor, seu dia a dia, os interesses pessoais, questões de saúde, com o intuito de verificar as expectativas dos participantes sobre o trabalho a ser desenvolvido e os motivos da escolha em participar da oficina.
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Recolhimento de depoimentos em vídeo com a concordância dos participantes, respeitando a ética e o anonimato, visando enriquecer o material de pesquisa.
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Solicitação de uma canção que fosse importante e significativa para o participante em sua trajetória de vida, com a intenção de compor um repertório expressivo a ser trabalhado no grupo.
Do levantamento, organização e análise dos dados do material de pesquisa, emergiram as categorias que conduziram a discussão e a compreensão teórica. Ressalto que todo o processo de investigação está fundamentado na experiência vivida pelos participantes e na minha própria, relatadas no material recolhido.
Em resumo, foram adotados os seguintes passos metodológicos:
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“Diários de Bordo” (cadernos de campo) distribuídos para cada participante
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Formulário com questões específicas sobre o participante
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Gravação dos encontros e depoimentos em vídeo, respeitando o acordo de anonimato.
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Constituição do repertório por canções trazidas pelos participantes
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Anotações das observações da pesquisadora sobre o processo
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Análise dos dados obtidos para a argumentação teórica
1.3. Os campos de pesquisa, o método pedagógico adotado e a ação da
condutora/pesquisadora
O campo de pesquisa desta investigação foi composto por quatro oficinas que reuniram participantes advindos de diferentes contextos sociais, econômicos e culturais, organizadas em espaços com propósitos diversos. Tal situação permitiu-me obter dados relevantes para análise e comparação, com vistas a aprofundar a discussão e compreensão propostas neste estudo. A duração de cada grupo variou entre oito e dez sessões consecutivas, uma vez por semana, abrangendo um período de cerca de dois meses.
O projeto de pesquisa previa, inicialmente, a realização do campo de pesquisa apenas no Brasil. Passados um ano e meio da sua aprovação, duas oficinas haviam sido concretizadas: os grupos de Santo Antônio do Pinhal e Campos do Jordão. Após sua realização, percebi a necessidade de expandir o estudo para além-mar com o intuito de aprofundar a tese defendida neste trabalho observando contextos culturais e sociais, à primeira vista, ainda mais distintos. Assim, surgiu a experiência de Portugal, situada em Lisboa, onde mais duas oficinas foram criadas: Grupo LAMCI e Grupo Rainha, que foram de substancial importância para ampliar e fundamentar este estudo.
Os quatro grupos, brevemente descritos aqui, serão detalhados em capítulo
posterior.
Grupos realizados no Brasil
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Grupo de Santo Antônio do Pinhal: A oficina foi realizada dentro do projeto Montanh’arte, mantido pela prefeitura local e foi oferecida para os habitantes da cidade, tanto da zona rural, como da zona urbana. O grupo foi composto inicialmente por 19 participantes, sendo 15 jovens adolescentes entre 11 e 17 anos, vindos da escola pública da região, três mulheres com idades de 73, 40 e 32 anos e um rapaz de 25 anos. Os participantes souberam da oficina pela facilitadora e por frequentarem o projeto Montanh’arte. Destes, 11 chegaram ao final.
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Grupo de Campos do Jordão: A oficina foi realizada dentro da programação do Museu Felícia Leirner e oferecida ao público local. O grupo foi composto por 27 pessoas com idades entre 11 e 65 anos. Destes, 23 chegaram ao final. Os participantes souberam da oficina através da divulgação difundida pelo museu, criada especialmente para a atividade.
As oficinas foram gratuitas e divulgadas aos interessados pelos promotores parceiros, nesse caso, Prefeitura de Santo Antônio do Pinhal e Museu Felícia Leirner.
Grupos realizados em Portugal
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Grupo Lamci: A realização da oficina contou com o apoio e a colaboração do Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (CESEM), unidade de investigação sediada na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (NOVA FCSH) e teve lugar no espaço do Laboratório de Música e Comunicação na Infância (LAMCI), que compõe o núcleo de atividades investigativas desenvolvidas pelo CESEM, ambos coordenados, à época, pela Profa.Dra. Helena Rodrigues, que amparou essa investigação. O grupo foi formado por 13 pessoas com idades entre 25 e 81 anos. Destes, 8 seguiram até o final. Os participantes souberam da oficina pela divulgação realizada pela instituição e por minha rede pessoal.
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Grupo Rainha: A possibilidade de realização deste grupo surgiu pela mediação operada pela Profa. Helena Rodrigues junto à Profa. Isabel Coelho Mota, diretora do Centro de Promoção Social Rainha D. Leonor, pertencente à Unidade de Inovação Social (UIS) da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), que imediatamente acolheu o projeto e deu total suporte para a sua realização. Diferentemente das outras experiências abertas ao público, o grupo foi formado por 7 educadoras de infância e uma coordenadora do referido centro, que concordaram em participar da pesquisa, por solicitação da direção. Destas, 6 chegaram ao final, em função de licença médica gestacional de uma das participantes, ocorrida quase ao término dos encontros.
1.3.1. O método pedagógico adotado para criação do campo da experiência
Cheguei atrasada, dia estressado, mas mesmo atrasada, não quis deixar de vir. Foi bom. O acolhimento de Cecília é sempre uma grande lição, de per si.
recurso: Mãos- energia, -U- vibração, respiração, velocidade aquecimento: - imitação -- ...
cantos: 1. Aurvuporã 2. Pad (nepal)
Procurei a minha voz, mas foi sobretudo procurando a fusão com o grupo. Procurando a delicadeza do som. Tem sido interessante procurar aprender de ouvido. É um esforço procurar a estrutura e a disciplina, mas faz-me sentido. Obrigada.
E a dança. Pouco a pouco o corpo vai encontrando um ritmo comum. (Heloísa, 59 anos, LAMCI)
O método da Arte dos Ser Cantante, concebido e desenvolvido por mim, foi formulado ao longo dos anos da minha própria experiência como cantora, educadora e terapeuta somática, em um percurso que está sempre em transformação e que me coloca em contínua revisão diante daquilo que percebo, das minhas crenças e valores, refletidas no meu modo de sentir e agir, naquilo que ocorre na minha relação com o outro, e que revela, para mim mesma, o Ser estético e sonoro que sou.
Em movimento, assim como eu, o método passa por constantes revisões. Entretanto, em seus fundamentos, seus princípios e valores essenciais permanecem estabelecidos:
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considera-se que cantar é uma habilidade inata em qualquer pessoa e cantante é todo aquele que se expressa musicalmente por meio da voz (COELHO, 2017), contrariando a crença secular de que cantar é um “dom”, obtido por poucos escolhidos, enraizada nas figuras do compositor, do regente e do solista, indivíduos portadores de uma condição incomum. Com isso, busca-se restaurar a liberdade de cantar como pertencente a todos.
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Compreende-se a técnica vocal como a aquisição de recursos para o reconhecimento e ampliação das habilidades naturais do estudante, por meio de práticas que visam o alargamento da sensibilidade, o autoconhecimento e o desenvolvimento das suas qualidades expressivas, em um processo integrativo que engloba a percepção do corpo em conexão com os sentimentos e sensações e a consciência dos movimentos que dão forma à sua expressão no mundo ao tornar-se audível e visível por meio da sua voz. Associada à palavra grega cujo significado etimológico remete à habilidade e destreza em fazer, está relacionada ao sentido da arte e envolve a criatividade, a imaginação, a inventividade e a reflexão (COELHO, 2017).
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Em resumo, concebe-se o cantar como experiência sensível, como meio de integração do sujeito consigo mesmo, em interação com o outro e com o ambiente que o envolve.
Tal concepção insere o método descrito no campo da psicologia voltado para a dimensão estética da experiência (ANDRIOLO, 2021) na qual a sensibilidade compartilhada é o foco da consciência perceptiva, centrada na interação entre pessoas e na relação destas com todo o ambiente ao seu redor. (COELHO, 2017)
No campo educacional, tal perspectiva metodológica assemelha-se ao conceito de Educação Estética, desenvolvido por Arnold Berleant (1971), no qual a educação é percebida como processo estético, no sentido de uma educação para o sensível. Para Berleant (1971), o campo educacional corresponde ao campo estético, compreendido como a ocasião da situação em que ocorre, na qual toda a percepção e ação estão engajadas, e envolve todos os atores e componentes da experiência: professor, estudante, pesquisador, objeto de estudo e o ambiente. Evidentemente, o entendimento de ambiente não está delimitado unicamente aos aspectos tangíveis da experiência, uma vez que podemos compreendê-lo desde a qualidade da presença do condutor e dos participantes, considerando os valores, crenças e sentimentos que emergem do encontro entre eles, até as características da paisagem sonora e visual, do espaço arquitetônico e a localização geográfica.
Com isso, reforço a responsabilidade da atuação do condutor na geração, na qualidade e na sustentação do campo sensível para onde a experiência irá convergir (BERLEANT, 1971), bem como e a necessidade deste em estar em constante reflexão sobre suas ações.
1.3.2. A ação da condutora/pesquisadora
Para que eu pudesse manter minha integridade como condutora, foi necessário, mais uma vez, renunciar aos meus pressupostos e colocar-me em uma posição de “risco” e de abertura, tanto para o inesperado, como para perceber-me como parte integrante do fenômeno. Foi preciso manter-me atenta aos meus sentimentos, ao mesmo tempo que à minha própria percepção com o que ocorria com o outro, entre o grupo, com o grupo e com o ambiente ao redor, para identificar os movimentos dos participantes diante das práticas propostas, encontrar recursos para reuni-los em uma ação criativa e estabelecer um fluxo continuum, onde tudo o que emergia passava a compor o campo da experiência. Tal situação não é estranha para mim, pois esta atitude sempre esteve presente em minha atuação nas oficinas que conduzo. Decerto, é um trabalho interno intenso defrontar-me comigo mesma, para despir-me do conhecido e planejado e acolher e incluir o inusitado sem perder o fio da condução e ser, simultaneamente, mestre e aprendiz. Lembro-me do texto do Nicholls Tracey (2017) no qual cita uma frase de Bell Hooks: “Cada momento premeditado é perturbado pelo inesperado. A profunda natureza da prática artística está enraizada em uma filosofia do risco” (HOOKS apud TRACEY.N, 2017, cp.9, p.219). É isto que experimento, aprendo e amadureço com cada grupo que conduzo há mais de 30 anos e que me traz um sentimento de fluidez, alegria e conexão, que percebo pervadir meu cotidiano, meu modo de ser e de me mover no mundo. A questão, aqui, foi manter igual atenção à pesquisadora, interrogando-me sobre meu lugar na experiência, embora tivesse, como educadora, desenvolvido a prática da observação participante. Engajadas no campo da experiência e no exercício da ação, “encontramos nossos lugares”: na hora do encontro era a condutora que prevalecia, deixando para a pesquisadora a reflexão sobre o acontecido.
***
Aliada ao método fenomenológico, a pesquisa ocorreu em um formato que chamei de ação participativa, onde pesquisador e condutor, unidos em uma mesma pessoa, juntamente com os componentes do grupo forjam, em cada encontro, o campo da experiência. Tal atitude e modo de ação pressupõem uma flexibilidade e adequação das dinâmicas às características de cada grupo e de cada experiência, para acolher e incluir os movimentos que surgem no instante.
Como o artista engajado no fazer da arte, o duplo papel de investigadora e condutora nas oficinas colocou-me em uma agência na qual participantes e eu tornamo-nos igualmente interlocutores e criadores do processo, em uma realização mútua. De acordo com Arnold Berleant (1971),
O performer na arte corresponde ao professor no campo educacional. Ele compartilha funções similares, ativando o objeto de atenção, abrindo o assunto para a consciência do estudante, engajando-o nele e trazendo-o à vida dentro de uma realização mútua. (BERLEANT, 1971, p.144)
Portanto, movendo afetos e mediando emoções, confirmei que a qualidade de agência do condutor no engajamento da experiência e sua repercussão no desenvolvimento do processo dinâmico, de onde emergem os valores que a norteiam, está intrinsicamente ligada à qualidade da atenção que ele presta aos movimentos que surgem no grupo, bem como da sua presença diante do outro, aliada a consciência da potência da sua ação diante daqueles que se dispõem a receber e confiar na sua liderança e do vínculo que estabelece. Para tanto, é imprescindível, àquele que se dispõe a essa tarefa, estar desperto e cônscio de si mesmo, pois, ao tornar-se parte do campo sensível, será necessário ser capaz de sustentar-se diante da exposição à percepção do outro sobre ele, bem como conectar-se com seus próprios sentimentos e sensações, para conduzir-se em seus movimentos na geração de um percurso criativo que será trilhado conjuntamente.
1.3.3. As dinâmicas como recurso para o desenvolvimento pessoal e
constituição do grupo
Tendo como perspectiva o método fenomenológico descrito anteriormente, somado aos pressupostos de uma ação participativa, construí, conjuntamente com os participantes, a realidade que caracterizou cada grupo (GERGEN e GERGEN, 2010.
p.95). O método pedagógico da Arte do Ser Cantante foi o fio condutor para a escolha e elaboração das práticas desenvolvidas nos encontros, como detalhado em item anterior.
A dinâmica geral dos encontros incluiu:
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Práticas para a escuta sensível e atenta de si e do outro.
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Práticas para a consciência do corpo e para o alargamento da sensibilidade
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Recursos e dinâmicas para o desenvolvimento da expressão vocal e para o reconhecimento das próprias habilidades vocais.
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Jogos e práticas de livre improvisação e de percepção dos parâmetros do som e da música.
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Jogos para a criação de imagens sonoras e de ativação da memória
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Dinâmicas para o engajamento do grupo, para o reconhecimento de si e do outro na criação de um campo comum.
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Realização do repertório trazido pelos participantes
Ao escolher as dinâmicas realizadas, busquei alinhá-las às características de cada grupo e, principalmente, estar atenta aos movimentos aflorados durante os encontros. Tal atitude muitas vezes fez com que eu deixasse o planejado para seguir o movimento que se apresentava e criar, no instante, a dinâmica necessária para aquele momento, percebida em alguma expressão que surgia de algum participante ou do grupo, integrando-a ao fluxo dos acontecimentos. Um exemplo desse modo de ação está presente na proposição de um ritual de chegada no início de cada encontro, para o qual solicitava a formação de um círculo ou o caminhar em círculo ao entrarmos na sala, cada um no seu passo para, em silêncio, perceber os sons, cores, luzes, temperatura, texturas, formas, objetos presentes no ambiente e o outro que, ao seu lado, compunha aquela experiência; em seguida, lhes pedia para fecharem os olhos e abrirem a escuta para o corpo para perceberem suas sensações e sentimentos e deixassem que o próprio corpo lhes dissesse o que gostaria de fazer e simplesmente fizessem, liberando qualquer julgamento. Dessa forma, eu podia distinguir a disponibilidade de cada um àquele encontro, manifestada em seus gestos e movimentos no espaço, no modo de respirar, nos sons emitidos, nas expressões faciais, podendo então dar sequência ao tema que havia planejado, alinhando-o à atmosfera que surgia, ou mudar de direção completamente, com a finalidade de atender ao tema que se apresentava naquele momento possibilitando, simultaneamente, um tempo para os participantes conectarem-se consigo mesmos.
A escuta consciente, a consciência do corpo, o alargamento da sensibilidade, a expressão vocal e o reconhecimento de si e do outro na criação de um cantar em conjunto, estiveram constantemente entrelaçados na elaboração das dinâmicas, que foram fundamentais para criar o campo sensível, ativar o engajamento na experiência e promover o jogo perceptivo entre os participantes. Como geradoras de um processo integrador e inclusivo no qual emoções, memórias, lembranças e reflexões foram despertadas, as dinâmicas facilitaram a troca espontânea de experiências e saberes, contribuíram para criação de um ambiente favorável e receptivo à expressão de cada um, à escuta sensível do outro, e fortaleceram o senso de pertencimento a si mesmo e a uma comunidade.
Abaixo, alguns relatos que repercutem o campo descrito acima: a minha atuação como condutora e as dinâmicas propostas nas quatro oficinas pesquisadas. Para melhor localização, estabeleci uma sigla para cada oficina: Santo Antônio do Pinhal, SAPinhal; Campos do Jordão, CJordão; Centro de Promoção Social Rainha D. Leonor, CPSRainha; Laboratório de música e comunicação na Infância, LAMCI.
Pois bem, eu agradeço a todos por terem me ajudado a entender minha voz. Professora eu agradeço a senhora por ter me dado aquele toque no começo das aulas. (Lucas, 21, SAPinhal)
Eu gostei, aprendi muito, a professora é divertida e muito legal Eu amo cantar, é uma experiência boa e diferente, ela emana muita coisa legal. Foi melhor experiência e melhor coisa (desenhos de corações e exclamação). Eu amo cantar desde 9 anos. Eu sou muito quieta e tímida. (Ivana, 13 anos, SAPinhal)
Amei a aula de hoje, cantamos mais, só cansei de ficar em pé. Cada dia que passa me sinto um pouco mais solta e percebi que a voz deu uma mudada, mais tudo isso graças a professora que me ensinou tudo e eu amo o coral e a professora que ensina o que sei até agora. Obrigada por tudo, profa. (Nataly, 11 anos, SAPinhal)
Amei a aula hoje. cada dia que passa estou achando melhor e estou perdendo bastante a vergonha e eu amo de paixão cantar e a professora é doce, mais doce que açúcar. Por isso, cada dia que passa eu vejo melhora, fora o que está me ajudando no dia a dia. Obrigada, profa. (Nataly, 11 anos, SAPinhal)
Hoje a aula passou tão rápido, o exercício de tentar pegar o lugar do outro... quero o meu lugar, tanto na música quanto na vida. Cantar no palco me trouxe boas lembranças e me deixou eufórica, imaginar quem amamos na plateia nos faz querer dar o melhor que pudermos e nos faz cantar com mais vontade. Cantar em grupo é ótimo para nos lembrar que somos melhores cantores quando saímos do singular, e estou feliz por estar redescobrindo o meu amor por cantar em grupo. Gratidão. (Carol, 22 anos, CJordão)
A cada encontro sinto meu canto sintonizado com o grupo - Soltando mais o corpo e as articulações.
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A Cecília consegue de forma muito natural conduzir e aprimorar o canto em grupo.
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Apesar de hoje algumas pessoas estarem dispersivas - Amo muito tudo isso! (Esmael, 65 anos, CJordão)
Agradeço muito pela paciência comigo! Esse processo tem sido difícil, por não entender o que está acontecendo interiormente, que me bagunça por inteiro. Olha! Descobri que sou soprano! Para tudo! Ou melhor, recomeça tudo!! Vou procurar me ouvir mais sozinha para ter mais segurança naquilo que eu sou. (Rose, 28 anos, CJordão)
Hoje senti-me mais leve e muito mais solta.
Dia após dia estes momentos têm tido muito mais espaço em mim. Hoje percebi também como respirar melhor e deixar que o ar entre dentro de mim de uma forma livre, sem o prender antes de chegar.
Obrigada por todas as novas aprendizagens e transformações. (Rosa, 36 anos, CPSRainha)
Tolerância para ouvir os outros. Não te permitires sair da tua capacidade para reagires mal. Estou aprendendo. (Isabela, 64, CPSRainha)
Hoje vivi sentimentos e emoções interiores. Remexi-me por dentro, respirei árvores, pôr do sol, cheiros, cores e paz interior.
Esqueci pensamentos nublados e obscuros e preocupados.
Libertei com sons, movimentos, sorri com vontade, suei com alegria. Hoje daqui levo o coração cheio, mas mais leve. Quero voltar.... (Marise, 39 anos, CPSRainha)
Gostei muito do lance da propagação do som x projeção da voz. Quero explorar mais isso. Como eu tenho esta questão de às vezes bloquear a voz, cada vez que mais um preconceito cai, eu adoro! (Ju, 66 anos, LAMCI)
Todas as práticas me remeteram para o mar e lembraram-me de, tal como ele, fluir. (Eduarda, 25 anos, LAMCI)
Cheguei mais tarde, vim do Norte e estava uma vibração e um clima caloroso na sala. Fui-me integrando na roda.
Depois,
Eu canto – círculo – gesto+vibração (dentro e fora da roda) Muito interessante.
Talvez tivesse ajudado a perceber se a ideia era criar um ostinato e ir repetindo/ .....ou se era completamente livre. Mas talvez esta questão não se coloque para “não músicos”. O olhar e “eu canto” / a exposição e a nudez.
Roda – um som, dois sons? vários? Livre? vibração conjunta.
Desenhar-me vibração, ... de mim na sala
Obrigada, Cecília, foi bom. (Heloisa, 59 anos, LAMCI)
Íntegra, centrada, espaço, amor. Percebi que meu corpo vibrou quando o grupo emitiu um som em conjunto. É como se estivesse um mantra corporal em mim. Aprendi que é importante definir meu espaço, mas que posso, ao mesmo tempo, ser flexível. Adorei esta sessão de compor uma história só com sons. (Teresa, 46, LAMCI)
2. O Campo da Experiência
2.1. A experiência no Brasil
2.1.1. A narrativa da oficina em Santo Antônio do Pinhal
A chegada ao centro de Santo Antônio do Pinhal por uma rua única, cercada pelas montanhas, evoca um sentimento de tranquilidade, característico de um lugar onde tudo parece próximo. Ao final da avenida, paralela ao rio que corta a cidade, avista-se o galpão do Projeto Montanh’arte, criado pela prefeitura, para atender a demanda por atividades artísticas e culturais dos seus habitantes. Na entrada, avista-se um pequeno espaço com bancos, onde os alunos aguardam o horário da aula e o professor. Dentro, um galpão amplo, simples, forrado com telhas de zinco, dividido em quatro pequenas salas, uma pequena cozinha e um espaço central que ocupa boa parte do espaço dedicado às atividades. É nesse galpão que o grupo que irá participar da oficina de canto irá se encontrar pela primeira vez. Alguns alunos esperam pela condutora da oficina que, ao chegar, os convida a entrar. Timidamente, seguem a professora. Vê-se em seus rostos e percebe-se em seus movimentos, um tanto contidos, um misto de excitação, constrangimento e curiosidade.
2.1.1.2. Sobre Santo Antônio do Pinhal
Santo Antônio do Pinhal é um pequeno município localizado na microrregião de Campos do Jordão, incrustado entre as montanhas da Serra da Mantiqueira e passagem para o sul de Minas Gerais. O último censo pelo IBGE aconteceu em 2010 (IBGE 2010) e conferiu 6.486 habitantes à pequena vila. Hoje, a população estimada em relação ao último censo é de 6.843 (IBGE 2021). O crescimento da população deveu-se tanto por novos nascimentos como por um movimento migratório: como Estância Climática, Santo Antônio aposta no turismo rural, ecológico e de aventura para incrementar a atividade econômica e, com isso, atrai novos moradores, em geral vindos de São Paulo e outras cidades maiores, em busca de um novo estilo de vida. Além disso, há uma população flutuante composta por turistas, bastante expressiva nos finais de semana e que quase dobra nos meses de inverno, período da alta temporada, que exerce uma influência importante na dinâmica da cidade.
A vinda de novos moradores da “cidade grande” exigiu que a cidade se adaptasse a novas demandas de serviços para atender o público recém-chegado. Com poder aquisitivo maior e um capital cultural diferente dos nativos da região, são percebidos como forasteiros, estranhos ao modo de vida da comunidade. Para os locais, os forasteiros são aqueles para quem, hoje, prestam serviço. Para os forasteiros, os locais são seus empregados. As tensões geradas por essa relação criam uma ambivalência que transparece no estranhamento e desconfiança entre eles, ao mesmo tempo que a curiosidade e aproximação oferece novas perspectivas e significados para os dois grupos.
Como moradora de Santo Antônio no período de 2016 a 2019, onde conduzi o grupo vocal Canto da Serra, formado pelos chamados forasteiros, tornei-me conhecida na cidade como educadora vocal e “regente do coral”. Desse modo pude estabelecer uma relação favorável que permitiu-me dialogar e transitar em ambos os grupos.
Já com o campo de pesquisa em perspectiva, pude verificar, em conversas informais como moradora, algumas influências de tal aproximação. Como exemplo, cito uma conversa que tive com Cristina, diarista, local, que presta serviço nas residências dos forasteiros. Ela conta que, ao mesmo tempo em que constata as diferenças nos estilos de vida e conserva um certo distanciamento desconfiado, a relação com as patroas abriu-lhe a percepção “para muitas coisas que antes não sabia que podia ter acesso”. Foi por uma delas que obteve o meu contato para que a filha, Renata, pudesse fazer aulas de canto individual comigo e inscrever-se na oficina. A relação de confiança que se estabeleceu entre nós possibilitou que seus amigos também se interessassem em participar dos encontros no Projeto Montanh’arte.
2.1.1.3. O projeto Montanh’arte
Na página do facebook do projeto Montanh’arte, encontra-se a seguinte descrição: “Projeto destinado para crianças e adolescentes, que, através da música, dança, teatro entre outras atividades tem o intuito de levar alegria aos jovens.” .
Patrícia, pedagoga e coordenadora do projeto, assume, como sua, a missão de educar pela arte os jovens da cidade e oferecer-lhes um lugar de encontro para que possam ter bons relacionamentos e cultivar valores que considera positivos, como respeito, amizade e cooperação. Ela compõe, com estes valores, uma perspectiva conservadora no que diz respeito à sexualidade e questões de gênero, por um certo temor e responsabilidade que sente sobre a conduta deles em relação a esses temas. Para garantir algum controle, estabeleceu algumas regras de convívio, como não permitir namoros dentro do espaço e ao redor. Patrícia “levantou” o projeto depois de um período em que este quase desapareceu e estabeleceu novas diretrizes pedagógicas e de comportamento que seguem em vigor até o momento. Contando com uma verba restrita da prefeitura, procura levar o projeto adiante com “pulso firme”, mediando dificuldades como a manutenção adequada do espaço e dos instrumentos, contratação de professores, valor da hora-aula. Vinculado a Secretaria de Cultura, é o único projeto educacional artístico da cidade.
Com o tempo, o local tornou-se um importante ponto de encontro e integração entre os jovens que vivem tanto no centro como na zona rural; um espaço onde podem compartilhar experiências voltadas para o fazer artístico e ampliar seus horizontes, posto que, além das poucas opções oferecidas na cidade, muitos compõem a camada mais pobre, especialmente aqueles que vivem na zona rural. Além das oficinas, o projeto abriga a fanfarra da cidade.
2.1.1.4. O local dos encontros
O galpão que abriga o Projeto Montanh’arte é um espaço de arquitetura simples, amplo, constituído por quatro pequenas salas nas laterais, duas delas equipadas com instrumentos musicais como teclados e estantes para partitura, e uma grande área central onde acontecem as aulas de dança. No lado de fora, ao lado do galpão, está a secretaria de cultura e, em frente, pode-se avistar o rio que corta a cidade e o auditório municipal.
Por ser localizado no centro, o acesso para quem mora na zona rural torna-se custoso em função da ausência de transporte público. Para que possam frequentar as oficinas oferecidas, muitos fazem o caminho a pé e chegam a caminhar por cerca de 6 Km. Existe a alternativa de pegar uma van particular, que transporta os habitantes da zona rural para o centro em horários determinados, ao custo de dez reais, valor que para muitos torna essa possibilidade inviável. Quando optam pela Van, por vezes chegam muito antes do horário e aguardam por horas o início da oficina para a qual se inscreveram.
A sala destinada à oficina, um pequeno espaço de 3 metros quadrados com desenhos infantis na parede e uma caixa grande de som sobre um pedestal, evidenciava a precariedade do espaço como um todo. Nos dias de chuva, o telhado de zinco inviabilizava a realização da oficina, pelo barulho que provocava. Para compensar a falta de espaço adequado, iniciávamos os encontros na área central. Cerca de 20 minutos depois, para obter uma melhor acústica e maior concentração, entrávamos na sala, que ficava lotada. Ainda assim, mesmo em condições restritas, os participantes engajavam-se nas atividades e o trabalho corria a contento.
2.1.1.5. Um relato da experiência vivida nos encontros
Uma roda, ainda fora da sala, é formada a meu pedido. É o nosso primeiro encontro. Com alguns sorrisos nervosos e um certo desconforto visível em seus movimentos, olham uns para os outros e para mim com curiosidade. Percebo-me observada e procuro responder com meu olhar de forma receptiva e acolhedora, atenta às minhas sensações e sentimentos diante deles. Respiro. Proponho que fechem os olhos e coloquem a atenção nos sons, vozes, aromas, temperatura, umidade, informações que criam a paisagem do ambiente que nos envolve. Em seguida, peço que percebam a respiração e sintam a vibração que está no corpo. Depois de algum tempo, solicito que abram os olhos e percebam a presença de cada um, mantendo a atenção no pulsar da respiração. Ato contínuo, proponho um pulso conjunto batendo as mãos e os pés e peço que cada um entoe seu nome. Expressões de susto percorrem o grupo. Começo, então, pelo meu, para exemplificar e para tranquilizá-los. Aos poucos, passado o receio inicial, o constrangimento desaparece, dando lugar a risos e brincadeiras. Entramos na pequena sala e caminhamos percebendo novamente luzes, cores, sons, aromas, formas, reconhecendo o ambiente e a presença do outro. Ao meu convite, sentamo-nos em círculo, para compartilharmos a experiência e fazermos uma roda de apresentações.
Cada um é convidado a cantar novamente seu nome e contar algo sobre si. Curiosamente, apenas alguns já se conheciam, apesar de muitos frequentarem a mesma escola e viverem em uma cidade pequena.
Bom, hoje foi um dia muito legal, reencontrei com um amigo que não falava a tempo.
Me senti feliz, alegre, uma brisa dentro de mim, que não sentia...
Gostei das atividades, foi bem interessante e compreendi bastante. (Carol, 17 anos)
A oficina foi composta, em sua maioria, por jovens adolescentes entre 11 e 17 anos, vindos da escola pública da região nas quais Patrícia, coordenadora do projeto, usualmente divulga as atividades. Além deles, compôs o grupo uma senhora de 73 anos, duas mulheres, de 40 e 32 anos respectivamente, e um rapaz de 25 anos, que souberam da oficina por frequentarem o projeto, pela divulgação feita nas escolas e por mim, entre meus alunos.
Durante os encontros, o grupo sofreu algumas oscilações. Algumas pessoas entraram posteriormente e outras não puderam continuar até o final, por conta da impossibilidade de transporte da zona rural para o centro. Em dias de chuva, os que vinham a pé faltavam por ser inviável chegar. Dos 19 participantes iniciais, 11 chegaram ao final. Na medida em que os encontros se desenvolveram e o vínculo se constituiu, ficaram mais à vontade uns com os outros, incluindo aqueles que chegaram posteriormente ao início da oficina, como Ana e May (17 anos):
Hoje foi minha primeira aula, mas eu adorei, consegui me sentir à vontade, mesmo sendo muito difícil eu me sentir assim em um lugar novo. Achei a professora muito simpática! Vou compará-la a um girassol, ela tem “luz” própria ... (Ana, 17 anos)
Gostei muito da aula de hoje. fiz amizade, a Maria Clara, e pra mim sempre é um aprendizado, sempre é dia de aprender! E hoje não foi diferente, a aula foi produtiva, confesso que no 1º dia eu gostei mais. Estou gostando muito das aulas. A professora é muito legal! (May, 17 anos)
Observei, desde o primeiro encontro, uma boa receptividade e interação entre os participantes, o que possibilitou o acolhimento de alguns desconfortos, como relata Teca, a mais velha da turma:
https://www.facebook.com/montanharte/about/?ref=page_internal - Acessado em 06/02/2023
1º encontro com o grupo. Uma experiência interessante com os jovens de hoje. Observar as inseguranças, os medos do coletivo. Como observadora foi muito interessante. como parte do grupo foi um pouco incômodo, uma vez que minha mobilidade está muito prejudicada. Não fico à vontade. (Teca, 73 anos)
Mesmo com o desconforto, Teca continuou a participar da oficina. Animada pelos mais jovens, aos poucos, encontrou um lugar confortável para estar.
Hoje foi muito gostoso. O grupo maior, mais entrosado e solto. Um encontro agradável para começar o outono. (Teca, 73 anos)
As dinâmicas propostas, minha condução, as diferentes pessoas, o cantar junto, eram experiências novas para os participantes. Se por um momento a novidade da situação trouxe algum constrangimento, as descobertas e a curiosidade dissolveram os incômodos e vergonhas, como podemos observar nos relatos de Mariana, 15 anos e Nataly, 11 anos:
15/03
Música...Confesso que de cara fiquei bem constrangida, e senti que não levo jeito para isso, mas notei que tudo depende de mim, da minha respiração e da forma como encaro a música. (Mariana, 15 anos)
22/03
Eu achei muito interessante, a respiração do ar que foi o que me ajudou muito a tentar melhorar a voz. E eu digo com toda certeza que é muito bom cantar com um grupo de pessoas! E a música me traz uma felicidade sem comparações. (Mariana, 15 anos)
12/04
Hoje eu me soltei mais e perdi muito a vergonha. só tenho a agradecer a profa porque eu tinha uma voz pior que outra coisa. Cada dia que passa sinto que minha voz melhora graças a profa. Valeu mesmo. (desenho de corações) (Nataly, 11 anos)
Formado por pessoas com baixo poder aquisitivo, em uma cidade com poucos recursos para investir em educação e cultura e sem a possibilidade de frequentar os grandes centros e expandir o conhecimento, a oficina possibilitou o acesso a informações que, possivelmente, não seriam alcançadas de outro modo. Nos relatos, nota-se a potência da oficina na geração de um processo social que abre portas para novas percepções e perspectivas:
Bom, apesar de ser o último encontro eu gostei bastante. Ter esse coral foi maravilhoso/aprendi várias coisas como usar a minha voz, a usar a respiração e muito mais. Fiz novas amizades e com isso decidi ir além, investir na minha voz e quem sabe um dia eu não possa dar aula. É
isso. Obrigado por tudo! (Will, 15 anos)
Hoje o grupo era melhor, consegui perceber melhor minha voz e modulá-la melhor em relação ao grupo. algo que notei é que não conhecia muitas das pessoas que participam ou participaram das aulas, mas agora as noto na rua e nos falamos. Convidei uma pessoa para vir hoje porque achei que o encontro faria bem. (Eliane, 32 anos)
Nos diários, as frases e palavras mais repetidas foram: descobri algo, aprendi algo novo, experiência diferente, gratidão, a aula foi produtiva, a aula foi muito legal, a hora passa voando, fiz amizade, é bom cantar em grupo, percebi minha voz, senti algo diferente, evidenciando o cantar junto como um lugar de descobertas, expansão, prazer, autoconhecimento, escuta, sintonia, percepção do corpo, percepção do outro, pertencimento.
Como parte da experiência, propus, inicialmente, a realização de uma apresentação final, com o propósito de expor o grupo diante de um contexto que possibilitasse o reconhecimento construtivo do processo coletivo e partilhá-lo com a comunidade. No entanto, as características do local e a organização rudimentar do espaço não permitiram que as condições necessárias fossem criadas para que ocorresse. Foi muito Loko e deu um pouco de vergonha. Melhor curso!!
2.1.2.4. A apresentação final
Foi sensacional o nosso encontro hoje, todos interagiram. Mas todo mundo ansioso porque só falta uma semana para nossa apresentação. Mas está ficando muito bom. Já estou com saudades dos nossos encontros. Espero que venha a haver mais encontros como esse. Me sinto importante estar cantando junto em grupo. É uma emoção que não se tem como explicar. Só quem está sentindo para entender. Está sendo uma experiência maravilhosa. (Gislene, 40 anos)
Dia espetacular, a experiência de cantar no palco foi ótima. E o cantar junto é muito bacana, pois não precisamos forçar a voz, é como se dividíssemos o peso da voz. É especial cantar juntos/ é divisão de amores e parcerias. Gratidão. (Anna Elisa, 42 anos)
De fato, a apresentação final começou no primeiro encontro do grupo e foi gradualmente engendrada na medida em que o envolvimento de todos no percurso criado conjuntamente fortaleceu as bases para efetivamente acontecer. Nos dois últimos ensaios, antes da apresentação, ansiedades, expectativas e sentimentos diversos permearam os cantantes:
Bom, hoje foi muito especial, a última aula dessa temporada, os preparativos da apresentação, os últimos detalhes, todos eufóricos, mas muito produtivo. Tivemos grandes crescimentos ao entender o cantar juntos, a sintonia, o ouvir todo grupo ao mesmo tempo e se ouvir, também. Espero que não demore para vir a próxima temporada. Amei participar desse evento. A Cecília é uma pessoa maravilhosa, a turma é uma turma bem legal e o mais legal é ver todos interagindo juntos, adolescentes, jovens e adultos. Bom, foi muito bom participar. Amei fazer parte desse grupo. Só tenho em agradecer a Deus pela oportunidade. (Gislene, 40 anos.)
A experiência de ensaiar no palco do auditório Cláudio Santoro, um espaço de excelência, por onde grandes nomes da cena musical brasileira passaram, trouxe para cada participante a percepção de si mesmo como artista, o que foi, para muitos, uma experiência única. Por se tratar de um espaço aberto para os visitantes do museu, alguns paravam e sentavam-se na plateia para assistir ao ensaio, fazendo às vezes de público, o que trouxe uma nova informação que favoravelmente integrou a experiência.
Hoje, sendo a última aula dos 10 encontros, conseguimos notar toda evolução e envolvimento do grupo. Nessa trajetória, tivemos contato com a natureza e todo conhecimento do nosso próprio corpo. Conhecemos a música não só como um som que transmitimos fisicamente, mas o apelo que nossa alma faz quando cantando.
A professora Cecília Valentim nos ensinou muitas técnicas vocais e autoconhecimento do próprio corpo, além da convivência e admiração que temos por ela. (Anna B, 18 anos)
Cantar num palco com o público é algo que eleva a minha alma. A música faz parte da minha vida em todos os sentidos. Cantar em grupome faz estar muito bem e me sinto muito harmonizado. Professora Cecília é sensacional. (Iuri, 26 anos)
Ensaio Palco Deu muito mais emoção. A união do grupo parece que aumentou. Eu me sinto muito mais feliz cantando junto, mais em paz... Muito especial cantar junto, não precisamos nem dizer... basta ver nos olhos de cada um. Parece que o corpo acorda quando cantamos junto...Tem horas que parece flutuarmos no palco!!! Delícia!!! (Juliana, 57 anos)
Cantar hoje foi diferente de todas as aulas, a acústica é diferente, mal se ouve nossa voz, cantar com público também se torna diferente, o público pega qualquer coisa que você faz. (Maria E, 17 anos)
Hoje, primeira experiência com o palco. Muita integração, harmonia e um gostinho de saudades, já que foi a penúltima aula. Esperamos que saia tudo bem no dia da apresentação. Vamos levar como mais uma grande experiência de vida. (Regiane, 56 anos)
A aula de hoje foi incrível demais, foi legal demais cantar com o pessoal assistindo, a acústica do palco é muito boa, cantar em grupo é uma coisa muito boa, dá uma confiança em nós mesmos, dá uma certa liberdade, a vergonha sai quase que totalmente. (Thay, 15 anos)
E começa a contagem regressiva:
Começa a contagem regressiva para a apresentação do grupo. A aula, além das noções de canto, já tem um foco mais definido. O grupo está mais integrado e bem à vontade. Muito gratificante... (Yara, 66 anos)
Hoje repassamos todas as músicas que viemos aprendendo durante esse tempo. Percebi que estamos mais unidos e entramos em sintonia, reparei também que eu e muitas outras pessoas melhoramos as nossas técnicas de afinação e respiração. Falo em nome de todos que estamos muito ansiosos com a apresentação que está por vir. Vou sentir saudade das aulas. Espero que venha o “viver o canto” - parte 2. (Tali, 13 anos)
Última aula. Coração acelerado, mas vamos lá, com muito amor e gratidão sempre. Aprendemos o trabalho em grupo com respeito, ritmo, amor, consideração. (Regiane, 56 anos)
Hoje, acho que por ser a nossa última aula antes da apresentação, foi muito bom. Estou ansiosa para a apresentação, confiante de que vai ser incrível. Passamos todas as músicas hoje, consertamos os erros e desafinações, vou sentir falta dessa aula. Sinto que melhorou meu comportamento aqui desde a aula, o grupo entrou em sintonia, “aprendemos” a cantar em grupo, aprendemos a ouvir a voz do outro enquanto cantamos, aprendemos várias técnicas de afinação e respiração que, na minha perspectiva, me ajudaram muito. Como disse, sentirei saudade dessa aula, da professora Cecília, que é muito incrível, ela tem uma voz linda, canta muito. Espero que no futuro tenha mais aulas. (Thay, 15 anos)
Agora não tem volta, amanhã é o dia. Amando cada vez mais tudo isso. Eu quero mais e mais. Posso pedir bis, tris, quartis? (Esmael, 65 anos)
Está acabando...último ensaio... ☹ e quando iniciamos fiquei pensando que seria difícil estar presente nos 10 sábados e agora vejo que passou tão rápido...A percepção que as pessoas estão mais unidas, que o grupo se tornou mais amigo, é maravilhosa! A distância que existia entre os participantes pareceu ter desaparecido nesta última aula. Consegui o sorriso em minha direção, de rostos que desviavam os olhares no início. Brincadeiras surgiram com todos e risos desabrocharam sem receios e vergonha. Vou sentir saudades desses sábados!!! Gratidão pela vivência!!! (Juliana, 57 anos)
Confiantes, engajaram-se totalmente na preparação da apresentação. Cada cena musical proposta contou com as sugestões e aprovação de todos, em um processo colaborativo. Ficou combinado que o público seria chamado para o palco para cantar e dançar a última música com o grupo. Ponto culminante, a integração com público formado por familiares, amigos e visitantes, expandiu a experiência para a comunidade como um todo. Ao término da apresentação, observou-se claramente um sentimento de completude, de valorização pessoal e de unidade coletiva:
Apresentar é sempre bom! Agora, fico com a sensação de dever cumprido, paz e muita gratidão. Não tenho palavras pra dizer o quão gratificante foi tudo isso! (Rose, 41 anos)
Último dia de canto e esse grupo maravilhoso. Encerramos com chave de ouro. No final da apresentação, quem estava assistindo participou no palco. Foi uma verdadeira comunidade de harmonia, alegria e amor. Querida Cecília, momentos inesquecíveis. Gratidão eterna por essa vivência. Vou levar para sempre... Beijo a todos com carinho. (Regiane, 56)
Que energia maravilhosa, Alegria! União, diversão, carinho demais! Até a próxima! Obrigada. (Juliana, 57 anos)
Que experiência incrível! Não existe nada mais intenso e nada mais prazeroso que estar com a música no palco. Além do mais, cantar em grupo me dá proteção, me dá alegria, me dá paz. O público participando foi DEMAIS!!! Uma interação que fez do nosso oferecimento muito mais prazerosa. UM grupo sensacional!
Que tenhamos muitos e muitos momentos como esse. A união – corpo – alma – música (Iuri, 26 anos)
Tudo pode ser traduzido por: Tumiak, Tumiak, Tumiak
Hei! Hei! Hei! Hei ahhh! Ahhh!Ahhh! Muito grata, Cecília, pelos bons momentos!!(Yara, 66 anos)
Poxa vida, Acabou! A tristeza de saber que meus sábados não irão mais ser preenchidos com música e divertimento é muito grande. Espero ansiosamente que existam mais encontros semelhantes. Deixo aqui todo meu amor. (Gina, 23 anos)
Foi sensacional a apresentação. O público interagiu conosco. Foi uma experiência sensacional, já estou com saudade. Espero que tenha outro logo. A experiência não tem como explicar em palavras. Só tenho a agradecer a Cecília pela disponibilidade. Que Deus abençoe muito a vida dela e de todos do grupo. (Gislene, 40 anos)
A apresentação marcou não somente o final de um ciclo, mas todo o processo vivido pelo grupo. Mobilizou emoções, memórias, afetos, medos, alegrias e o sentimento de pertencimento a uma comunidade por um compartilhar que gerou um sentimento de confiança de que estavam juntos, apoiando-se uns aos outros. Deixou saudades e um gosto de quero mais:
Foi uma experiência maravilhosa. Espero que tenha uma segunda vez.
Aprendi muitas coisas onde nem esperava aprender. Foi sensacional. Quero Replay! (Isabela, 17 anos)
Foi emocionante a troca de energia com a plateia. Adorei cada parte e me senti pertencente não só a nosso grupo, mas a toda a plateia. Somos todos um! Quero mais!! (Vivi, 34 anos)
Hoje foi incrível demais, fiquei muito emocionada, adorei quando o público subiu no palco e cantou com a gente, me diverti demais. Fiquei surpresa com meu desempenho, com meu resultado hoje. Espero que tenham mais aulas como esta. Vou sentir falta. (Thay, 15 anos)
Poxa vida, Acabou! A tristeza de saber que meus sábados não irão mais ser preenchidos com música e divertimento é muito grande. Espero ansiosamente que existam mais encontros semelhantes. Deixo aqui todo meu amor. (Gina, 23 anos)
Apresentar com todos foi a melhor coisa, como nos tornamos uma família e agora não ver mais eles no sábado vai ser de quebrar o coração. A professora vai estar para sempre no coração. TUMIAKI. (Maria, 17 anos)
Dos 10 encontros, 6 aconteceram na sala de vidro, um deles na concha acústica e três no palco do auditório, sendo dois para ensaio para preparação da apresentação final e um para apresentação final em si. O trabalho realizado com este grupo compôs o registro documental “Eu canto, nós cantamos”, desenvolvido como requisito para aprovação na matéria Antropologia, Música e Audiovisual, coordenada pelas professoras Rose Ikigi e Alice Villela. A confecção do audiovisual contou com a concordância e engajamento dos participantes e deu-se a partir dos depoimentos dos mesmos sobre a pergunta “o que acontece quando a gente canta junto?”. Compuseram o filme os momentos selecionados dos registros processados durante alguns dos encontros e da apresentação final, eternizando em película parte da memória das experiências vividas pelo grupo. A edição final pode ser vista em: https://youtu.be/ijidOmCirko.
O detalhamento da produção do audiovisual e seus principais resultados estão incluídos nos anexos.
Nos cadernos de campo, as palavras mais citadas foram: gratidão, prazer, experiência, conexão, sintonia, sensibilidade, escuta, vínculo, confiança, autoconhecimento, alegria, harmonia, percepção do corpo, percepção do outro, pertencimento, comunidade.
2.1.2.5. A coletânea de canções desenvolvidas neste grupo
Hoje a aula foi mais leve, ajudou a me sentir mais relaxada, estava precisando depois de uma semana de muita correria. As músicas em Tupy geralmente trazem um alto astral para o grupo e nos deixa mais harmoniosos, percebo que agora o grupo está ficando mais envolvido, o entrosamento musical está melhor e mais harmonioso, vejo evoluções em mim e nos outros. A cada encontro nos conectamos mais, nos conhecemos melhor e percebo que isso nos torna melhores cantores tanto sozinhos como em grupo. Os sábados já começam melhores só por estarmos aqui compartilhando as canções. Gratidão. (Carol, 22 anos)
A música cantada em Tupi-Guarani, para mim, foi muito bom de se ouvir e cantar, me senti bem quando cantei. (Flávia, 23 anos)
No caso de Campos do Jordão, foram trazidas 22 canções. Como não haveria tempo hábil para realizar todas, propus uma votação para selecionar as “10 mais”. As mais votadas foram: Alguém Cantando, Leãozinho, Vamos Fugir, Romaria, Velha Infância, Pela luz dos olhos teus, Aquarius, Ouvi dizer, Tente outra vez, Azul da cor do mar. Das dez escolhidas, seis foram selecionadas por mim entre as que eram conhecidas pela maioria dos participantes, pelo grau de complexidade musical e pelo tempo disponível para realizá-las. Assim, ficaram: Alguém Cantando, Leãozinho, Romaria, Velha Infância, Pela luz dos olhos teus e Aquarius (Esta, a pedido do grupo de teatro que estava montando a peça Hair naquele momento). Para compor o programa para a apresentação final, três das canções escolhidas mesclaram-se às canções trazidas por mim, tendo como critério as que estavam mais preparadas e incorporadas pelo grupo.
De início, após a votação, nem todos ficaram satisfeitos, pois gostariam de ver sua canção contemplada, como no caso da Rose (28 anos), relatado anteriormente, que se sentiu frustrada e “inútil” por nenhum voto, além do próprio, ter sido destinado às três canções que trouxe. Rose conversou particularmente comigo e expressou seu descontentamento. O simples fato de poder conversar e expressar sua frustração acalmou-a e fez com que se sentisse ouvida e considerada, acomodando seus sentimentos.
Abaixo, a lista de canções trazidas pelos participantes e por mim, as que foram selecionadas e as que compuseram o repertório da apresentação final.
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As canções trazidas pelos participantes:
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Alguém Cantando (Caetano Veloso)
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Águas de março (Tom Jobim)
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Azul da cor do mar (Tim Maia)
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Certas coisas (Lulu Santos)
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Coisa linda (Tiago Iorc)
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De janeiro a janeiro (Roberta Campos)
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Fico assim sem você (Adriana Calcanhoto)
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Gota d’água (Chico Buarque)
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Lanterna dos afogados (Herbert Vianna)
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Leãozinho (Caetano Veloso)
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Lua Nova (Roberto Carlos)
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Ouvi dizer (Melim)
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Pela luz dos olhos teus (Tom Jobim & Miucha)
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Romaria (Renato Teixeira)
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Tente outra vez
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Thank you for the music (ABBA)
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Travessia (Milton Nascimento)
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You rise me up (Josh Groban)
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Vamos Fugir (Giberto Gil)
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Velha infância (Tribalistas)
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You Rise me up (Josh Grobam)
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Canções trazidas por mim
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Calix Bento (Tavinho Moura - Letra adaptada de Folia de Reis do norte de Minas)
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Io Paraná (Canto Tradicional Tupi-Guarani)
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Lugar Comum (Gilberto Gil)
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Sentzeniná (Canto tradicional africano)
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Tá caindo fulô (Canto tradicional do Sergipe)
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Tumbayá (anônimo)
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Tumiaki (canto tradicional Tupi-Guarani)
3) Repertório da apresentação final
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Alguém Cantando
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Calix Bento
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Io Paraná
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Lugar Comum
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Romaria
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Sentzeniná
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Tá caindo fulô
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Tumbayá
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Tumiaki
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Velha Infância
2.2. A Experiência de Portugal
O que me inspira é encontrar dentro de mim o encanto do meu canto fazendo parte de uma orquestra individual e social. (Teresa M, 46 anos, grupo LAMCI)
Na minha profissão cantamos muito para as crianças e fazemos diversas atividades de música. A nível pessoal gosto muito de música, de ouvir, de cantar, de dançar. (Ana M, 47 anos, grupo CPSRainha)
A possibilidade da realização da pesquisa de campo em Portugal, nomeadamente em Lisboa, efetivou-se a partir do contato com a Profa.Dra. Helena Rodrigues, que acolheu o projeto no Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical
(CESEM), integrado a Faculdade de Sociologia e Ciências Humanas da Universidade Nova de Lisboa (NOVAFCSH), do qual tornei-me colaboradora - o que também permitiu o estabelecimento de uma parceria frutífera entre a NOVAFCSH e a Faculdade de Psicologia da Universidade de São Paulo, no âmbito das relações acadêmicas entre o CESEM e o Grupo de Estética Social (GES/IPUSP).
Pela mediação da Profa. Dra. Helena Rodrigues e com o apoio do
CESEM/FCSH, duas oficinas foram realizadas. A primeira, no Laboratório de música e comunicação na Infância (LAMCI) e a segunda, no Centro de Promoção Social Rainha D. Leonor, pertencente à Unidade de Inovação Social (UIS) da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), por intermédio da Profa. Isabel Coelho Mota, diretora do referido centro, que deu total suporte para a realização do trabalho. Os campos de pesquisa continham características distintas, que descreverei em tópicos específicos a seguir.
É importante registrar que as oficinas foram realizadas quando a pandemia de Covid-19, embora sob controle, ainda estava ativa e permeou o cenário dessa parte da investigação, desde a observação das regras do Departamento Geral de Saúde (DGS), ainda em vigor à época, até os receios suscitados pelo contato entre as pessoas, que voltavam a participar de atividades coletivas.
2.2.1. A narrativa da oficina realizada no LAMCI.
Os corredores largos e o pé direito alto do antigo colégio dos Jesuítas, em Lisboa, guardam a memória de cenas importantes da história portuguesa. Administrado pelos padres da Companhia de Jesus no século XIX, foi conhecido à época como Colégio de Campolide. Dedicado ao ensino das Ciências Naturais, especialmente voltados para a Física, Zoologia e Botânica, teve um grande impacto na cultura portuguesa por ter sido a instituição de ensino pré-universitário responsável pela educação dos jovens pertencentes às camadas mais altas da sociedade. Durante a implantação da República Portuguesa, o colégio foi bombardeado e encerrado. Com o bombardeio, parte das suas coleções e manuscritos se perderam.
2.2.1.1. O Colégio Almada Negreiros
O edifício do Colégio Almada Negreiros, antes Colégio de Campolide, situado no bairro de mesmo nome, é considerado Patrimônio Público por ser um exemplo da “transição estética neoclássica para concepções e decoração de interiores novecentista” (Wikipédia). Recuperado, foi cedido à Universidade Nova de Lisboa, que o renomeou como Colégio Almada Negreiros, em homenagem ao renomado pintor português. No local está sediada, desde 2017, a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, criada em 1977, dedicada às ciências sociais, artes e humanidades, onde reside o Centro de
Estudos de Sociologia e Estética Musical (CESEM), que abarca o Grupo de Educação e Desenvolvimento Humano (GEDH) e o Laboratório de Música e Comunicação na Infância (LAMCI).
2.2.1.2. O CESEM
O Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical é uma unidade de investigação interdisciplinar, situada no campo de intersecção de múltiplas áreas científicas que englobam as ciências sociais e humanas, conforme consta em seu texto de apresentação na página do site https://cesem.fcsh.unl.pt
Com o propósito de alargar e aprofundar a investigação nos campos da sociologia, estética, filosofia, psicologia, história, composição, paleografia, filologia, análise e iconografia musical, educação e desenvolvimento humano, estudos de gênero, música, tecnologias e interpretação da música, o CESEM busca fomentar, apoiar e desenvolver projetos de investigação, publicações, intercâmbios com outras instituições, tanto nacionais como estrangeiras, bem como a execução de obras artísticas, tendo em perspectiva a valorização da cooperação interdisciplinar: Como unidade de investigação dedicada ao estudo da Música e das suas correlações com as outras artes, a cultura e a sociedade, incorpora abordagens diversas e fazendo uso das perspectivas e metodologias mais recentes nas Ciências Sociais e Humanas.
2.2.1.3. O Grupo de Educação e Desenvolvimento Humano
Como parte do CESEM, O GEDH (Grupo de Educação e Desenvolvimento Humano), é composto por um conjunto de investigadores com experiência em ensino, desempenho e intervenção artística na comunidade, que partilha do ideal de desenvolvimento humano e promoção do bem-estar social mediado pela música. Entre seus objetivos, destacam-se, no âmbito deste trabalho, o incentivo à criação de metodologias e projetos que visam a intervenção musical na comunidade que atendam as necessidades locais, além de incrementar a produção de trabalhos e a formação de recursos humanos dentro das áreas da Psicologia da Música, da Pedagogia Musical e das Terapias Expressivas.
2.2.1.4. O LAMCI
O Laboratório de Música e Comunicação na Infância (LAMCI) do Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical (CESEM) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (NOVA FCSH), estabeleceu-se em 2009, como consequência de um longo trabalho desenvolvido nas áreas da psicologia e da pedagogia musical. Caracteriza-se por conciliar a investigação, a formação, a criação artística e a intervenção na comunidade, de modo a construir um ambiente favorável aos seus objetivos. Reconhecido internacionalmente e dotado de boas condições para a observação do comportamento musical em situações de comunicação e interação humana, o laboratório mantém várias iniciativas que permitem o estudo da música em diferentes contextos sociais com fins artísticos, terapêuticos e educativos, especialmente voltados para a infância e primeira infância.
2.2.1.5. O Local dos encontros
O recém-inaugurado espaço do LAMCI situa-se no segundo piso do Colégio Almada Negreiros. É constituído por um pequeno hall, um estúdio menor e uma sala principal. No estúdio, isolado da sala principal por uma parede de vidro característica dos estúdios de áudio, ficam os computadores, equipamento de som, instrumentos, uma pequena biblioteca e um espaço para reuniões. A sala principal é ampla, silenciosa, arejada e bem iluminada, com janelas largas com vidros duplos, piso vinílico cinza e tratamento acústico nas paredes. Das janelas é possível avistar o jardim e o pôr do sol, com sua luz suave do outono penetrando na sala. Ainda em fase de mudança do antigo local, os objetos do antigo LAMCI começam a encontrar seu lugar no novo espaço.
No horário reservado para a oficina havia pouco movimento pelos corredores do Colégio. A maior parte das atividades, naquele momento, ocorria online e nos períodos da manhã e tarde. Em função da pandemia de Covid-19, que se atenuava no momento inicial da oficina, observamos as regras impostas pelo Departamento Geral de Saúde - DGS, entre as quais, o uso de máscaras em espaços fechados. A facilidade de acesso por transporte público e carro permitiu que pessoas de vários locais dentro e fora de Lisboa pudessem vir para a oficina.
2.2.1.6. Um relato da experiência vivida nos encontros
Subo os degraus que levam até o pátio onde se localiza a porta de entrada centenária do Colégio Almada Negreiros. Dalí, a paisagem ampla e desafogada possibilita a visão de boa parte do bairro de Campolide. Entro pela pequena porta que contrasta com o tamanho da construção. Ao caminhar pelos extensos corredores, observo as janelas altas e largas que iluminam o seu interior. São cinco horas da tarde. Neste horário, o movimento é pequeno e quase não se ouve o burburinho dos alunos.. Sigo até a lanchonete, peço um café “para levar”e subo para a sala do LAMCI, onde encontrarei os participantes da Oficina Viver o Canto pela primeira vez. Caminho lentamente pela sala, canto uma melodia improvisada e ouço meus passos e minha voz preencherem o espaço. Vibro e espero a chegada dos participantes com a expectativa que sempre me acompanha em novos encontros. São quase seis horas da tarde. Começam a chegar. São quatorze ao todo: recebo-os com um sorriso e percebo a expectativa e excitação refletidas no olhar de cada um. Dou boas-vindas ao grupo composto por 11 mulheres e um homem. Penso: “como sempre, a maioria é de mulheres...”. Toco a tigela de metal e formamos uma roda na antessala. Sinto os olhares curiosos recaírem sobre mim e quase ouço seus pensamentos:“O que será que está por vir?”. Peço que fechem os olhos e percebam o
https://pt.wikipedia.org/wiki/Col%C3%A9gio_Jesu%C3%ADta_de_Campolide - Acessado em 17/08/2022.
https://cesem.fcsh.unl.pt. - Acessado em 17/08/2022
Embora não seja objetivo deste estudo abordar as questões de gênero, é interessante notar que os grupos foram compostos majoritariamente por mulheres. Situação que observo acontecer há anos, nos diversos grupos que realizo. A reflexão do por que, de modo geral, as atividades voltadas para o canto, para a sensibilidade, para o autoconhecimento e para a expressão possuem um apelo maior para as mulheres, e não atrai os homens do mesmo modo, poderá ser contemplada em estudos futuros.
Embora não seja objetivo deste estudo abordar as questões de gênero, é interessante notar que os grupos foram compostos majoritariamente por mulheres. Situação que observo acontecer há anos, nos diversos grupos que realizo. A reflexão do por que, de modo geral, as atividades voltadas para o canto, para a sensibilidade, para o autoconhecimento e para a expressão possuem um apelo maior para as mulheres, e não atrai os homens do mesmo modo, poderá ser contemplada em estudos futuros.
contato dos pés com o chão, o topo da cabeça com o céu: “Liberem qualquer julgamento”, digo, e sigo no singular:“mantenha os olhos fechados e coloque a atenção na vibração que acontece em teu corpo, neste momento, um momento de chegada. Com qual o tipo de sensação, sentimento e pensamento te sentes em ressonância neste instante? Apenas perceba.” Silencio por alguns segundos e retomo: “Perceba a paisagem por onde caminhas dentro de ti e, deste lugar, abra lentamente os olhos com o olhar receptivo e perceba o que está ao seu redor: objetos, cores, luz, formas, aromas, sons e cada um que está contigo nesta roda.”. Dito isto, convido-os, um a um, a entrar na sala e caminhar atrás do outro, formando um círculo que inclui a todos nós. Começamos nossa jornada!
Quando cheguei, já vim com alguns minutos de atraso. Vinha irritada e no início estava alheada da sessão (das propostas). Respondia, mas de forma autônoma. A pouco e pouco, fui esquecendo o mal-estar e o canto transformou o meu mal-estar em bem-estar. E agora, já passou e fico com muita vontade de voltar. O cantar e a dança transformaram meu sentir. Obrigada. as vozes ecoam no corpo, apaziguam e a felicidade vem ao cimo. (Maria A, 59 anos)
A jornada deste grupo foi, para a maioria dos participantes, a primeira atividade coletiva presencial após 2 anos de distanciamento social. A pandemia, embora em estado decrescente, impôs, no início da oficina, cuidados como o uso de máscara, um certo distanciamento e a desinfecção das mãos, em observação às determinações estabelecidas pelo Departamento Geral De Saúde de Portugal (DGS). A excitação e o receio por estarmos juntos eram perceptíveis e nos acompanharam até o final.
A Sars-cov 19 provocou algumas desistências e ausências, tanto por falecimento de familiares, como por infecção de algum dos participantes. No final da oficina, a pandemia voltou a agravar, o que fez com que alguns não comparecessem no último encontro. Felizmente, entre nós não houve transmissão viral. Das 18 pessoas que se inscreveram, 14 compareceram no primeiro dia, 13 deram continuidade e 8 seguiram até o final. O grupo foi formado por pessoas com idades entre 25 e 81 anos, sendo 9 de nacionalidade portuguesa e 3 com dupla nacionalidade, naturais do Brasil.
A oficina constituiu-se por oito encontros, com a duração de duas horas cada um. Não houve apresentação final. No primeiro encontro, após as dinâmicas, apresentei aos participantes o tema e o propósito da pesquisa, convidei-os a participar da investigação, informei-os sobre os Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e sobre o Termo de Uso de Imagem. Pontuei que a participação na investigação não era obrigatória e não impediria a continuidade na oficina daqueles que escolhessem não colaborar com ela. Todos os participantes acederam e concordaram com os termos apresentados, como verificado nas palavras de Alice:
Gostei da nova experiência para mim. Vou continuar e acredito que agora, tomando conhecimento do propósito da Cecília, vou ficar mais atenta aos detalhes e juntas colaborar. Acredito que terei mais a ganhar do que dar. (Alice, 81 anos)
Após o terceiro encontro definimos, em uma roda de conversa, que poderíamos escolher manter ou não a máscara durante a atividade. Apesar do receio inicial, todos sentiram-se tranquilos em dar as mãos nas práticas em roda, o que intensificou o sentimento de confiança e o engajamento do grupo. Podemos verificar a importância deste movimento na narrativa de Maria em seu diário:
Dar a mão no difícil... criar relação tocar é indicador ...do que é importante
Sentir o ar... cantar, escutar (Maria, 44 anos)
Tal situação foi bastante significativa, tendo em vista que muito recentemente o distanciamento social imposto pela pandemia havia arrefecido, possibilitando o retorno aos encontros presenciais e o contato “corpo a corpo” que, embora temido, era igualmente desejado, depois de meses de isolamento.
Durante os encontros, pude observar que os receios suscitados pela situação pandêmica desapareciam no momento das práticas, dando lugar ao engajamento sensível nas dinâmicas propostas por mim:
Tive uma experiência lúdica nesta aula de hoje.
Os momentos de interação com os colegas, seja ao cruzar olhares, ou cantar o nome, foram momentos belos, até mesmo de forte sensação. Foi tudo belo, lúdico e sensível. (Arturo, 57 anos)
Assim, aos poucos os medos e tensões foram suplantados e a percepção audível da própria voz unindo-se à outras trouxe um sentimento de conexão, presença e liberação, como narram Jacy, Lara e Maria:
De novo, muito vibrante o encontro todo! Uma vitória foi eu conseguir interagir mais com uma pessoa que eu tinha “estranhado” um pouco na vez passada... Foi muito bom, fiquei mais leve com isso. (Jacy, 66 anos)
Numa fase muito difícil da minha vida, senti que encontrei, de novo, a minha voz/expressão. Como nada acontece por acaso, a libertação da minha expressão verbal e redonda traz-me a certeza de quem sou! Eterna! (Lara, 52)
Libertação! Abertura e fluir a partir do coração para os braços que se abrem com o cântico em comunhão. (Maria, 44 anos)
Libertação e conexão foram palavras bastante repetidas nos diários de bordo deste grupo. Aqui, tais palavras tornam-se especialmente significativas se considerarmos o contexto do momento em que a oficina ocorreu, descrito acima. A experiência era percebida como uma possibilidade de recuperação do sentimento de liberdade e da reconexão interpessoal, suprimidos durante quase dois anos.
A partir dessas palavras, outras se conectaram, como em uma trama onde um fio completa e confere sentido ao outro ao revelar o padrão em sua essência: fluxo, respiração, abertura, presença, escuta, contacto, memória, comunhão, leveza, vibração. Todas estas palavras aludem ao sentimento e levam ao sentido implícito contido nas duas primeiras.
Melhorias, encantamento, descobertas, caminhos, afinidades,
Afinações, emoções, encontros, fazer ser, gratidão. (Maria A, 59 anos)
Sentir o vibrar, o pulsar do meu peito em conexão com quem eu estou, no aqui e agora. (Joana, 25 anos)
Trazer o canto à essência da alma
Ligação às raízes de outono no fluxo da musicalidade
Leveza do enraizamento (Teresa, 46 anos)
Ao final dos encontros, as participantes relataram sobre a importância da experiência vivida na oficina em seus diários, com palavras de agradecimento:
Tudo que eu disser vai ser pouco para dizer o que vivi aqui, neste grupo. Hoje, chegamos ao fim de um novo começo. A partilha, revisão, revisitar imagens que já vivemos, construir novas pinturas, partituras.
Agradeço esta oportunidade de participar, fazer parte em momentos tão maravilhosos. Chegamos, cheguei onde não sabia que podia, conseguia ou tinha competências para lá chegar. Amei o método, de fazer e aprender. As partilhas, histórias, o ambiente, energia positiva, alegria, cumplicidade, generosidade. Estou mais rica, levo um tesouro comigo. Obrigada, Thanks, Merci, Até... (Maria A, 59 anos)
Este encontro e todos os outros foram maravilhosos.
Proporcionaram-me sensações únicas, indo ao encontro do meu ser mais profundo – Alma. Senti muitas vezes a vibração e sensação física e energética, como fossem anjos a tocarem meu corpo. É impressionante como a voz, o canto, elevam e transformam as pessoas, os espaços, o ambiente, a terra e o universo. Sinto que as vozes da terra unem-se em grande harmônicos para compor os mais belos instrumentos do ser humano, a voz. Gratidão, Cecília por proporcionares a magia do som e fazer brilhar o que há em cada pessoa. Com teu sorriso encantador e voz lindíssima, embala os nossos corações. (Teresa, 46 anos)
2.2.1.7. A coletânea de canções realizadas neste grupo
Como nas oficinas anteriores, convidei os participantes a trazerem uma canção significativa da trajetória de vida que desejassem partilhar, para constituir o repertório a ser realizado, mesclado às canções trazidas por mim, de cunho didático. Neste grupo, na sequência dos encontros, cada participante foi estimulado a ensinar a canção que trouxe, cantando-a para que todos a aprendessem e cantassem juntos. Deste modo, cada um ocupou o lugar de transmissor oral de um momento da sua história, representada na canção. Houve uma "seleção natural" do repertório pelo fato da frequência ter diminuído em função do Sars-Cov19 e por outros temas pessoais, que eliminaram algumas das canções trazidas no início. Entretanto, outras músicas emergiram durante os encontros, como é o caso das canções: Ó minha Amora Madura, Canção de embalar, Milho Verde, As nuvens que andam no ar.
É importante pontuar que algumas das canções trazidas por mim eram acompanhadas por danças circulares e foram realizadas regularmente para abrir e fechar as sessões, com a intenção de obter uma atmosfera ritual.
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canções trazidas pelos participantes.
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Não é fácil o amor (Janita Salomé)
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Hare Krishna (canção tradicional hinduísta)
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Segredo (Manel Cruz)
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Esta é que era a moda (canção tradicional portuguesa)
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Beradeira (Chico César)
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Canções e Momentos (Milton Nascimento)
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Oriente (Gilberto Gil)
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Se tu és o meu amor (Vitorino Salomé)
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O meu menino é d’oiro (Zeca Afonso)
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Ai, Romana (canção tradicional Alentejana)
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Você é Linda (Caetano Veloso)
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Verdes são os campos (Zeca Afonso)
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Ó minha Amora Madura (Zeca Afonso)
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Canção de embalar (Zeca Afonso)
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Milho Verde (Zeca Afonso)
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As nuvens que andam no ar (canção tradicional Alentejana)
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Canções dos participantes que foram efetivamente realizadas
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Não é fácil o amor (Janita Salomé)
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Hare Krishna (canção tradicional hinduísta – versão: Tina Malia)
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Canções e Momentos (Milton Nascimento)
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Oriente (Gilberto Gil)
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Se tu és o meu amor (canção popular Alentejana)
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Ó minha amora madura (Zeca Afonso)
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Canção de embalar (Zeca Afonso)
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Milho Verde (Zeca Afonso)
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As nuvens que andam no ar (canção popular Alentejana)
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Canções trazidas pela facilitadora
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Io Paraná (canto tradicional Tupi-Guarani)
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Veja esta canção (Milton Nascimento)
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Olho em teus olhos (Plínio Cutait)
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Ciranda Morena (Gabriel Levy)
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Lugar Comum (Gilberto Gil)
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Hu Allah Hu (canto-dança do repertório das Danças da Paz Universal)
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O Mar não recusa nem um rio (canto-dança do repertório das Danças da Paz Universal)
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Tamã (canto nativo Xavante) + Certas Canções (Milton Nascimento)
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Arranjo: Samuel Kerr
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Funga Alafia (canto-dança baseado em um canto tradicional africano)
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Sereia do Mar (canto tradicional do recôncavo baiano)
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Corre Água (Décio Gioielli)
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Cety Oyá (canto-dança da tradição nativa Cariri Xocó)
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Ruach (canto-dança do repertório das Danças da Paz Universal)
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Tumiaki (canto-dança baseado na tradição nativa Tupi-Guarani)
2.2.2. A narrativa da experiência no Centro de Promoção Social Rainha D.
Leonor
Da calçada avista-se o letreiro com letras grandes em vermelho e preto da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa sobre a escadaria que dá acesso às instalações do Centro de Promoção Social, que fica logo abaixo da linha da rua. Do portão principal, é possível ouvir as crianças a brincar, com seus gritinhos, risos e alguns choros. São dois portões a serem atravessados para alcançar o espaço. Por determinações do DGS e da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa, para entrar na creche é necessário seguir um rígido protocolo de desinfecção, composto pelo uso obrigatório de máscara e a higienização dos sapatos e das mãos com álcool, procedimentos necessários para assegurar minimamente que crianças e funcionários não serão contaminados, tendo em vista que o espaço abriga uma pequena comunidade formada por crianças, jovens, educadores, auxiliares, que chegam de diferentes lugares e contextos. Todos estão ocupados com seus afazeres. A diretora do Centro, Profa. Isabel Mota, recebe-me com um sorriso e convida-me a sentar. Com ela, está a profa. Augusta, responsável por auxiliar na coordenação pedagógica. Na pequena sala da coordenação, uma mistura de objetos ocupa lugar nas estantes. É o primeiro encontro para definirmos como será constituído o campo de pesquisa e os procedimentos burocráticos junto à Santa Casa para que a investigação possa ocorrer.
2.2.2.1. Sobre o Centro de Promoção Social Rainha D. Leonor/SCML
O Centro de Promoção Social Rainha D. Leonor é um dos centros mantido pela
Santa Casa de Misericórdia de Lisboa, cuja finalidade, como nas demais creches da SCML, é oferecer apoio à infância e famílias, no sentido de “promover o desenvolvimento, bem-estar, segurança e proteção das crianças, salvaguardando os seus interesses e promovendo os seus direitos, em especial, o direito a crescer e desenvolver-se em contexto familiar, de modo a prevenir o risco de exclusão social, contribuindo para a igualdade de oportunidades, em colaboração com as famílias e comunidade”, conforme relatado em entrevista realizada com a diretora e prof. Isabel Mota. Inaugurado em 2006, nas mesmas instalações que hoje ocupa, agrega uma equipe geral composta por educadoras, auxiliares de educação, auxiliares de serviços gerais e animadores socioeducativos, além de uma equipe interdisciplinar – Diretora, Assistente social, Psicólogo e Técnica de Educação - que tem a função de avaliar as condições da criança e da família.
De acordo com a diretora Profa. Isabel Mota, o modelo pedagógico adotado é pautado nas práticas da Pedagogia em Participação, composta por valores como o respeito pela criança e jovem enquanto um ser individual, com ritmos e necessidades próprias, através de uma relação afetiva estabelecida com eles. Tal prática busca a promoção de um diálogo muito próximo e transparente com as famílias, inserindo-as no processo pedagógico, para que a criança sinta que “pertence aqui”, na medida em que sua cultura familiar é incluída.
Profa. Isabel Mota explica, ainda, os valores, missão e visão no âmbito da SCML que norteiam a prática pedagógica, de acordo com o Projeto Educativo do CPS Rainha D. Leonor 2019/2022:
O CPS Rainha D. Leonor tem como valores norteadores de toda a prática pedagógica: Partilha, Respeito, Autonomia, Compromisso. Estes valores refletem a identidade de um grupo e a existência de um sentimento de pertença entre Equipa, Crianças, Jovens e famílias.
A Missão do CPS Rainha D. Leonor é dar uma resposta adequada a todas as crianças e jovens de modo a promover um adequado desenvolvimento global. Promovendo cidadãos ativos e intervenientes numa perspectiva dos 4 pilares da educação: Saber Aprender; Saber Fazer; Saber viver com os outros; Saber Ser.
O CPS Rainha D. Leonor tem como objetivo consolidar e fomentar competências nas crianças, jovens e suas famílias para que atinjam o bem-estar físico, psíquico e social. (Profa. Isabel Mota, em resposta a questões solicitadas por mim, no âmbito dessa investigação)
Pude constatar, durante o período em que realizei a oficina, que a prática pedagógica e os valores expostos acima conduziam o modo de atuação da diretora e equipe, e compunham o ambiente acolhedor na relação com as crianças e famílias.
2.2.2.2. O Local dos Encontros
Todas as salas do CPS Rainha D. Leonor estão voltadas para um pequeno corredor que dá vistas para o pátio onde, em dias de sol, as crianças brincam ao ar livre acompanhadas pelas educadoras e pelas auxiliares de classe. Embora não tenha sido projetado para receber as atividades desenvolvidas no local, a organização do espaço, dos equipamentos e a distribuição do ambiente criaram as condições necessárias para realizá-las.
Na pequena sala multifuncional de piso amarelo destinada aos encontros da oficina, havia um sofá, uma pia, colchonetes para as crianças repousarem e uma mesa infantil com quatro cadeiras pequeninas, que eram arrastados em cada encontro para abrir mais espaço para a atividade. Quando não era possível realizá-lo neste local, o grupo se reunia na sala destinada para as atividades com os jovens, que ainda não haviam retornado em função do Sars-Cov 19. A sala dos jovens era um pouco mais ampla, branca, dividida por uma parede em uma das laterais e ao fundo, o que resultava em um pequeno corredor que dava acesso aos banheiros. Assim, a oficina ocorreu em duas salas diferentes, de acordo com as demandas do dia. Por ficarem voltadas para o corredor externo, do interior das salas ouviam-se os passos e vozes das crianças e educadores, do mesmo modo que o grupo era ouvido através das paredes. Tal situação não interferiu no desenrolar da atividade.
É importante notar que o espaço onde ocorreu a oficina era o local de trabalho das participantes, que deixavam suas salas por uma hora para participar do grupo e em seguida retornavam para as atividades da classe, o que criou um “lapso no tempo”, onde podiam viver uma experiência diferente da cotidiana, no mesmo local onde, pouco antes, estavam envolvidas em realizar o trabalho diário, como narra Rosane, 36 anos, técnica de ação educativa, em seu diário:
Quando o som vibra dentro de mim, parece que saio do momento onde estou para outro lugar mesmo sem saber qual.
Inicialmente não é fácil “despir” o que trago comigo, mas com o passar do tempo o meu corpo vai-se entregando ao som. (Rosane, 36 anos)
Em resumo, diferentemente dos grupos anteriores, este ocorreu com sete educadoras que já se relacionavam como equipe no ambiente de trabalho, dentro da instituição na qual desempenhavam suas atribuições, em um horário que interrompia, uma vez por semana, seus afazeres diários. Foram 10 encontros de uma hora cada, entre setembro e novembro de 2021, ainda em fase pandêmica. Embora já houvesse um abrandamento das determinações do GDS, como já mencionado anteriormente, havia um protocolo estabelecido pela Santa Casa que nos obrigava ao uso de máscaras de forma contínua. Não houve apresentação pública do trabalho realizado.
2.2.2.3 Um relato da experiência vivida nos encontros
Desço as escadas que levam ao portão principal do Rainha. Toco a campainha, entro pelo primeiro portão e procuro avistar alguém para abrir o segundo. Logo, surge a funcionária responsável por abri-lo naquele dia. Como em todas as vezes que se seguiram, a funcionária auxiliou-me a desinfectar as solas dos sapatos e as mãos com um produto próprio para este fim, deixado em uma mesinha ao lado da entrada. Tempos de Covid. Observo o movimento. Todas estão ocupadas com os afazeres em suas salas. As atividades presenciais há pouco retornaram, após a liberação do isolamento e das férias de verão. Dirijo-me à sala da coordenação. Isabel espera-me para apresentar-me ao grupo que irá participar da oficina. É o primeiro encontro com as participantes. Há uma certa ansiedade no ar, quase palpável, que também percebo em mim. Chego na sala de piso amarelo, ainda por ser arrumada. Isabel, Augusta e eu empurramos a mesinha e as cadeiras, afastamos os colchonetes e uma boneca dormindo em seu bercinho para um canto, para abrir um pouco mais de espaço. Isabel sai para chamar as educadoras em suas classes, enquanto arrumo meus instrumentos, os cadernos que serão os diários de cada uma e preparo o ambiente. São sete ao todo. Chegam aos poucos, agitadas e falantes, ainda desvencilhando-se do que estavam a fazer há alguns minutos antes. Nos olhamos e percebo o olhar de curiosidade sobre mim e de interrogação sobre o que irá acontecer. Isabel apresenta-me ao grupo e deixa a sala. Peço que formem um círculo, coloquem a atenção na respiração por alguns instantes e, em seguida, que comecem a caminhar, sentindo cada passo em sintonia com o movimento de inspirar e expirar. Simultaneamente, peço que percebam o espaço ao redor: sons, luzes, cores, aromas. Aos poucos, acalmam-se. Voltamos ao círculo e olho para cada uma, tentando reconhecer a expressão por trás das máscaras. No berçário ao lado, o choro de um bebê compõe a paisagem.
Apenas alguns passos separavam o local do encontro das salas onde as participantes estavam a cumprir suas funções. Nesta travessia entre lugares, ainda por “despirem-se” do que estavam a fazer, entravam agitadas, falantes e, muitas vezes, cansadas. Com isto, fez-se necessário dedicar algum tempo da oficina para que pudessem “chegar”, de fato. Assim, ao entrarmos, nos reuníamos em círculo, fechávamos os olhos e sentíamos a respiração. Este procedimento estabeleceu um ritual de chegada que contribuiu para que a agitação ao início diminuísse e para que ocorresse a inclusão de alguém em atraso. A obrigatoriedade do uso de máscara gerou algum incômodo, pois além de não podermos ver as expressões umas das outras, como a base do cantar é a respiração, a transformação do ar em som, cantar com a máscara provocava uma sensação de impedimento da propagação do som. Algumas vezes, baixávamos as máscaras para nos vermos, para sentirmos o ar entrar diretamente e escutarmos nossas vozes sem esse anteparo, mas rapidamente as devolvíamos ao rosto. Como os rostos não eram visíveis por inteiro, os olhares e o dar as mãos passaram a ser ponto focal por onde tentávamos identificar os sentimentos entre nós, como relata
Isabela:
Olhos nos olhos, a emoção, o sentimento das vossas mãos. Cantar que bem nos faz. Alegria. (Isabela, 64 anos)
Por vezes eu ficava mais tempo sem a máscara, para que pudessem enxergar melhor minhas expressões. Apesar do contexto restritivo, pouco tempo depois de iniciarmos as práticas, as participantes já estavam engajadas, o ruído externo praticamente desvanecia-se e o desconforto da máscara diminuía na medida em a atividade se desenrolava. Somente em algumas situações de exceção, como um bebê chorando muito, a atenção era desviada. Quando isso acontecia, alguma movimentação surgia, interrompendo momentaneamente a atmosfera, mas rapidamente a atenção voltava para o que estava sendo feito e o choro passava a compor a paisagem.
A oficina tornou-se um lapso no tempo para respirarem, um espaço para conhecerem-se para além do cotidiano funcional e para compartilharem de uma atividade sensível e extra cotidiana- para muitas, bastante inédita. Por trás das máscaras, as vozes emergiam e ocupavam o espaço dentro e ao redor:
Cantar em conjunto
Brincar em conjunto
Dançar em conjunto
Sentir a energia do som e do meu corpo. Sentir a energia linda dos outros. Sentir.
Viajar dentro do meu próprio coração através do ar e transformá-lo em som Cantar e libertar-me. Procurar equilíbrio.
Experiências que nunca tinha vivido. Muito obrigada
Sinto-me mais rica. (Taty, 43 anos)
Um espaço para sentir, um momento de conexão consigo e com o outro, de autopercepção e de enriquecimento pessoal, conforme os relatos de Mari e Taty:
Sentimentos, emoção, sensações, respiração, liberdade de pensamento, partilhas, olhares, curiosidades e libertação no corpo e na mente. Tudo isto invoca autoestima controlos e até sítios... Estou num bom caminho... Quero voltar... (Mari, 39 anos)
Hoje foi um momento “imenso” de coisas ricas. E vive-las e senti-las. O contacto com o outro. O cantar junto e estar disponível para ouvir e partilhar. Incrível como estes momentos nos podem tocar tão profundamente. (Taty, 43)
Do mesmo modo que foi constituído um ritual de chegada, também um ritual de término se estabeleceu: ao final dos encontros nos sentávamos em roda e compartilhávamos o que cada uma havia percebido de si, os sentimentos e sensações geradas pelas práticas, e finalizávamos com uma canção. Nestes momentos, por vezes, algumas das participantes contavam algo da sua vida pessoal, como Ruth, que compartilhou sua história e paixão pelo Fado desde a infância, o que gerou um diálogo entre todas sobre o tema das músicas que mais apreciavam e que faziam parte da trilha sonora pessoal. Dialogávamos, igualmente, sobre como poderiam aplicar o que estavam a aprender na oficina em suas atividades, abrindo novas perspectivas, e contavam-me a repercussão de alguns cantos do nosso repertório que ensinavam para as crianças e outras educadoras depois dos encontros, como as canções Tumiaki e Allunde Alluya, que ficaram conhecida por todos e passaram a fazer parte do conjunto de canções utilizado em classe. Por fim, pelas narrativas dos diários, pude observar como, a cada encontro, o grupo aproximou-se e trouxe a percepção do cantar junto como recurso para a liberação de tensões, bem-estar e o sentimento de pertencimento, onde, naquele momento, inibições, vergonhas e julgamentos podiam ser desfeitos e cada uma encontrar seu lugar na partilha das vozes que criavam um campo comum, como relatam Isabela e Ruth:
Quando cheguei aqui achava que não era daqui e que não tinha nada a ver com o que fazíamos. Hoje acho o bem que nos faz estar aqui.
Obrigada Não sei se faço tudo bem. Mas faço o que me é possível.
(Isabela, 64 anos)
Partilha de emoções... de canções novas...O segredo está em sermos nós… Livre e libertas para sermos como somos e estarmos com quem queremos, sem julgamentos... (Ruth, 39 anos)
Libertação, respirar, partilhar, aprender, brincar, ouvir, paz, foram as palavras que mais se repetiram nos diários deste grupo, e puxaram o fio para equilíbrio, saúde, paixão, solidariedade, recordar, bem-estar, calor, vibração, movimento, soltar.
Nos diários, os últimos registros, muitos deles em forma de desenhos, uma forma de expressão bastante marcante neste grupo, contam sobre a relevância dos encontros para cada uma:
Hoje foi o último dia da secção
Haveria tanta coisa para dizer, até por fazer.
Mas como sempre foi e faz mais sentido para mim. Aconteceram sorrisos e sentimentos ao som de todas as respirações e fôlegos de cansaço. Palavras doces tiradas da colmeia, Adoçam a nossa alma e curam nossos ossos! Pensamentos invadem a mente, o corpo e a alma. O coração tá cheinho. (Mari, 39 anos)
“As árvores”
Aquelas que nos ajudam a respirar, a sermos melhores,
Obrigada por estes momentos. (Desenho de arvores e cada uma com o nome das participantes do grupo). (Isabela, 63 anos)
OBRIGADA
Oh, que pena já acabou
Bem haja termos tido este tempo consigo.
RIR, SORRIR, SER FELIZ.
Importante cuidarmos de nós para cuidar melhor do outros. Gostei muito, grata pela partilha. Aprendi, amei, dei e recebi, recebi mais. Até sempre. Há pessoas que com sua luz nos iluminam Neste grupo pude conhecer melhor algumas das pessoas. Foi bom, e dei-me a conhecer também. Noto uma maior aproximação. Abraços. (Maria A, 59 anos)
Palavras doces...
Não podia terminar melhor; “cantar” nunca soube tão bem. Desejo “boa sorte” e agradeço toda a aprendizagem que levarei comigo pela minha vida.
Estes momentos de bem-estar não deveriam terminar.
Muito obrigada. (Taty, 43 anos)
2.2.2.4. A coletânea de canções realizadas neste grupo
Neste grupo, cada uma foi convidada a expor a canção escolhida para as outras colegas. A influência do cotidiano profissional como educadoras de infância esteve presente na escolha das músicas que trouxeram. Entretanto, não eram apenas canções que cantavam para os alunos, e sim canções que faziam parte do repertório e da memória musical das participantes, em geral conhecidas por todas, por serem canções populares tradicionais portuguesas. Tal fato possibilitou que compartilhassem mutuamente as histórias que as envolviam, como no caso de Isabela, que trouxe uma música alentejana infantil, bastante popular, que fez parte da infância de todas. Nesse processo, como aprendiz, conheci novas canções, assim como trouxe outras, desconhecidas por elas e que foram bastante apreciadas, especialmente Tumiaki, como já mencionado anteriormente.
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Canções trazidas pelas participantes:
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Se tu és o meu amor (canção popular alentejana)
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Ó rama, que linda rama (canção popular infantil alentejana)
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Peixinho (canção infantil portuguesa)
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Jardim da celeste (canção infantil portuguesa)
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Canções trazidas por mim
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Tamã (canto nativo Xavante)
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Hu allah Hu (canto do repertório das Danças da Paz Universal)
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Tumbayá (anônimo)
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O mar não recusa nem um rio (canto do repertório das Danças da Paz
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Universal)
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Allunde (canto tradicional africano)
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Sereia do Mar (canto tradicional do recôncavo baiano)
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Avanembô (Cecília Valentim)
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Canto do povo de algum lugar (Caetano Veloso)
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Funga Alafia. (canto tradicional africano)
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Tumiaki (canto nativo Tupi-Guaraní)
3. A Estética Social na sensibilidade compartilhada por meio do cantar junto.
Cantar junto é como se juntássemos um turbilhão de emoções que trazemos e transformássemos em uma só emoção. Ouvir a própria voz e a do outro, se conectar com seu próprio pulso e com o do outro. Sentimento de pertencimento e de comunidade. Cantar junto é cantar em uma só voz. Eu sinto como se minha alma se unisse às demais e fossemos apenas um. (Vivi, 34 anos, CJordão)
Quando o canto entra dentro de mim, limpa, suaviza, a vibração do meu corpo fica harmoniosa, leve, suave. Cantar a par traz união, objetivos comuns. Cantar acompanhado ajusta a solidão. Adoro ouvir o meu som. (Isadora, 55 anos, LAMCI)
Conduzo-me integrada ao grupo e sigo o fluxo dos acontecimentos atenta ao meu lugar de liderança. Meus sentidos estão despertos e sinto o calor da excitação em meu corpo. Um sentimento de alegria me invade quando fazemos a roda e cantamos e dançamos juntos. Dou-me conta de um sorriso em meu rosto e relembro-me criança no espaço da brincadeira; ouço as vozes amalgamarem-se, preencherem todo espaço ao redor e vibrarem na minha pele como minha própria voz. Sinto-me mais próxima de cada um na roda e vejo em seus olhares o que percebo em mim(...)
No fluxo da experiência, pelos relatos dos participantes, entre os quais me incluo, o cantar junto emerge como lugar de encontro e de percepção do outro, bem como de pertencimento a uma comunidade, corporificados na escuta da própria voz ao ouvir a voz do outro, no perceber-se como voz ativa ao compor o canto do grupo, na abertura para o diferente, nas novas relações de amizade, na partilha de sentimentos e memórias, no repertório formado por canções significativas trazidas por nós, na percepção de estarmos, conjuntamente, envolvidos na composição de um campo sensível, respeitoso e seguro para todos, no qual os julgamentos são suspensos, os medos de exposição são dissolvidos e as crenças impeditivas são gradualmente reelaboradas.
Na poética das relações vivenciadas nos encontros e no mapeamento das narrativas, encontrei a ressonância com a abordagem fenomenológica de Merleau-Ponty, descrita em sua Fenomenologia da Percepção (2014, p.12-19), na qual toda percepção é percepção de mundo e o mundo é aquilo que percebemos, pré-reflexivamente implicados na intercorporalidade e na intersubjetividade das sensibilidades vividas no jogo das relações com o outro. Do mesmo modo obtive, na proposição de Arnold Berleant e Georgina Born para uma Estética Social situada na relação com a arte, nas reflexões de DeNora sobre a relação entre música e saúde, e nas ideias de Steven Feld, acerca da importância do repertório como a trilha sonora de uma experiência composta por todos os envolvidos, a sintonia e a argumentação teórica necessárias para compreender o encadeamento relacional das diferentes dimensões advindas da sensibilidade compartilhada nas oficinas e sua vital contribuição para a fundamentação das hipóteses inicialmente lançadas por esse estudo.
3.1. A Estética Social e a Comunidade Estética
Começando por Berleant. Antes de avançarmos, cabe uma breve definição de três conceitos fundamentais que compõem sua visão de estética social, centrais para o entendimento do que virá a seguir: experiência estética, engajamento estético, campo estético (BERLEANT, 2010).
3.1.1. Experiência estética:
Compreendida por Berleant (2010) como uma teoria da sensibilidade, a experiência estética se fundamenta no domínio estético da experiência, enraizada no mundo humano, social (COELHO, 2017). Para Berleant, experiência é tudo: nosso corpo, nossos movimentos, aquilo que nos toca por meio da pele, dos sons, da luz, da temperatura, do paladar, de todas as sensações que nos constituem e que, em última instância, somos nós mesmos. Com relação à noção de estética, em contraposição à visão Kantiana relativa à contemplação desinteressada, Berleant (2010) recupera a acepção etimológica da palavra grega Aesthesis, literalmente, “percepção pelos sentidos”, para ampliar e aprofundar seu significado. Em sua visão, estética envolve a experiência perceptiva e a capacidade de reconhecê-la, abarca o que é compreendido a partir do percebido; incluí a apreensão dos significados que emergem da interação dinâmica entre as pessoas e entre um ambiente que é vivo, não objetificado (BERLEANT, 1992). Para Berleant (1992), ambiente e humanos compõem uma unidade indivisível: somos modelados pelo ambiente do qual participamos, do mesmo modo que o modelamos, em uma influência mútua e simultânea, que ocorre entrelaçada à uma complexa rede de relações, não apenas sensorial, mas sensível, que inclui todas as gamas da sensibilidade e das emoções humanas, do bizarro ao erótico, do repugnante ao atrativo, do bonito ao sublime, do feio ao trágico, do intenso amor ao ódio, do opressor ao oprimido e assim por diante. Nas palavras de Berleant (2010):
Eu volto ao reconhecimento de que estética é, em seu fundamento, uma teoria da sensibilidade. Em linha gerais, nos leva a reconhecer a dimensão estética em todas as experiências, quer seja edificante ou degradante, quer dignifique ou brutalize. (BERLEANT, 2010, p.8)
Deste modo, para além das artes, a experiência estética remete-nos para a unidade perceptual da experiência e nos oferece um entendimento mais sutil daquilo que acontece no processo social. Por essa perspectiva, podemos nos referir a experiência estética como uma “estética da vida cotidiana”, pois o fluxo da vida e das relações acontece “durante”, enquanto somos.
3.1.2. Engajamento estético
O engajamento estético refere-se a um modelo alternativo desenvolvido por Berleant para compreender o valor apreciativo da experiência (BERLEANT, 1991). Trata-se de um estado somático intensamente sensível e ativo, que envolve os afetos e a cognição. Caracteriza-se por sete dimensões perceptuais que acontecem simultaneamente: acuidade, intensidade, complexidade, sutileza, ressonância, percepção cognitiva e engajamento perceptivo (COELHO, 2017). Sem pretender aprofundar em cada uma dessas dimensões, sua integralidade nos conduz ao entendimento do valor apreciativo como aquele que é intrínseco à experiência e nos leva para além dos sensos de separação e divisão, de tal modo que, ao incorporamo-nos ao campo sensível, uma troca continua é estabelecida entre todos os componentes da situação (BERLEANT, 2016).
Há muitos anos, eu venho desenvolvendo uma abordagem alternativa para a compreensão do valor estético, a qual eu denominei “engajamento estético”. Ao invés de usar um modelo cognitivo ou uma análise sociológica para explicar a apreciação estética, a minha argumentação se baseia na análise da experiência real da apreciação estética, a experiência geralmente obtida de completo envolvimento em uma situação que pode incluir um trabalho de arte, uma performance, uma localização arquitetônica ou na paisagem, ou uma situação social. No engajamento estético não há separação entre os componentes, mas uma troca contínua, na qual um atua sobre o outro. (BERLEANT, 2016, tradução minha)
Desse modo, o engajamento estético é percebido como o estágio mais completo da experiência estética, pois trata-se de um “aspecto essencial do mundo em ação” (1991), no qual nossos sentidos estão totalmente imersos na situação em que ocorre:
Engajamento é um aspecto essencial do mundo em ação, da troca social, dos encontros pessoais e emocionais, do brincar, tocar, dos movimentos culturais e, como conclamamos aqui, da mais direta e intensa experiência, da qual nos aproximamos ainda mais nas situações que envolvem arte, natureza, ou o mundo humano em seu mais íntimo e eloquente caminho. (BERLEANT, 1991 apud COELHO, 2017)
Em seu envolvimento com a arte, o engajamento estético é altamente intensificado pela criação de um campo perceptivo onde sentimentos e conexões exteriorizam- se por meio de um fazer sensível que, corporificado, inclui tudo aquilo que nos constitui como humanos e ao que somos confrontados diante do que descobrimos sobre nós mesmos:
A arte não se parece com uma experiência, não é um reflexo ou uma imitação da vida real, mas ela é, exatamente, a experiência, presente na forma mais direta e pungente. Arte, então, não é um reflexo pálido da vida e do mundo, mas a coisa real, em sua forma mais clara e mais pura. Experimentamos “o sentir do que é verdadeiro” em nós. Nos descobrimos como parte da experiência presente, seja um judeu, um católico, um comunista, um homossexual, um alcoólatra. Nos conscientizamos da grande incerteza humana, paixões, crises e relações às quais todos estão submetidos e que todos compartilham. Somos mais verdadeiros porque outras pessoas estão mais verdadeiras. Descobrimos a habilidade, como Blake reconheceu, de “ver o mundo
em um grão de areia e o céu em uma flor selvagem”. (BERLEANT, 2000, p.102, tradução minha)
3.1.3. Campo estético
O campo estético é constituído por todos os componentes da experiência, no qual todos os sentidos estão engajados e do qual todos participam. Para Berleant (2000) trata-se de um campo composto por um único todo, que inclui quatro ingredientes principais: o apreciador, ou seja, a pessoa que vivencia o valor estético; o foco da apreciação, que pode ser um objeto, um trabalho artístico de qualquer natureza, uma paisagem, um pensamento, uma imagem mental; a atividade ou evento que traz o agente do foco apreciativo para a existência, como o artista, os processos da natureza, o ato de identificar o gerador da apreciação; o fator que ativa o campo ou a situação, como o performer e o participante engajado: “Este é o campo estético, o contexto em que o foco da atenção é vivenciado ativa e criativamente como valioso.” (BERLEANT, 2000).
3.1.4. Comunidade Estética, Estética Social e a “Tecnologia do Nós”
Definidos os conceitos acima, posso avançar em direção a proposição do processo social experienciado nas oficinas pelo cantar junto e suas implicações com a estética social, tema fundamental deste estudo.
É fato que no percurso trilhado pelo cantar junto presenciei a criação do espaço favorável para o engajamento e o acolhimento da expressão de cada um, verificado no contexto de todas as oficinas, confirmado pelos relatos dos participantes, que o demonstra como meio sensível para a intensificação da percepção de si e do outro, e de onde emerge o sentimento de integração e pertencimento a uma comunidade, cuja principal característica é o partilhar da sensibilidade, como já mencionado. Tal percurso encontra-se alinhado ao conceito de comunidade estética estabelecido por Berleant (1997), no qual o sentimento de conexão, mutualidade e reciprocidade ultrapassam barreiras e separações entre os participantes. Para o autor, o que ilumina o significado estético da comunidade é um senso de continuidade, onde todos estão imersos na experiência sensível: “O que faz tal continuidade estética é o tipo de unidade que é descrita como um continuum do corpo, da consciência, do contexto, onde todos estão unidos na intensidade penetrante da experiência perceptiva” (BERLEANT, 1997).
Relações internas são, de fato, uma expressão de continuidade. A conexão entre os membros de uma comunidade estética é tão real, tão parte da comunidade, quanto as próprias pessoas envolvidas. Não só essa comunidade não possui limites acentuados; ela não possui profundas divisões(...)Mutualidade e reciprocidade entre os participantes em uma comunidade estética transcendem barreiras e separações que caracterizam outros modos de agrupamento social. (BERLEANT, 1997, p.149, tradução minha)
Desta perspectiva, a experiência de comunidade estética proporcionada pelo cantar junto (COELHO, 2017) está entrelaçada ao campo psicossocial das relações, de tal modo que, no tempo-espaço das oficinas, configura-se um tipo de conexão humana onde os modos distintos de Ser são percebidos como possibilidades para a invenção de novos modos de fazer. Como assinala Merleau-Ponty,
Não é evidente, precisamente se minha percepção é percepção do mundo, que devo encontrar no meu comércio com ele as razões que me persuadem a vê-lo e, na minha visão, o sentido de minha visão? (MERLEAU-PONTY, 1964, p.41).
Como tal, o comércio das sensibilidades é transportado do espaço do encontro para a vida cotidiana, conduzindo-me ao conceito de Estética Social defendido por Berleant (2005) e no qual está inserida a compreensão de comunidade estética, pois trata-se da união do individual com o social pelo engajamento em uma arte que acontece enquanto se faz e inventa o modo de fazer (FRAYZE-PEREIRA, 2005 apud COELHO, 2017) e, como parte do desenrolar da dinâmica das interações no processo social, é mutuamente constitutiva. Intensificada pelo cantar junto, tal unidade é vivida em um percurso tramado pelos valores e contextos que se entrecruzam nas vozes que emergem do encontro entre as pessoas que se dispõem a trilhá-lo e que se apresenta, na definição de Berleant, como “uma estética da situação”, dentro da qual todos são artistas, na medida em que “ o processo criativo está nos participantes, que intensificam e moldam as características perceptivas e lhes confere significados e interpretações” (ANDRIOLO, 2021; ANDRIOLO et all, 2022):
Mas, o que identifica esse tipo de situação? Como toda situação estética, a estética social é contextual. Além disso, é altamente perceptual, uma intensa consciência perceptiva é o fundamento da estética”(BERLEANT apud ANDRIOLO, 2021).
Com isso, Berleant (1994) reafirma a comunidade estética como uma dimensão da estética social, na qual a somatória entre uma estética da arte, uma estética da natureza e uma estética dos humanos compõem uma mesma realidade, simultaneamente interdependente e multidimensional:
Uma estética social, aqui, une uma estética da arte e uma estética da natureza com uma estética dos humanos. Todos os três mundos de Buber - natureza, humanos e arte - são domínios do mesmo reino estético, uma notável coalescência de diversas ordens em uma única e abrangente unidade de experiência. O que a ciência dividiu em mundo natural, mundo humano e mundo mitológico; o que a filosofia separou em metafísica, ética e filosofia da arte – todos recuperam sua unidade primordial na região da estética. A comunidade estética é uma estética social que une humanos e meio ambiente em reciprocidade multidimensional. Como o ambiente humano consiste não em lugares e edifícios, mas em suas complexas conexões com usos humanos e participantes humanos, uma comunidade estética reconhece a dimensão social do ambiente e as condições estéticas da realização humana. (BERLEANT, 1994, p. 12, tradução minha)
Paralelamente ao conceito proposto por Berleant, mas em sintonia com ele, Georgina Born, musicóloga e musicista britânica, professora honorária da University College of London, oferece uma compreensão da estética social situada em torno das relações e da influência da arte no processo social, em especial da música. Para Born, em um primeiro plano, a estética social prenuncia que nas relações entre humanos e objetos os modos de perceber estão incorporados e imersos culturalmente e socialmente. Em suas palavras:
Abraçar uma estética social, então, é acreditar que a estética carrega um significado muito além daqueles assumidos anteriormente, já que uma estética social reconhece que nossas narrativas estéticas e experiências incorporadas estão saturadas de significado social, rotineiramente inscritos para servir a objetivos estruturais de múltiplos grupos sociais e culturais, tanto sobre temas da experiência estética quanto sobre objetos estéticos. De fato, nesse sentido, a estética social prenuncia uma concepção relacional e historicamente situada de sujeitos e objetos estéticos (Born 2009, 80-81; cf. Paddison 1993, 216). Ao mesmo tempo, argumentar que os modos de experiência sensorial, perceptual, corporificados no cerne da teoria estética devem ser entendidos como imanentemente enculturados e sociais; a estética social abre novos e esperados meios de análise das próprias experiências estéticas. (BORN et AL, p.4, 2017, tradução minha)
Na relação com a arte, Born (2017) situa historicamente uma nova concepção sobre a experiência estética a partir dos movimentos expressivos artísticos e musicais libertários da década de 1960, entre eles Fluxus, no qual estavam John Cage, George Brecht, entre outros expoentes da música contemporânea e outras modalidades artísticas, que incluíram em suas performances a relação com o público e o ambiente sonoro, tornando-os coautores da experiência artística. Tais movimentos contribuíram para os debates acerca de uma estética relacional, onde a arte, a música e o processo social moldam-se mutuamente:
Paralelamente a esses avanços na academia, desde o início dos anos 1960 desenvolveu-se uma enxurrada de movimentos artísticos e musicais – entre eles Fluxus, performances, instalações e arte multimídia – que chamou a atenção para as formas pelas quais as relações sociais e as situações sociais podem participar dos fenômenos estéticos ou contribuem para a experiência estética, que culminou recentemente com o surgimento de trabalhos críticos e teóricos e debates curatoriais, que explodiram em torno do conceito de uma estética relacional. É na trilha desses movimentos dentro da arte e da música, ao longo de meio século, que um novo passo no conceito que sustenta uma estética social se tornou necessário porque, juntos, esses movimentos promoveram o reconhecimento não apenas de que a arte e a música são condicionadas e moldadas por aspectos sociais e culturais em processos mais amplos mas, também, que a arte e a música têm o potencial de influenciar os processos sociais e de colocá-los em prática, modelar, organizar e experimentar novas formas de convivência e relações sociais de diversos tipos. Diante disso, estudos recentes nos campos da antropologia e sociologia da arte e música propuseram que a relação entre arte ou música e o social deve ser conceituada em termos de uma influência bidirecional ou mediação mútua (Born 2005, 2011, 2012; DeNora 2003, 2010; Hennion 1993, 2003). Em suma, assim como as condições e processos sociais ( econômicos e políticos) moldam a arte e a música, a arte e a música moldam a vida social (econômica e política). (BORN et AL. p.6, 2017, tradução minha)
Born (2017) argumenta que a música necessita ser vista para além das concepções tradicionais que a apresentam como mediadora social e propõe quatro planos a serem observados:
No primeiro plano, a música produz sua própria diversidade social dentro da constituição de microssociedades criadas pela performance, pela prática musical e nas relações sociais incorporadas nos grupos musicais e associações. No segundo plano, a música tem o poder de animar comunidades de interesse, reunindo seus participantes em vínculos afetivos, coletivos ou públicos potencialmente baseados na identificação musical e em outras identificações. No terceiro plano, a música reflete um campo mais amplo das relações sociais, do mais concreto ao mais abstrato da coletividade – a representação musical das nações, da hierarquia social, ou das relações de classe, raça, religião, valores, gênero ou sexualidade. No quarto plano, a música está ligada a forças institucionais mais amplas, que fornecem as bases para sua produção, reprodução e transformação, sejam patrocinadas pela elite ou pela religião, por trocas comerciais ou não, subsidiadas pelo poder público ou por instituições culturais, ou pela perspectiva econômica de investimento cultural multipolar do capitalismo tardio. Os primeiros dois planos incluem grupos sociais, relações sociais, e o imaginário social que é reunido ou constituído especificamente pela prática e experiência musical. Em contraste, os últimos dois planos reúnem um campo mais amplo das relações sociais e institucionais que, por si só, permitem ou condicionam certos tipos de práticas musicais, de modo que essas relações e instituições também entram na natureza da experiência musical, permeando musicalmente, de forma direta, grupos sociais e comunidades de interesse (BORN. G. p.3, 2017, tradução minha).
Tendo em vista os planos propostos por Born, percebo que a experiência nas
oficinas, situa-se, primariamente, nos dois primeiros. Entretanto, ao visualizar o campo mais amplo das relações, constato que todos estão interligados, visto que levamos conosco tudo o que permeia nossas vidas diárias para qualquer experiência relacional, como é o caso do canto em conjunto. Além disso, ao integrar o cotidiano do participante, a prática musical vivenciada nas oficinas oferece o que Tia DeNora (DENORA, 2007), professora e diretora de pesquisas do departamento de sociologia e filosofia da música da Universidade de Exeter, Reino Unido, chamou de “Tecnologia do Eu”, o seja, a aquisição de recursos para a autorregulação, para o autoconhecimento, cuidado pessoal, sentimento de integridade e para a integração social, já apontados no decorrer desse estudo. Ao ampliar a discussão e trazê-la para o âmbito da relação entre música e saúde, DeNora (2007) chama a atenção para a cooperação entre a percepção corporal, que abriga o ser emocional e a constituição da autoimagem, bem como enfatiza a música como uma tecnologia do corpo, como modalidade para o processo cognitivo e para aquisição de conhecimento:
Essa gama de regulação emocional e transformação (algumas vezes como parte de um “trabalho emocional”), são compreendidas como a cooperação entre a percepção corporal e a imagem de como se deve sentir / aparecer como ser emocional [Hochschild 1982], assim como a qualidade da música como uma tecnologia de prolongamento do corpo, e nas formas de como a música funciona enquanto modelo ou exemplo para o processo cognitivo e para a aquisição de conhecimento. (DENORA, p.227, 2007, tradução minha)
Desse modo, permito-me falar, igualmente, de uma “Tecnologia do Nós”. Deixo entre aspas esta designação porque é conhecida toda a implicação epistemológica dos usos do termo techné e tecnologia, sobretudo, quando estamos a lidar com a estética. Em meus estudos, o cantar junto apresenta-se como recurso para ativar a capacidade do sujeito de relacionar-se com o outro, para ver-se e permitir-se ser visto, ouvir-se e ser ouvido, tocar-se e ser tocado, de tal modo que, no entrelaçamento com diferentes corpos, percebe-se vibrante e conectado consigo mesmo, em interação com todos e com tudo que compõe o ambiente ao seu redor. Ao propor a perspectiva de uma “Tecnologia do Nós”, considero a qualidade relacional intensa e irrefutável da música pela prática do cantar junto como determinante para a produção de um percurso no qual os efeitos sobre o sujeito, pontuados por DeNora (2007) estão imbricados, pois não se trata de um acontecimento isolado e individual, mas interligado e coletivo, que ocorre em um contexto historicamente situado e pertinente a ele. Com isso, conduzi-me ao encontro do conceito de sentimento psicológico de comunidade proposto por McMillan e Chavis (1986, apud AMARO, 2007), cuja definição está fundada no sentimento de pertencimento e bem-estar que envolve os membros de uma comunidade pela crença partilhada de que se preocupam uns com os outros e de que suas necessidades (trocas) serão satisfeitas pelo compromisso de permanecerem juntos. O sentimento psicológico de comunidade é composto por quatro elementos: 1) Espírito, com ênfase na amizade; 2) Confiança; 3) Troca (Trade); 4) Ligações Emocionais Partilhadas (Art,), para o qual sugere que a arte inclui valores que transcendem a comunidade (McMILLAN & CHAVIS, 1986, apud AMARO, 2007, p.25-26) e apresenta-se como modelo aplicável em qualquer tipo de comunidade.
Sem pretender aprofundar-me demasiadamente nesse tema, tomo emprestado seus componentes, estreitamente relacionados ao sentimento de calor humano e da intimidade resultante da partilha de histórias, lugares comuns, tempo juntos e experiências similares, e que remetem “para a amplitude dos contatos que os indivíduos num grupo têm uns com os outros e a qualidade dessas interações” (McMILLAN & CHAVIS, 1986, p. 9, apud AMARO, 2007, p. 26), para inclui-los na compreensão dos sentimento de pertencimento e bem-estar verificados no campo das relações que forjaram a comunidade estética criada no decorrer das oficinas, amplamente comentados nos relatos dos participantes. Desse modo, abarco tais elementos como fatores importantes para complementar o entendimento da prática do cantar junto como uma “Tecnologia do Nós” que contribui para a manutenção da capacidade do sujeito e do grupo de estabelecer e sustentar uma rede de relacionamento de suporte mútuo e de trocas significativas e benéficas para todos que dela participam.
Portanto, mais uma vez, reitero a experiência das oficinas como espaços privilegiados para o comércio de saberes e de expressão política no exercício do senso de comunidade, nas quais a mutualidade vivenciada abriu o caminho para novas percepções acerca de si mesmo e do outro ao comportar um processo preenchido pelo amalgamar das vozes que vibraram não somente no espaço acústico, mas nos corpos sensíveis de cada participante, que ocuparam um lugar físico e geográfico, um espaço e um tempo ao tornarem-se audíveis e visíveis, ao fazerem-se públicos ao tocarem-se uns aos outros sonoramente.
Regresso novamente a Berleant (2004) para reiterar a percepção do corpo como receptor e gerador da experiência sensível e interligá-lo à proposição de Born sobre estética social, pois é o corpo que, modelado pelas relações, constitui o sujeito em sua complexidade e sensibilidade, um corpo compreendido esteticamente.
Nós podemos pensar em um corpo estético, então, como culturalmente modelado, entrelaçado e embebido em uma complexa rede de relações, cada qual com um caráter e dinâmica distintos. Raça, classe, gênero e geografia, são vividas através de formas e estruturas corporais. Essas diferentes estruturas culturais, sexuais, raciais e sociais, estão inseridas em corpos vivos. O corpo estético, como receptor e gerador da experiência sensorial, não é estático ou passivo, mas possui sua própria força dinâmica, mesmo quando inativo. A incorporação estética está acontecendo, completamente presente, através da presença característica do corpo, por meio do foco e da intensidade sensoriais que nós associamos com a experiência da arte. (BERLEANT, 2004, p.10 apud COELHO, 2017)
Na incorporação ativa do mundo, é no corpo que a voz canta, ouve a si mesma e sente-se vibrar. Assim, tal corpo estético, modelado dinamicamente e de forma constante pelas relações, encontra no cantar junto a possibilidade de perceber-se em sua expressão e dar-se conta de seus movimentos.
Por fim, ao examinar todos os elementos reflexionados acima, não há relutância em asseverar que na unidade da experiência perceptiva, o sensível compartilhado pelo canto em conjunto configura uma estética da situação que é desvendada na corporificação dos modos de Ser e Fazer que cada participante descobre em si mesmo ao expressar-se, confirmando a estética social como campo qualitativo das relações humanas.
3.2. O repertório como Cartografia Poética
Cantar Io Paraná também mexeu muito comigo, me trouxe o Brasil, os círculos de cura, tanto que o canto que me veio agora no final foi um da Oxum, que adoro. Mas foi estranho porque não consegui lembrar direito dele, nem cantá-lo... Foi difícil, mas era o canto que veio e que eu queria cantar. (Jacy, 66 anos, LAMCI)
Hoje fomos ao Congo, viajamos até o Alentejo e já estamos no Natal. Brincamos muito. Foi Natal. (Maria A, 59 anos, LAMCI/CPSRainha)
Eu gostei muito da aula hoje!! Eu achei muito interessante as músicas que foram passadas hoje. E aprendi uma música nova, a parte que mais chamou minha atenção da música foi “E se quiser saber pra onde eu vou, pra onde tenha sol” (Lidiane, 16 anos, SAPinhal)
O repertório cantado nas oficinas foi composto por canções trazidas por mim e pelos participantes de cada grupo. Tal arranjo possibilitou o encontro de sonoridades cuja significação vai muito além das canções em si, primariamente expostas em suas letras e melodias, permitindo-me observar a dimensão da estética compartilhada tecida na experiência. De minha parte, ofereci canções que pudessem ser apreendidas e cantadas com facilidade, com temáticas diversas, em sua maioria desconhecidas pelos participantes, em um percurso didático que visou proporcionar o alargamento da percepção e do desenvolvimento vocal, a escuta sensível, novas paisagens e sonoridades e o sentimento de pertencimento. Em complemento, por minha solicitação, cada componente trouxe uma canção significativa da sua história pessoal, colhida dos registros musicais da sua memória.
O modo como o repertório foi constituído revelou-o como um “caminho cantado” que possibilitou o compartilhar mútuo de histórias pessoais entremeadas pelas canções que, ao serem cantadas em conjunto, criaram a narrativa sonora única de cada grupo, intensificaram o sentimento de pertencimento e a integração do grupo. Do mesmo modo, constatei que uma mesma canção ativou um sentido e uma paisagem singular na memória de cada participante que, ao cantá-la e ouvi-la nas vozes dos outros, a inseriu nas relações do momento presente, alinhando novas percepções, reflexões e significados, que exemplifico nas narrativas de Lara, Jacy, Carol e Mari:
Não é fácil o amor é uma das músicas da minha vida. Ouvi-la na voz dos parceiros trouxe-me a fragilidade e, ao mesmo tempo, a fortaleza que as palavras representam. (Lara, 52 anos, LAMCI)
Gostei de ter partilhado com todas a 1º estrofe de Oriente, música do
Gil que adoro e certamente faz parte da trilha sonora da minha vida. (Jacy, 66 anos, LAMCI)
Hoje a aula foi mais leve, ajudou a me sentir mais relaxada, estava precisando depois de uma semana de muita correria. As músicas em Tupy geralmente trazem um alto astral para o grupo e nos deixa mais harmoniosos, percebo que agora o grupo está ficando mais envolvido, o entrosamento musical está melhor e mais harmonioso, vejo evoluções em mim e nos outros. (Carol, 22 anos, CJordão)
Todo dia a gente canta e o sol levanta todo dia.... Haja o que houver, espero por ti... (Mari, 39 anos, CPSRainha)
O termo cartografia poética foi cunhado por Steven Feld (2003) músico, etnomusicólogo, antropólogo e linguista americano, reconhecido especialmente por seu trabalho com o povo Kaluli, um dos quatro grupos Bosavi da Papua Nova Guiné. Refere-se aos registros de cada passo do caminho na confecção de uma trilha sonora que une localmente, espacialmente, identitariamente e afetivamente o ambiente e a comunidade, e que ressalta “como o modo de conhecimento local está incorporado à memória como conhecimento vocal” (FELD, 2003):
Fazer ‘caminhos’ de canções é a forma como o povo Kaluli canta o bosque, como uma fissão poética de espaço e tempo, em que as vidas e os eventos coincidem como memórias vocalizadas e incorporadas (FELD, 2003)
Feld (2003) observa que o fluxo desses caminhos poéticos cantados aponta para um modo de estabelecer a conexão entre os lugares e as pessoas, as experiências e a memória, como um recurso para situar-se no mundo:
Para os Bosavi, assim como para muitos outros povos, musicar é uma forma corporal de situar-se no mundo, acolhendo-o dentro de si e expressando-o para fora como um mundo intimamente conhecido e vivido, como um mundo de conhecimentos locais articulados como conhecimento vocal. As canções kaluli mapeiam o mundo sonoro como um espaço-tempo de lugares, conexões, intercâmbios, viagens, memórias, temores, nostalgias e possibilidades. (FELD, 2003, p.237)
O termo cartografia poética compõe a noção de Acustemologia, proposta por
Feld (2003) a partir de seus estudos sobre a paisagem sonora e ecologia acústica de R.
Murray Schafer que, somados a sua pesquisa com o povo Kaluli e apoiado na fenomenologia de Merleau-Ponty, busca abranger a acústica e a epistemologia, envolve o estudo da ecologia da linguagem, da música, da paisagem sonora e da acústica:
Seguindo a pauta estabelecida pela Fenomenologia da Percepção de Maurice Merleau-Ponty (1962), que ecoa na obra de Don Ihde, Listening and Voice: a phenomenology of sound (1976), Minha noção de Acustemologia busca explorar as relações reflexivas e históricas entre ouvir e falar, entre escutar e produzir sons. Essa reflexividade está incorporada duplamente: quando ouvimos a nós mesmos a partir dos nossos atos de fala e quando em nós ressoa a fisicalidade das vozes dos outros pela audição, dos atos de ouvir. Entre a audição e a voz existe uma relação de reciprocidade profunda; um diálogo incorporado entre a produção sonora e ressonâncias internas e externas construídas pela experiência histórica. (FELD, 2003, p.226)
Para Feld (2003), o som é concebido como modalidade de conhecimento e de existência: incorporados em nossos mundos específicos, somos parte e agentes do ambiente sonoro que nos envolve. Como ouvintes e produtores de sons, nos distinguimos uns dos outros, ao mesmo tempo que compartilhamos nossos mundos.
No mapeamento das canções realizadas em cada oficina, o repertório criado orientou o caminho poético trilhado por cada grupo. Naquele aparente curto espaço de tempo semanal, pelo modo colaborativo que foi engendrado, o repertório contribuiu para tecer o percurso que nos conduziu à integração da nossa comunidade estética e forjou o que Steven Feld (2018) chamou de cartografia poética: a trilha sonora de uma experiência composta por todos os envolvidos, através da qual textos e melodias refletem desejos, imagens e sentimentos que conectam lugares, pessoas, experiências e memórias. Caminhos cantados que acontecem simultaneamente em um corpo pessoal e coletivo, que interligam a voz e a escuta em um modo de expressão que funde a experiência espacial e temporal em um fluir de canções e lugares que surgem da experiência cotidiana e se conectam em uma experiência sensível.
Compositor e educador musical canadense, foi professor de Estudos da Comunicação na Universidade Simon Fraser na Colúmbia Britânica, onde realizou diversos experimentos e projetos de pesquisa relativos ao som, o ambiente acústico e as relações humanas. Reconhecido como pioneiro da ecologia acústica, projetou-se internacionalmente por suas posições de vanguarda. Tornou-se conhecido principalmente por seus livros “O ouvido pensante” e “A afinação do Mundo”, com os quais popularizou o termo paisagem sonora.
[1] Compositor e educador musical canadense, foi professor de Estudos da Comunicação na Universidade Simon Fraser na Colúmbia Britânica, onde realizou diversos experimentos e projetos de pesquisa relativos ao som, o ambiente acústico e as relações humanas. Reconhecido como pioneiro da ecologia acústica, projetou-se internacionalmente por suas posições de vanguarda. Tornou-se conhecido principalmente por seus livros “O ouvido pensante” e “A afinação do Mundo”, com os quais popularizou o termo paisagem sonora.
Como tal, o repertório apresentou-se como a construção simbólica de um território delineado e preenchido pelas canções que compuseram a trilha vocalizada e audível a ser percorrida por cada grupo em específico; um “caminho de canções”
(FELD, 1990) que tornou possível a realização de uma travessia durante a qual a voz de cada um ocupou um espaço onde todas se encontravam. Como percurso dinâmico onde se desenrolava a vida em comunidade, tal cantar conferiu forma, sentido e memória em uma partilha transformativa que compôs novas paisagens e modificou o ambiente, tornando pública e audível a subjetividade revelada no desenho de uma cartografia poético-sonora que se afigurou no entrelaçamento sensível das canções. Segundo Feld (1990):
O som tanto emana dos corpos quanto os penetras; esta reciprocidade da reflexão e da absorção constitui um criativo mecanismo de orientação que sintoniza corpos com os lugares e momentos mediante seu potencial sonoro. Ouvir e produzir sons, portanto, fazem parte de competências incorporadas que situam aos atores e sua agência em mundos históricos específicos. Essas competências contribuem para seus modos distintos e compartilhados de ser humanos, além de contribuir à abertura de possibilidades e materializações efetivas de alteridade, compreensão, reflexividade, compaixão e identidade. (...) Esta reflexividade está incorporada duplamente: quando ouvimos a nós mesmos a partir dos nossos atos de fala, e quando em nós ressoa a fisicalidade das vozes dos outros pela audição, dos atos de ouvir. Entre a audição e a voz existe uma relação de reciprocidade profunda; um diálogo incorporado ante a produção sonora e ressonâncias internas e externas construídas pela experiência histórica. O diálogo contínuo do eu consigo mesmo, do eu com o outro e sua influência recíproca por meio da ação e reação estão, portanto, constantemente presentes na percepção do som, absorvido e refletido, dado e recebido em trocas constantes. O caráter sonoro da audição e da voz forma um senso corporificado de presença e memória. Assim, a voz legitima identidades da mesma forma que as identidades legitimam vozes. A voz é evidência, incorporada como autoridade pela experiência, atuada interior ou exteriormente como uma subjetividade tornada pública espelhada na audição que torna público o subjetivo. (FELD,1990, in ILHA, v.20, n.1, p.229-252, 2018)
Desse modo, a reflexão e a absorção das vozes articuladas em canções criaram um campo estético onde o outro passou a fazer parte das histórias cantadas de cada um, unindo os cantantes acusticamente e afetivamente em uma trajetória criada conjuntamente. Maria descreve em seu diário:
No toque dos harmônicos abriram-se caminhos que trouxeram surpresa, encantamento e a magia de um mundo novo que sempre existiu.
Grupo de mulheres dança memórias gravadas no corpo, no coração deste caminho em círculo feito de um ciclo de som, harmonia e cor. As lembranças do canto, da música, dos passos, surgem pequenos e vêm de um lugar bem grande que teve o mapa traçado nos encontros e desencontros. A língua que nos une é universal e atravessa oceanos de amor. Colmeia de palavras doces aqueceram meus ouvidos e vibraram, propagaram-se no corpo e no mundo. (Maria, 44 anos, LAMCI)
Assim, a realização do percurso orientado pelo repertório trouxe consigo o sentimento de pertencimento a si mesmo e a uma comunidade, localizado em um tempo histórico que integrou as experiências e forjou memórias que, corporificadas nas vozes sintonizadas pela narrativa sonora, uniu todos os componentes da situação e presentificou o processo social ali gerado.
4. Liberdade (d)e Conexão
(...)Agora, passado o tempo da experiência, ao ler as narrativas nos “diários de bordo”, constato aquilo que também percebi em mim como participante e condutora: um sentimento de liberdade que, primariamente, envolveu a conexão com o meu corpo, esse mesmo que abriga minha voz e no qual residem sentimentos que me levam a diferentes lugares dentro de mim. Na companhia do outro, conferi a massa da minha vida na interação com a massa da vida dele, em um fluir contínuo entre corpos que, ao tornarem-se audíveis e vibrantes, revelaram as bordas da singularidade de cada um na unidade do todo.
Sinto-me queimar a cada música entoada, após cantarmos juntos vem a sensação de lar, no qual não existe diferença e sim, liberdade de expressão, nos fazendo um só. (Ana L, 16 anos, SAPinhal).
Canto em conjunto é uma experiência única, o seu sentimento e o do outro nunca mais vai ser o mesmo, a conexão que gera é inesquecível. (Tali, 13 anos, CJordão)
Liberdade e Conexão: duas palavras que carregam percepções e sentidos tão diversos e vastos, nas quais encontrei a síntese das experiências narradas pelos participantes das oficinas. Muito longe de querer definir liberdade e conexão ou aprofundar nas diversas concepções e percepções existentes, tenciono falar sobre o sentido de liberdade e sobre sentimento de conexão, mais precisamente sobre aqueles que, em suas diversas nuances, estão presentes nos relatos dos participantes: o perceber-se livre para expressar-se, para movimentar-se, para estar diante do outro sem restrições, para presentificar-se em sua voz ao tornar-se audível, para ouvir o outro, para sentir. Sentir-se capaz de fazer algo que antes não acreditava ser possível, de experimentar algo inédito, fora do cotidiano, de sentir-se inteiro, conectado com o corpo, com os sentimentos, com a própria potência, emocionado, sensível, vivo.
Senti-me “viva” com esta experiência de hoje
Obrigada. É incrível como através do canto e dos movimentos conseguimos libertar tanto stress. Esta é uma fase em que me tenho sentido presa, por isso agradeço imenso estes momentos.
Estou a adorar fazer parte e ter a oportunidade de me libertar. Obrigada (Taty, 43 anos, CPSRainha)
Nas narrativas dos participantes e na minha própria experiência, percebo que ambas estão amalgamados e ocorrem simultaneamente: Gislene observa que o que importa é cantar para sentir-se livre, para conectar -se com o sentimento de ser capaz de tudo o que quiser; Ana relata os movimentos do corpo, conecta-se com o cansaço, o coração, a energia disponível, sente-se presente, descobre e ouve uma canção viva ressoando dentro si, sente-se livre para dizer sim a si mesma:
Acho que todos teriam que cantar, não importa a sua voz, o que importa é cantar pra se sentir livre, pra saber que cada um é capaz, capaz de tudo que quiser, basta acreditar. E o canto nos leva além da nossa imaginação. (Gislene, 40 anos, CJ)
Dia cheio. Dia bom. Dar. Receber. O mundo me pede para acelerar. Eu digo que sim, E digo que sim. E sinto que não. Cansaço. Cansaço no corpo. Músculos tensos. O coração está bem. Ainda bem. Final do dia. Pergunto-me e respondo que a minha energia é pouca para cantar e descansar meu corpo. Digo que sim. Estou presente. Respiro, escuto, ouço, sinto, canto, movimento-me, liberto, contacto, saio de mim e escuto o outro. Os outros. O nós que me espelha e eu espelho também. Escuto e canto uma canção linda que também estava dentro de mim sem que eu soubesse. O ‘nós’ entra e me oferece uma brisa. Ah...! E eu a levo comigo. E digo sim A mim. Termino respirando... Ah... (Ana T. 40 anos, LAMCI)
Ambas relatam a ação de cantar como potência que ultrapassa restrições, conduzindo-as a lugares diferentes dentro de si mesmas e à abertura para ouvir o outro; percebem a criação de sons produzidos com a voz como algo que acontece no corpo, na sensibilidade engajada na ação do presente. Ana comenta: "saio de mim e escuto o outro”. Gislene afirma:“o canto nos leva além da imaginação. Ambas, não obstante viverem em países diferentes, experimentando contextos culturais diversos, evidenciam o cantar junto como um modo de acesso para um espaço transcendente situado em um campo sensível no qual encontram a possibilidade de “saírem de si mesmas” e serem levadas “além da imaginação”, de se reconhecerem de forma distinta daquela do cotidiano, em uma descoberta conjunta de novos modos de ser, de escuta e de expressão.
4.1. O sentido de liberdade
Ao procurar a etimologia da palavra liberdade, encontrei sua raiz grega, Eleutheria, que significa liberdade de movimento, muito próxima da palavra poder, da mesma raiz. Relacionada à ausência de limitações e coações, refere-se ao poder como a potência de movimentar-se sem restrições, vivido em um corpo livre de impedimentos nos seus movimentos, capaz de fluir em gestos, sentimentos, sensações e expressar-se. Taty descreve:“tenho me sentido presa”, em seguida,“estou a adorar fazer parte e ter a oportunidade de me libertar”. Taty percebe em si algo que a faz sentir-se presa e que, ao cantar e movimentar-se encontra um modo para se libertar. Para ela, é preciso ter a oportunidade, o momento em que é possível sentir-se livre, soltar-se, em um espaço e um tempo específicos, em um “campo de liberdade”, constituído pelo fazer de uma arte que se afigura na criação de um campo sensível que potencializa o emergir do que antes estava reprimido.
Existe, como diz Husserl, um “campo de liberdade” e uma “liberdade condicionada”, não que ela seja absoluta nos limites desse campo e nula no exterior – assim como o campo perceptivo, esse não tem limites lineares – mas porque tenho possibilidades próximas e remotas. Nossos envolvimentos sustentam nossa potência e não há liberdade sem alguma potência. (MERLEAU-PONTY, 2014, 609)
Assim, o sentido de liberdade está conectado aos sentimentos de potência e restrição, como duas faces de uma mesma moeda, do contrário sequer existiria como tal, “já que a ação livre, para ser revelável, precisaria destacar-se sobre um fundo de vida que não fosse ou que fosse menos” (MERLEAU-PONTY, 2014):
Me senti livre do medo, da insegurança e do que acontece fora de mim, livre para me conectar comigo, com os outros e com a música.
Hoje eu vim com muitas preocupações para a aula, mas a cada exercício e a cada música os pesos que estavam em mim diminuíram. (Gabi, 17 anos, CJordão)
Está, igualmente, ligado ao meu envolvimento em meu campo de presença, onde ocorre a tomada de consciência: “Assumindo um presente, retomo e transformo meu passado, mudo seu sentido, libero-me dele, desembaraço-me dele. Mas só o faço envolvendo-me alhures.” (MERLEAU-PONTY, 2014, p.610). Pois bem, tal envolvimento ocorre no fluxo da existência, em um corpo que afirma nossa presença no mundo e por meio do qual vivemos e absorvemos cada dia. Rosane relata como cantar a levou para outros momentos no tempo, onde memórias do passado, sensações e sentimentos fundiram -se no presente:
Cantar hoje tirou-me do espaço onde estava e levou-me lá para atrás no tempo. Trouxe algumas sensações da infância, sem ser algo específico. Algumas canções também me embalaram como se estivesse a pegar em mim ao colo e a abraçar-me.
Quando o som vibra dentro de mim, parece que saio do momento onde estou para outro lugar mesmo sem saber qual. (Rosane, 36 anos, CPSRainha)
No engajamento da experiência sensível por meio do canto, Rosane fez-se presente em seus movimentos, em conexão com o que ocorria em seu organismo. Ao encontrar um campo favorável para desembaraçar-se daquilo que a restringia, percebeu novas possibilidades de ação na sua relação com o outro, e um sentido de liberdade no acolhimento de si mesma:
É bom sentir o corpo a desbloquear com o seu próprio movimento.
Perceber que um corpo estagnado (parado) é um corpo preso.
E muitas vezes esses bloqueios desaparecem com a música e com o movimento. Perceber que nem sempre temos de responder tudo, e que em 1º lugar eu tenho que me ouvir e responder ao que preciso para depois, responder ao que os outros precisam.
É bom sentir que a música nos embala e ao mesmo tempo nos liberta. O “tore” faz-me sentir livre e solta, faz-me soltar as amarras sem julgamento, mesmo que inicialmente não seja fácil isso acontecer.
Com a vibração da música, com o movimento do corpo, o meu eu vai-se libertando ao mesmo tempo que vai sendo acolhido por mim e pela música que vibra em mim. (Rosane, 36 anos, CPSRainha)
A reflexão experimentada por Rosane se dá, não por uma subjetividade inacessível (MERLEAU_PONTY, 2014), mas por aquela vivida no corpo que, presente no contato consigo mesmo, faz-se ser diante do outro:
A verdadeira reflexão me dá a mim mesmo não como subjetividade ociosa e inacessível, mas como idêntica a minha presença ao mundo e a outrem, tal como eu realizo agora: sou tudo aquilo que vejo, sou um campo intersubjetivo, não a despeito de meu corpo e de minha situação histórica, mas ao contrário sendo esse corpo e essa situação e através deles todo o resto. (MERLEAU-PONTY, 2014, p.606)
De fato, trata-se de uma intersubjetividade constituída pela coexistência, pelo envolvimento contínuo com o mundo, por aquilo que qualifico e sinto que sou, naquilo que ouço de mim e vibro pela minha voz, do que ouço e vibro na voz do outro. “Coexistimos na mesma situação e nos sentimos semelhantes, não por alguma comparação, como se em primeiro lugar cada um vivesse em si, mas a partir de nossas tarefas e de nossos gestos”. (MERLEAU-PONTY, 2014).
Por consequência, afirmo, mais uma vez, que não há uma voz sem um corpo, assim como não há uma voz sem um sujeito, um corpo que não se expresse, um movimento que não ocupe um tempo e um espaço. É preciso ultrapassar a distorção que anuncia uma voz separada de um corpo, como se fosse possível a existência de uma entidade voz, que desce quando solicitada a se expressar, resquício da dualidade que separa mente e corpo, razão e emoção, pois a qualidade da sonoridade da voz está enovelada aos espaços internos do organismo daquele que canta que, ao mover-se em seu canto, é revelado na sua expressão. Presente em um corpo que é constantemente modelado pelos acontecimentos, torno-me audível em meio a coexistência com outros corpos que, igualmente audíveis, vibram conjuntamente.
Em outro relato, Joana fala da liberação de controles que inibem sua expressão, que necessitam ser ultrapassados para que possa explorar livremente sua voz diante do outro e para si mesma: “Foram experiências de contacto com o sabotador interno – o crítico, julgador. Questiona-lo, não validá-lo e deixa-lo ir. Libertando-me de qualquer julgamento e concepção de certo ou errado em fluir com o mar”. No envolvimento com o sentido de liberdade que reflexiona para expressar-se, sente-se: “pulsar em meu peito em conexão com quem estou, aqui e agora”. Por fim, torna-se autoconsciente das crenças e julgamentos que antes limitavam seus movimentos:
(hoje)Foram experiências de contacto com o sabotador interno – o crítico, julgador. Sentar-se com o desconforto que ele deixa. Questioná-lo, não validá-lo e deixá-lo ir. Libertando-me de qualquer julgamento e concepção de certo ou errado em fluir com o mar... Sentir o vibrar, o pulsar do meu peito em conexão com quem eu estou, no aqui e agora. Libertação do controlo, que também é distorção e ilusão e exploração livre da minha voz sem deixar que a mente controle. (Joana, 25 anos, LAMCI)
Portanto, ao expressar-me pelo meu canto posso perceber, nos movimentos internos do meu organismo, o que me restringe e condiciona, o que me reduz e o que faz sentir-me livre em meus movimentos. Na simultaneidade da relação comigo mesma e com o outro, percebo o que me desconforta e me desloca, para soltar o que me aprisiona e encontrar-me autoconsciente em um novo lugar para ser inteira e capaz de tornar-me audível pela minha voz, visível em minha expressão. Conscientizo-me da minha potência pela coexistência com o outro, no engajamento daquilo que me envolve e me faz sensível para mim mesma. Mas do que se trata essa potência? É a potência de conectar-me com outra coisa, com aquilo que me confere sentido e torna-me autoconsciente das possibilidades que se oferecem como verdades para mim, na intersecção do que experimento como interior e exterior:
Longe de que minha liberdade seja sempre solitária, ela nunca está sem cúmplice, e seu poder de arrancamento perpétuo se apoia em meu envolvimento universal no mundo. Minha liberdade efetiva não está aquém de meu ser, mas diante de mim, nas coisas”
(MERLEAU-PONTY, 2014, p.607).
Como Ser socialmente situado, é no fazer junto da coexistência que encontro a unidade singular do meu sentido de liberdade, aquilo que me assemelha e me diferencia, o que me aproxima e me distancia.
Mas hoje foi uma experiência muito diferente, pois estávamos todos juntos, cantando todos os nossos nomes. Foi incrível ouvir meu nome cantado por outras pessoas. adorei!
Na hora de entrar no círculo para cantar meu nome foi bem difícil! Fico com muita vergonha de me expor assim. Fiquei feliz por ter conseguido. Até porque este foi um dos motivos por eu ter vindo fazer a oficina. (Jacy, 66 anos, LAMCI)
Sentir a vibração de alegria dentro do meu corpo, através da música.
Deixar soltar o que está preso, porque nem tudo faz parte de nós. Por vezes trazemos pesos que não são “nossos” que soltamos através da música. (Mari, 39 anos, CPS)
Jacy conseguiu cantar seu nome diante do grupo, mesmo exposta na sua vergonha em fazê-lo: “Na hora de entrar no círculo para cantar meu nome foi bem difícil! Fico com muita vergonha de me expor assim”. Encontrou, na oficina, o campo propício para arriscar-se; sentiu-se feliz por ter conseguido ultrapassar algo que a constrangia diante do outro e que limitava sua expressão: “Fiquei feliz por ter conseguido. Até porque este foi um dos motivos por eu ter vindo fazer a oficina”. Por sua vez, Mari percebe o que a diferencia e permite-se soltar o que está preso: “Deixar
soltar o que está preso, porque nem tudo faz parte de nós”, e os “pesos” que compreende “não serem nossos”: “Por vezes trazemos pesos que não são “nossos” e que soltamos através da música”.
De natureza igual, na generalidade das determinações do exterior que definem o que é uma “voz boa” ou “feia”, Gislene, Anna Elisa e Rose, concebem suas vozes como inadequadas. Ao assumirem a situação de se disporem a expressá-la e vivenciá-la na interação com outros, encontraram um sentimento de realização e pertencimento, resultantes de um sentido de liberdade que se fez presente pela própria ação:
Sou uma pessoa mais feliz depois que comecei a cantar. Se não tenho aquela voz, mas me sinto bem cantando, é isso, quem canta é uma pessoa mais feliz. (Gislene, 40 anos, CJordão)
Tudo flui bem bacana, e quando chega a 1ª música a ser cantada juntamente com o colega (o), as emoções, particularmente falando, foi maravilhoso, já que não tenho a maravilhosa “voz de “coral” me senti interagindo com a música, com a parceira e depois com o grupo. Foi uma sensação maravilhosa de pertencimento. Gratidão. (Anna Elisa, 42 anos, CJordão)
Me senti muito insegura, pois sempre sinto que meu timbre é feio. Em alguns momentos me senti feliz e em outros constrangida por experiências anteriores vividas. Fui tranquilizada pela professora e desejo na próxima vez me soltar mais. Estou feliz por fazer o que sempre sonhei. (Rose, 28 anos, CJordão)
Assim, no fluxo da experiência do cantar junto, conscientizo-me dos obstáculos e limites impostos a mim daquilo que historicamente introjetei como solicitações do exterior, revelados na constrição dos meus movimentos, da minha voz, daquilo que afeta minha expressão e que, sem nenhum paradoxo, me motiva ir além, ao encontro de mim mesma em um campo socialmente constituído e coletivamente criado, no qual minha liberdade reside, pois a “tua liberdade não pode querer-se sem sair de sua singularidade e sem querer a liberdade” (MERLEAU-PONTY, 2014)
Portanto, encontro minha liberdade no encontro da liberdade do outro, no modo com o qual me percebo e me reconheço, em como compreendo o que está ao meu redor ao assumir meu lugar e minha situação no mundo, motivada por aquilo que sou, livre das restrições e reservas que me inibem, entranhada no presente:
Sou uma estrutura psicológica e histórica. Com a existência recebi uma maneira de existir, um estilo. Todos os pensamentos e minhas ações estão em relação com esta estrutura, e mesmo o pensamento de um filósofo não é senão uma maneira de explicitar seu poder sobre o mundo, aquilo que ele é. E, todavia, sou livre, não a despeito ou aquém dessas motivações, mas por seu meio. Pois essa vida significante, essa certa significação da natureza e da história que sou eu, não limita meu acesso ao mundo, ao contrário, ela é meu meio de comunicar-me com ele. (MERLEAU-PONTY, 2014, p.611)
Por fim, concluo esse tópico com as palavras de Tali: “Sobre essa aula. Cada experiência de aula que eu tenho, me sinto mais livre. Liberdade de expressão (fazer o que te deixa bem, mas respeitando o espaço do outro). Me sinto, como dizia Santa
Terezinha, “vivo de amor”, e apenas um ato basta”. (Tali, 13 anos, CJordão)
4.2. O Sentimento de Conexão
Sem pretender abranger os diversos sentidos que podem ser atribuídos a palavra conexão, como explicitei anteriormente, na observância dos relatos dos participantes encontro seu significado: vibrar junto, ouvir a mim, ouvir o outro, encaixar, ligar, interagir, sentir com o outro, criar laços, unidade, ressonância.
Tal significado encontra-se alinhado ao sentimento de “juntidade”, descrito por Marcelo Petraglia (2015) em seus estudos sobre a musicalidade como atributo humano, como um sentimento de integração e unidade entre o sujeito e a música:
No simples ato de cantar ou tocar um instrumento, o sentimento de unidade e atribuição de significado surge da fusão do sujeito com a própria música (...). Na medida em que seu interior se revela e coincide com sua manifestação exterior sensível, a música e o sujeito se tornam um”. (PETRAGLIA, M., 2015, p. 160)
Desse modo, na fusão do meu canto comigo mesma, ouço a mim e ao outro, e encontro meu sentido de liberdade na unidade conectiva que percebo entre a minha expressão e a minha voz.
Eu sinto uma conexão com o canto que há em mim. No primeiro momento, caminhei como se estivesse concentrada comigo mesma. Senti um pouco de dificuldade de acalmar meus pensamentos, mas aos poucos, fui conseguindo. Acho que ouvir a mim mesma me fez ouvir melhor o outro e ressignificar meu canto. (Christina, 37 anos, LAMCI)
Consegui ter um momento de libertação, consegui sentir a vibração do som da melodia dentro de mim. As minhas dores físicas não me deixaram descontrair e libertar tanto quanto desejava. Obrigada! por me permitir sentir o som vibrar dentro de mim. (Isa, 55 anos, LAMCI)
Se na coexistência com o outro encontro meu sentido de liberdade, é porque me conecto com aquilo que está vivo em mim diante dele. Ao colocar-me disposta a expressar-me pela minha voz, é por esta conexão que me determino a fazê-lo, que posso perceber meus movimentos, simultaneamente ao meu ato de liberdade: Christina, ensimesmada, ultrapassa a dificuldade inicial de soltar-se e, aos poucos, em afinidade com o canto que percebeu em si mesma, consegue levar-se para um modo de conexão que lhe possibilitou uma nova compreensão da sua escuta e uma ressignificação do seu cantar; Isa, engajada no campo perceptivo, apesar das dores físicas e dos constrangimentos que sente, conecta-se com sua capacidade de ir além das restrições para alcançar um momento de libertação e sentir o som vibrar dentro de si, pela ressonância da sua própria voz em seu corpo.
Tanto Isa como Christina, presentificadas em seus corpos, conscientes de suas sensações e sentimentos, iniciaram um movimento em direção a conseguirem acessar uma qualidade de conexão diferente daquela em que se encontravam. Portanto, muito mais do que saber se me sinto conectada, pois sempre estarei conectada com algo, quer esteja no campo da minha consciência ou não, a questão que se coloca é aquela que se refere aos caminhos que percorro e aos recursos que disponho para alargar minha percepção e, por consequência, a compreensão da qualidade da conexão na qual me encontro para, em um ato de liberdade, fortalecê-la ou transformá-la. Entendo que a qualidade de conexão é aquilo que norteia meu modo de perceber e Ser no mundo, que define minha expressão e que informo a mim mesma e ao outro por meio dos meus gestos e da minha voz, em relação.
Iuri constata-se mais conectado consigo mesmo na convivência do cantar junto e conscientiza-se de automatismos que antes não percebia; refere-se a uma ligação integradora que ocorre “em todos os espaços dos tempos vividos na aula”, em um campo que, mais uma vez, transcende o espaço-tempo cotidiano:
A ligação entre os seres, corporal, musical e espiritualmente é nítida em todos os espaços dos tempos vividos na aula.
Quanto mais convivo com a experiência do canto em grupo, nesta aula, mais me conecto comigo mesmo, encontrando essências que sempre são automáticas e não percebo. ALGUÉM CANTANDO (Iuri, 26 anos, CJordão)
A ligação percebida por Iuri, experimentada pelos participantes das oficinas que a relataram de diferentes perspectivas, ocorre em um campo conectivo criado pela vibração das vozes que cantam conjuntamente; um campo estético que se constitui a partir do fazer de uma arte cuja matriz é o som produzido por nós. Como fenômeno acústico, a onda sonora emitida pela minha voz preenche meu corpo e o espaço ao redor, estende-me para além dos contornos do meu corpo e, ao mesmo tempo, presentifica-me nele, colocando-me em conexão com as outras vozes que vibram em corpos que se encontram por ressonância e partilham de um mesmo espaço e de um mesmo tempo. Assim, na interlocução sensível com o outro, toco-me em lugares que não havia chegado antes. Nesse momento, ativo todo o meu ser e em meu campo de presença conecto com o que acontece em mim, conscientizo-me das minhas sensações e sentimentos, percebo-me livre para comunicar-me comigo mesma e com o outro, em uma escuta compartilhada que abre caminhos para novas e outras conexões: “É comunicando-nos com o mundo que indubitavelmente nos comunicamos com nós mesmos. Nós temos o tempo por inteiro e estamos presentes a nós mesmos porque estamos presentes no mundo” (MERLEAU-PONTY, 2014, p.569).
4.3. Liberdade de Conexão
Ao traçar os caminhos do sentido de liberdade e do sentimento de conexão a partir das narrativas dos participantes, encontro o seu elo em uma preposição que conecta o fio condutor que tece essa investigação, oferecendo-me uma nova camada de compreensão, que envolve o vínculo de confiança que é fortalecido na partilha semanal de um fazer junto que ocorre em um espaço criado mutuamente em cada encontro, no qual as trocas sensíveis favorecem o sentimento de familiaridade e pertencimento, bem como o cultivo de um sentido de comunidade. Em artigo publicado por Andriolo et all
(2022), acerca das experiências estéticas e suas relações com o exposto acima, baseadas em relatos de participantes em oficinas de música e no qual fui colaboradora, afirma-se que:
A transmutação da sensibilidade não se restringiu à perspectiva da transformação pessoal. Também se estendeu no envolvimento do senso de solidariedade e interconexão. Um importante aspecto emergente das oficinas relaciona-se com o sentimento de pertencimento, reciprocidade e prazer que as pessoas derivam do compartilhamento de experiências musicais estéticas com outros participantes. (...)Iniciamos com as experiências estéticas baseadas na música como uma forma de envolvimento íntimo através do qual os participantes podem perceber um ao outro mais plenamente como um ser humano complexo. As oficinas estimularam os participantes a criar e partilhar imagens e canções, memórias e emoções. Essas trocas abriram espaço para o cultivo de sentimentos de familiaridade, pertencimento e conexão, ou um sentido de comunidade. Em seguida, consideramos as reflexões dos participantes sobre o espaço estético criado pelas oficinas para exploração e apoio mútuos. Dentro da produção musical compartilhada, ouvir e observar os outros foi fundamental para experiências de conexão e compreensão mútua. Os participantes desenvolveram um senso refinado de si mesmos e dos outros participantes como agentes sociais colaboradores, situado na cocriação do espaço da oficina. (ANDRIOLO et al. 2022, p.7, tradução minha).
De fato, em diversas narrativas no decorrer desse estudo é possível constatar tal envolvimento e partilha que conduziram à liberdade de conexão que cada participante sentiu à sua maneira, potencializada pelas características dos vínculos que se formaram a partir do campo estético criado na coexistência do cantar junto.
Hoje estou muito emotiva e acho que procurando exatamente o carinho que o grupo consegue me transmitir. A vibração das vozes hoje parece ter me penetrado mais que os dias anteriores. No final, recebi um abraço mais que especial de alguém que não conhecia, mas que conseguiu penetrar na minha alma nesse momento, me preencheu o vazio e a tristeza que de repente me abateu ao cantarmos última música caminhando e nos encontrando (você é assim...). Estou tentando viver só o aqui e agora e estas práticas conseguem me ajudar muito!!! Gratidão mais uma vez. De repente deu uma vontade de gritar bem alto: Que amo a todos!!! e isso me faz bem! (Juliana, 57 anos, CJordão)
Em uma palavra, gratidão!
Ainda bem que vim, mesmo me sentindo super-resfriada, sem conseguir respirar direito. Como sempre, todas as dinâmicas, cantos e danças foram de uma vibração intensa, me fizeram super bem! Foi muito forte a dança de cura! Espero que tenha confortado a Paula e a Maria, e todos que estavam no centro da roda. Incrível mesmo o poder do som, como os sons vibram na gente, na relação com as outras pessoas e com o ambiente. Foram momentos de vibração muito intensas e muito regeneradoras. daí minha gratidão por mais esse encontro. (Jacy, 66 anos, LAMCI)
Juliana, emocionada, procura conectar-se com o carinho transmitido pelo grupo e o encontra em um abraço de alguém que não conhecia, mas com quem compartilhava um campo sensível, criado pela vibração das vozes que a penetravam mais profundamente naquele dia. Ao receber o abraço, preencheu-se com sentimentos diversos daqueles que sentia até então, envolveu-se em sua tentativa de viver no presente e constatou o que lhe faz bem. Sentiu-se livre e pertencente para anunciar e compartilhar seu afeto por todos ao cantar e caminhar com aqueles com quem compôs a trajetória de cada encontro.
Assim, ao comunicar-se consigo mesma na continência de um campo sensível favorável, Juliana encontrou sua liberdade de conexão, ou seja, seu campo de presença e a capacidade de conectar-se com aquilo que percebeu estar em ressonância com a sua necessidade, com o que a preenchia, lhe fazia bem e tornava-a inteira naquele momento. Do mesmo modo, Jacy, ao narrar a experiência de cantarmos um canto específico para Lara e Maria, que haviam perdido seus familiares recentemente, sentiu-se conectada e vibrante em uma vivência que definiu como regeneradora.
Como consequência, Lara, ao retornar, encontrou um lugar de acolhimento para os seus sentimentos e para o luto das perdas que sofreu, recuperou o pulsar da vida em si mesma ao cantar novamente e prometeu-se não mais descuidar da sua voz e de sua expressão:
Depois de 3 semanas de ausência por perdas familiares (depois da minha mãe, em junho) cantar redescobre a vida em mim. Sinto que perdi muito tempo ao deixar minha voz ao acaso. Prometo-me não me descuidar mais e entoar, até o fim, todos os sons que minha alma desejar. Obrigada, Cecília, por permaneceres e teres cutucado a minha porta do som. (Lara, 52 anos, LAMCI)
A forma colaborativa e a intimidade desenvolvida nas oficinas constituíram um campo estético que permitiu que as dores e constrangimentos observados em alguns dos relatos encontrassem um lugar de acolhimento e elaboração. Evidentemente, nem todos os sofrimentos encontraram a ocasião propícia para sua expressão e houve aqueles que permaneceram ocultos em lugares não acessíveis no momento dos encontros.
Entretanto, no partilhar de uma arte que se expandiu a partir daquilo que temos humanamente em comum e na qual nos encontramos solidariamente, percebemo-nos criativamente livres para conectarmos e integrarmos novas paisagens e perspectivas dentro de nós.
Paralelamente, em ressonância com sentimentos que pude observar em mim, os relatos apontaram para o desenrolar dos sentimentos de bem-estar e pertencimento, que contagiaram os afazeres da vida diária e modelaram o processo social.
Maria A. relatou perceber que seu bem-estar, proporcionado pela alegria que leva dos encontros, contagiou os outros ao seu redor:
Momentos de felicidade, ouvirmo-nos uns aos outros tem sido delicioso. Levo todas as quartas-feiras uma alegria que me acompanha durante toda a semana, ajudando-me a ultrapassar alguns aborrecimentos, ajuda ajudando outros. O meu bem-estar contagia os outros. Tenho cantado mais. São momentos de bem-estar que se propagam e contagiam. Até para a outra semana, 10 de novembro. Vou ter saudades. (Maria A, 59 anos, CPSRainha)
Rosane, ao perceber seus movimentos presos, buscou centrar-se e encontrou na respiração um recurso para soltar o corpo e recuperar a fluidez dos seus gestos:
Hoje estava com os movimentos mais presos e até caiu a respiração toda “baralhada”. À medida que fui encontrando o meu centro, a minha respiração foi voltando ao sítio, os meus movimentos (embora com dores) foram também soltando. A minha respiração ajuda a soltar também o meu corpo. (Rosane, 36 anos, CPSRainha)
Mari transportou-se para paisagens da sua memória, percebeu no corpo os efeitos da música e, no contato com o outro, sentiu-se “crescer de dentro para fora”:
A música faz milagres na nossa pele, na nossa mente, no nosso coração. Hoje foi transportada para sentimentos, pessoas, lugares e cheiros.
Pela música, pela dança, pela respiração.
As partilhas, os olhares, os toques, as diferenças, fazem-me crescer de dentro para fora. Hoje foi um dia para sempre recordar e será assim, sem dúvida. (Mari, 39 anos, CPSRainha)
Clarice percebeu o canto e a música como recursos para diminuir a ansiedade e recuperar seu bem-estar, assim como Yara:
Eu amo música e canto, me faz tão bem. Eu ando muito para baixo e estou passando por várias crises de ansiedade e a música me ajuda muito. Eu amo cantar!! (Clarice, 14 anos, SAPinhal)
Aprendizado: A importância da respiração para o canto e para diminuir a ansiedade. Sentir o ar, perceber o movimento dos músculos envolvidos na respiração e controlar a saída do ar e do som. Relaxamento e descontração marcam essas aulas. Obrigada! (Yara, 66 anos, CJordão)
Beatriz encontrou a leveza em um lugar dentro de si que lhe permitiu acessar uma dimensão além do comum:
Lugar de encontro comigo, lugar de encontro com o outro, para além do corpo e da matéria. Saio um pouco mais leve hoje. Gratidão (Beatriz, 53 anos, LAMCI)
Com isso, retorno a perspectiva do cantar junto como uma “Tecnologia do Nós”, tal como descrevi anteriormente, confirmada pelas vozes dos participantes, entre os quais mais uma vez me incluo: ao cantar junto, percebo-me conectada com a alegria, com o jogo e com a brincadeira; um calor me invade e, em meu triplo papel como condutora, participante e pesquisadora, sinto-me livre para estar em sintonia comigo mesma e com todos que naquele momento compõem a “comunidade cantante”, imersa na temporalidade eterna do presente, que encontra seu continente na duração medida dos encontros.
Posso, desse modo, ousar afirmar que a percepção de liberdade de conexão encontrou lugar em um campo sensível originado pelas vozes que se uniram movidas por um cantar em comum que mapeou o espaço no qual a confiança e a mutualidade tornaram possível acessá-la e compartilhá-la. No fluxo das diversas temporalidades que se entrecruzaram no continuum das experiências compartilhadas pelo cantar junto, emergiram os sentimentos de integração, bem-estar e pertencimento, bem como a aquisição pessoal de recursos para a autorregulação e para a corregulação de uma coletividade criada conjuntamente.
Além disso, o modo como as oficinas foram conduzidas, a confecção de um repertório significativo e colaborativo na composição de uma trilha sonora que uniu as vozes de todos e contribuiu para a partilha de saberes, histórias e memórias, favoreceram o engajamento sensível em um campo estético inclusivo, acolhedor das distinções, dos sentimentos e sensações; tudo isso contribuiu para o cultivo de um sentido de comunidade na qual a liberdade de conexão pôde emergir.
Ao final do percurso desse caminho, encontro-me novamente diante dos componentes que interligam a comunidade estética idealizada por Berleant (2010), implicada na Estética Social constituída no processo do fazer de uma arte que, em origem e essência, somos nós mesmos.
5. Considerações finais
Desejo “boa sorte” e agradeço toda a aprendizagem que levarei comigo pela minha vida. Estes momentos de bem-estar não deveriam terminar. Muito obrigada. (Taty, 43 anos, CPSRainha)
Passados três anos das duas primeiras oficinas em Santo Antônio do Pinhal e Campos do Jordão e seis meses das oficinas realizadas em Lisboa, percorri novamente o caminho das minhas experiências e reflexões e daquelas registradas nos relatos dos participantes para escrever esse estudo. Recolho minhas conclusões em cada capítulo para alinhavar as considerações finais e percebo que aquilo que inicialmente me conduziu a esta investigação está revelado de modo mais profundo do que cogitei inicialmente.
Na introdução, revejo as cenas do encontro em Santo Antônio do Pinhal que inspirou esse estudo e refaço os desdobramentos do tema que inicialmente me motivou: a sensibilidade compartilhada pelo cantar junto como potencializadora de um campo sensível para a autoconsciência e o surgimento de um sentimento, naqueles que vivem essa experiência, de pertencimento a si mesmo e a uma comunidade.
No primeiro capítulo, dedicado ao método e às abordagens utilizadas na investigação, justifiquei a adoção da compreensão fenomenológica de Merleau Ponty e do método fenomenológico como procedimento essencial para sua realização, conforme apontado por Arnold Berleant. Ao definir as estratégias para o campo de pesquisa, baseei-me nas que foram desenvolvidas pelo LAPA, Laboratório de Pesquisa em Psicologia da Arte/IPUSP, e as adequei para o campo de pesquisa. Procurei suspender minhas hipóteses, embora minha experiência indicasse que estava “tudo alí”.
Ao fundamentar o método pedagógico que criei e os valores que o sustentam, ao delinear os pressupostos da minha atuação como condutora em uma ação participativa e da escolha das dinâmicas adequadas para as características de cada grupo, reforcei a qualidade da agência do condutor na capacidade de olhar para si mesmo, na aquisição da consciência e compreensão daquilo que o move em sua ação e sua disponibilidade em correr riscos como imprescindíveis para a qualidade do percurso criado em uma experiência que inevitavelmente ocorre conjuntamente com todos os envolvidos.
Segui para o campo da experiência e, juntamente com os participantes, criamos a trilha de cada encontro, em cada oficina. A distância temporal entre as oficinas deveu-se à pandemia provocada pelo vírus Sars-Cov 19. Por se tratar de oficinas de canto, altamente propagadoras do vírus, foi necessário aguardar seu abrandamento para poder prosseguir com a investigação. Isso se deu com aquelas que foram realizadas em Portugal, que ocorreram em um momento em que as pessoas voltavam gradualmente a se encontrar para práticas coletivas, ainda sob a observação das determinações do Departamento Geral de Saúde, depois de dois anos de isolamento.
Ao descrever cada campo de pesquisa no segundo capítulo, encontro suas semelhanças em relação aos diversos sentidos e percepções suscitados e suas distinções nos diferentes contextos culturais, sociais, econômicos e ambientais presentes nos contrastes da arquitetura e estrutura de cada local onde ocorreram, no número de participantes, nas diversas formações acadêmicas, profissionais, de faixa etária, classe, gênero, religião e raça, que estavam reunidas em cada grupo. Cada oficina foi única, entretanto, a semelhança dos sentimentos e percepções relatados evidenciavam algo que transcende as distinções e integra as diferenças por meio de um cantar junto que vibra em nossos corpos e nos expõe uns com os outros, e no qual nos encontramos em nossos desejos e aflições humanas.
Este algo começou a ser elaborado teoricamente no terceiro capítulo, composto por dois tópicos: o primeiro trata da Estética Social e Comunidade estética, no qual analiso os conceitos propostos por Berleant e Georgina Born e as relações entre música e saúde propostos por Tia DeNora. O segundo, refere-se ao engendramento do repertório como cartografia poética. Introduzi o primeiro tópico pelo conceito de comunidade estética proposto por Arnold Berleant (2010), anteriormente descrito na minha dissertação de mestrado, cujo entendimento está entrelaçado ao campo psicossocial das relações e inserido em sua compreensão da Estética Social, concebida como uma “estética da situação”, na qual a somatória entre uma estética da arte, uma estética da natureza e uma estética dos humanos compõem uma mesma realidade, simultaneamente interdependente e multidimensional. Em sintonia com Berleant, Georgina Born (2017), aponta para o reconhecimento de que nossas narrativas e experiências estão “saturadas de significado social rotineiramente inscritos” e que “a estética social abre novos meios de análise das experiências estéticas ao prenunciar que nas relações entre humanos e objetos, os modos de perceber estão incorporados e imersos culturalmente e socialmente” (BORN, 2017, p.4). Em sua proposição de uma estética social voltada para a arte, Born (2017) argumenta que a música necessita ser vista para além das concepções tradicionais acerca da mediação social e propõe quatro planos a serem observados, planos esses que percebo interligados à experiência das oficinas ao visualizar o campo amplo das relações, posto que levamos conosco tudo o que permeia nossas vidas diárias para qualquer experiência, como é o caso do canto em conjunto. A seguir, em Tia DeNora (2007) encontrei a compreensão das relações entre música e saúde, na qual situa a música como uma “Tecnologia do Eu”, pela aquisição de recursos para a autorregulação, para o autoconhecimento, cuidado pessoal, sentimento de integridade e para a integração social que a sua prática cotidiana pode oferecer. A concepção de DeNora, ao propor uma “tecnologia” por um “eu” individual e independente, conduziu-me a proposição de uma “Tecnologia do Nós”, para a qual o cantar junto apresenta-se como recurso para ativar a capacidade do sujeito de relacionar-se e perceber-se no encontro com o outro, bem como para manutenção da sua capacidade de estabelecer e sustentar uma rede de relacionamento de suporte mútuo e de trocas significativas e benéficas para todos que dela participam. Ao considerar a qualidade intensa e irrefutável da música na produção de um campo coletivamente e mutuamente criado e determinante para a criação de um percurso no qual os efeitos da relação entre música e saúde pontuados por DeNora (2007) sobre o sujeito estão imbricados, afirmei a “Tecnologia do Nós” por um “eu” interligado e interdependente, situado em um “nós” que ocorre em um contexto historicamente situado e pertinente a ele.
Para aclarar a compreensão da prática do cantar junto como uma “Tecnologia do Nós”, recorri ao conceito de sentimento psicológico de comunidade (SPC), proposto por McMillan e Chavis (1986, apud AMARO, 2007), definido como o sentimento de pertencimento e bem-estar que envolve os membros de uma comunidade pela crença partilhada de que se preocupam uns com os outros e de que suas necessidades (trocas) serão satisfeitas pelo compromisso de permanecerem juntos. Por apresentar-se como modelo aplicável em qualquer tipo de comunidade, tomei emprestado os quatro elementos que o compõe – Espírito, com ênfase na amizade; Confiança; Troca (Trade);
Ligações Emocionais Partilhadas (Art,) – para incluí-los no entendimento dos sentimentos de pertencimento e bem-estar, amplamente comentados nas narrativas dos participantes. Com isso, reiterei, mais uma vez, a experiência das oficinas como um campo sensível e privilegiado para o comércio de saberes e de expressões políticas no exercício do senso de comunidade e para a aquisição e fortalecimento do sentimento de pertencimento.
Regressei a Arnold Berleant para confirmar a percepção do corpo como receptor e gerador da experiência sensível, tal qual preconizado por Merleau-Ponty, pois é o corpo que, modelado pelas relações, constitui o sujeito na sua sensibilidade e subjetividade. Apreendido por Berleant como um corpo estético, é na sua força dinâmica e intensidade sensorial características que encontramos sua incorporação estética e a associação com a arte. Considerando que a voz é produto desse mesmo corpo habitado por um sujeito, reafirmei que, na incorporação ativa do mundo, é nele que a voz canta, ouve a si mesma, sente-se vibrar e encontra, no cantar junto, a possibilidade de perceber-se em sua expressão e dar-se conta de seus movimentos.
O segundo tópico que compõe esse capítulo refere-se ao repertório como uma cartografia poética resultante de um “caminho cantado” criado pelas canções trazidas pelos participantes e por mim, de modo colaborativo e significativo para cada componente do grupo. Tal configuração possibilitou o compartilhar mútuo de histórias pessoais que, ao serem cantadas em conjunto, criaram a narrativa sonora única de cada grupo, intensificaram o sentimento de pertencimento e a sua integração. Esclareci que o termo cartografia poética está baseado nos estudos de Steven Feld sobre sua noção de Acustemologia, que busca abranger a acústica e a epistemologia, envolve o estudo da ecologia da linguagem, da música, da paisagem sonora e da acústica, apoiada em sua pesquisa com o povo Kaluli, na fenomenologia de Merleau-Ponty e no conceito de Murrey Shafer sobre ecologia acústica e paisagem sonora. Feld (2003) observou que o fluxo dos caminhos poéticos cantados criados pelo povo kaluli apontaram para um modo de estabelecer a conexão entre os lugares e as pessoas, as experiências e a memória, como um recurso para situar-se no mundo pela confecção de uma trilha sonora que une localmente, espacialmente e afetivamente o ambiente e a comunidade. Por fim, o repertório apresentou-se como a construção simbólica de um território delineado e preenchido pelas canções que compuseram a trilha vocalizada e audível percorrida por cada grupo das oficinas; um “caminho de canções” que tornou possível a realização de uma travessia durante a qual a voz de cada um ocupou um espaço onde todas se encontravam. Portanto, a realização do percurso, orientado pelo modo como o repertório foi constituído e realizado, trouxe um sentimento de pertencimento localizado em um tempo histórico que integrou as experiências e forjou memórias que, corporificadas nas vozes sintonizadas pela narrativa sonora, uniu todos os componentes da situação e presentificou o processo social.
Ao refletir sobre a totalidade das narrativas dos participantes e relembrar minha própria experiência, encontrei em duas palavras a síntese das percepções, sensações e sentimentos descritos nos “diários de Bordo”: liberdade e conexão, que compuseram o quarto e último capítulo. Sem pretender definir liberdade e conexão por meio das diversas concepções existentes, circunscrevi-me àquela apontada pelas narrativas: o sentir-se livre para expressar-se, para entrar no jogo da brincadeira, movimentar-se, para estar diante do outro sem restrições, para dizer “sim” a si mesmo, liberar-se do que restringe e condiciona para presentificar-se em sua voz e tornar-se audível, para ouvir o outro, liberar-se das dores e constrangimentos para sentir-se de outra maneira. Sentir alegria, sentir-se capaz de fazer algo que antes não acreditava ser possível, de experimentar algo inédito e fora do cotidiano, sentir-se inteiro, conectado com o corpo, com os sentimentos, emocionado, sensível, potente, vivo. Munida das percepções e sentimentos ofertados pelos participantes, entre os quais me incluo, teci minha reflexão em três movimentos: O sentido de liberdade, para o qual apoiei-me na compreensão de liberdade desenvolvida por Merleau-Ponty em seu livro Fenomenologia da Percepção; O sentimento de conexão, cujo significado encontrei entrelaçado ao sentido de liberdade; e liberdade de conexão, cujo elo encontrei ao discorrer sobre os dois primeiros.
Compreendi, primeiramente, o sentido de liberdade na conexão dos sentimentos de potência e restrição, que se apresentam como duas faces de uma mesma moeda, “já que a ação livre, para ser revelável, precisaria destacar-se sobre um fundo de vida que não fosse ou que fosse menos” (MERLEAU-PONTY, 2014). Conferi que o campo sensível criado pelo cantar junto proporciona um tipo de coexistência dentro da qual encontrei a unidade singular daquilo que me assemelha e me diferencia, me aproxima e me distancia, me desconforta e me desloca, bem como do que me restringe e diminui, incorporados na constrição dos meus movimentos, da minha voz, daquilo que afeta minha expressão e que percebo como determinações do exterior. Assim, ao conscientizar-me dos obstáculos e limites impostos a mim daquilo que historicamente introjetei como solicitações do exterior, deparo-me com a potência que me leva a agir em direção à minha liberdade de conectar-me com outra coisa, com aquilo que me confere sentido e torna-me autoconsciente das possibilidades que se oferecem como verdades para mim, na intersecção do que experimento como interior e exterior pelo fazer junto da coexistência. Portanto, é no envolvimento sensível com o outro que encontro meu sentido de liberdade.
Se no campo estético da coexistência oferecido pelo cantar junto encontrei o sentido de liberdade, é porque nele percebi a conexão com aquilo que está vivo em mim diante do outro: ao colocar-me disposta a expressar-me pela minha voz, é por esta conexão que me determino a fazê-lo, que posso perceber meus movimentos, simultaneamente ao meu ato de liberdade. Entretanto, muito mais do que saber se me sinto conectada, pois sempre estarei conectada com algo, quer esteja no campo da minha consciência ou não, a questão que se colocou para mim relacionou-se aos caminhos que percorri e aos recursos que adquiri e disponibilizei para alargar a compreensão da qualidade da minha conexão. A resposta, mais uma vez, emergiu na interação sensível com o outro, por meio da qual ativei todo o meu ser, conectei-me ao meu campo de presença, conscientizei-me das sensações e sentimentos em meu corpo e percebi-me livre para comunicar-me comigo mesma, engajada em uma escuta compartilhada que abriu caminhos para novas e outras conexões.
No desvendar pelas narrativas dos participantes dos caminhos que me levaram ao sentido de liberdade e ao sentimento de conexão, encontrei sua interligação no reconhecimento de que ambos se intensificam mutuamente e estão simultaneamenteintegrados. Com isso, compus o terceiro e último tópico deste estudo: Liberdade de Conexão.
No seu desenrolar, revisitei os sentimentos de bem-estar e pertencimento percebidos de diversas maneiras pelos participantes e, dessa forma, retornei à perspectiva do canto em conjunto como uma “Tecnologia do Nós”, para reafirmá-la nas vozes que constituíram esse estudo. Confirmei a percepção de Liberdade de Conexão como resultado da partilha da sensibilidade proporcionada pela coexistência em um campo estético constituído por um cantar em comum que mapeou o espaço no qual o fluxo das diversas temporalidades, que se entrecruzaram no continuum das experiências, fez emergir as sensações e sentimentos que possibilitaram o cultivo de um sentido de comunidade na qual a liberdade de conexão pôde ter lugar, bem como a aquisição pessoal de recursos para a autorregulação e para a corregulação de uma coletividade criada conjuntamente. Coletividade na qual a confiança, a mutualidade, a solidariedade e a alegria de estar junto possibilitaram ultrapassar diferenças, dissolver obstáculos e estender a experiência para a vida cotidiana. Enfatizei que provavelmente nem todos os sofrimentos pessoais encontraram a ocasião propícia para sua expressão e permaneceram ocultos no momento dos encontros, entretanto, salientei que no partilhar de uma arte que se expande a partir daquilo que temos humanamente em comum e pela qual podemos nos encontrar solidariamente, percebemo-nos criativamente livres para conectarmos e integrarmos novas paisagens e perspectivas dentro de nós.
Por fim, na confluência dos caminhos que percorri, deparo-me com as narrativas que encontrei e sua relação com a comunidade estética idealizada por Berleant (2010), e reafirmo a interligação entre a sensibilidade compartilhada pelo cantar junto e a Estética Social na constituição de um campo sensível forjado no processo social do fazer de uma arte que, como explicitado ao final, em origem e essência, somos nós mesmos
Distante de pretender como absolutos e indiscutíveis quaisquer dos achados reflexionados até aqui, espero que os resultados obtidos para responder a pergunta e o propósito que inspiraram este estudo possam contribuir para a iluminar a compreensão das relações entre a arte e a Estética Social nos campos da Psicologia Social, da Psicologia da Arte, da Música e das artes em geral, e motivar novas investigações nos diversos campos de conhecimento que dela possam prescindir.
Último movimento: relembro as cenas povoadas de abraços, sorrisos e a cumplicidade nos olhares. Recordo a humanidade que nos une e me sinto parte; revejo as canções, constato a vibração das vozes em meu corpo e tudo que levarei comigo. Ao final dessa jornada, percebo-me outra. Pronta para seguir.
Em correspondência trocada com Arnold Berleant em 19 de novembro de 2022 acerca das minhas reflexões sobre os relatos dos participantes das oficinas, Berleant enfatizou que tal interligação confirma a ideia de campo estético formulada por ele: “Ao participar de um campo estético (envolvendo uma obra de arte, um contexto ambiental ou um contexto social) penso eu, a experiência de conexão e liberdade é intensificada simultaneamente. Esses sentimentos não são opostos, como pode parecer nas sociedades ocidentais individualistas, e o fato de os participantes comentarem sobre isso é uma confirmação da ideia do campo estético.”
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7. Apêndice
7.1. As vozes dos cantantes
Como mencionado no início desse estudo, encontrei nas narrativas os diversos movimentos e percepções que me guiaram no desenrolar dos fios que teceram minhas reflexões e levaram-me ao percurso teórico que desenvolvi para compreender as experiências vivenciadas nas oficinas. Assim, deixo agora, com o leitor, mais algumas das vozes dos participantes que contam sobre os sentimentos, reflexões, sensações e compreensões descritas nos diários de bordo das quatro oficinas:
Hoje tive uma experiência diferente, porque tive a oportunidade de aprender a escutar a voz das pessoas que estiveram cantando junto comigo. Para que todos teja no mesmo ritmo e tive oportunidade de conhecer um afinador que se chama diapasão. (desenho). (Lidia, 16 anos, SAPinhal)
A aula de hoje foi bem legal! Consegui sentir algo diferente. Gostei de ter sentido minha voz encaixando com a das pessoas. (Mayara, 17 anos, SAPinhal)
Toda vez que eu venho, fico encantada com a voz de todo mundo, hoje eu fiz 2 novos amigos: May e Lucas (desenho com a frase “eu amo a professora Cecília”) (Clarice, 14 anos, SAPinhal)
Uma aula muito divertida, produtiva, aprendi muita coisa importante hoje. Uma aula que me traz paz. (desenho de um balão) Um canto que alivia a alma. (Rute, 16 anos, SAPinhal)
Preciso voltar aos meus exercícios de fono. O grupo se integra e interage de forma mais forte. O bom de ser diferente e tão igual. A leveza toma conta de mim. Gostando cada vez mais, querendo mais! (Esmael, 65 anos, CJordão)
Hoje foi um dia que eu me conectei com o grupo, foi bom olhar para o lado e ouvir alguém cantando junto. Gosto de saber que levarei amigos daqui e que aumentei os laços com quem já estava perto. (Gabi, 17 anos, CJordão)
Hoje foi muito bacana, o que me chamou a atenção foi o saber ouvir o outro não só no canto, mas na vida. No entanto, foi um pouco complicado pela falta de algumas pessoas não saberem regular o som da voz mesmo depois de serem orientadas a isso. No mais, curti muito o dia de hoje. (Anna Elise, 42, anos, CJordão)
Muito bom o dia de hoje. Curti muito o momento dos círculos. o som parecia absolutamente mais nítido. Me trouxe paz. (Anna Elise, 42 anos, CJordão)
Semente que brota para se erguer no equilíbrio céu e terra. Velocidade do ar comanda a vida, a energia, a frequência, o som, a essência de tudo que é belo.
Sentir o canal do ar é uma sensação maravilhosa. É entrar num espaço para além do conceito, é infinito...(Teresa, 46 anos, LAMCI)
Surpreendente a forma como o meu corpo reagiu fisicamente a entoação do meu nome pelo grupo. Não consegui evitar lacrimejar e os arrepios na pele demoraram a passar. (Silvia, 49 anos, LAMCI)
Movimento/relaxamento,
Prazer em cantar e dançar
Introspecção/autoconhecimento Respiração consciente.
(desenho de uma pequena árvore). (Ana, 47 anos, CPSRainha)
Hoje não sabia o que havia de escrever ou desenhar, mas é sempre bom estar aqui, dá nos alento para outro dia. (Isabela, 64 anos, CPSRainha)
8. Anexos
8.1. Eu canto, nós cantamos!
Se no princípio a ideia era registrar as oficinas em vídeo como coleta de dados para a pesquisa, os encontros da disciplina Antropologia, Música e Audiovisual abriram uma nova perspectiva para a exploração de algo mais abrangente: um audiovisual que pudesse trazer o campo da experiência para o espectador de modo que se percebesse participante dela. Deparei-me com vários desafios, entre eles, o parco conhecimento do assunto, tanto em nível metodológico como técnico. O que eu tinha em mãos era a música, as pessoas, a pesquisa e o desejo despertado para realizá-lo. Ao longo do processo, os desafios foram sendo superados com a ajuda das aulas e da equipe que me acompanhou nas filmagens. Um momento fundamental para a realização do audiovisual aconteceu em dos encontros da disciplina, quando sintetizei a pergunta principal que definiu o caminho a ser percorrido para esse documentário: O que acontece quando a gente canta junto? Igualmente, a contribuição dos textos oferecidos, em especial os de Steven Feld, em relação ao valor do uso do filme para a pesquisa no campo no âmbito da etnomusicologia, música e vida em comunidade. Steven Feld (2016) afirma:
Voltando-nos para o papel da música na vida em comunidade, o filme poderia melhorar nossa documentação da organização social em torno de ocasiões musicais, do estudo dos músicos na sociedade, do processo de socialização musical, bem como do lugar da música nas mudanças culturais. Em conjunto com problemas específicos de investigação, o filme pode ser utilizado em todas as áreas para reunir dados para pesquisa e análise, podendo ser usado para comunicar de forma mais completa as conclusões e interpretações de tal pesquisa.
Em suma, fazer etnomusicologia com filme é fazer uma etnomusicologia melhor. Usando o filme em programas planejados de pesquisa, podemos nos valer de formas mais elaboradas de dados, melhores metodologias de elicitação e modos de análise mais suscetíveis a testes. Publicando filmes e escrevendo sobre eles, podemos compartilhar aspectos da experiência de campo – tanto dados quanto interpretações – em um novo nível de comunicação. (FELD, 2016, p.266 - 267)
Nutrida teoricamente, constituí uma equipe, que foi composta por mim, na direção e concepção, por Felipe Patto, de São Paulo e Elaine Santana, de Santo Antônio do Pinhal, ambos fotógrafos e cinegrafistas. Saímos a campo: dialogamos sobre estratégias, modos de captação de imagem que interferissem minimamente no andamento da oficina, lidamos com estranhamentos, com as questões do ambiente no qual a oficina foi realizada, com as possibilidades tecnológicas que tínhamos em mãos, em função do orçamento justo.
Chegamos a um resultado: 24:05 minutos de um audiovisual fruto de muita dedicação e de muitos aprendizados, que recebeu o título final Eu canto, nós cantamos!. O resultado condensa a resposta dada pelos participantes à pergunta O que acontece quando a gente canta junto?, cuja resposta, baseada nos depoimentos dos participantes é: quando um canta, todos cantam, pois o canto de cada um move o canto do outro e compõe um cantar de todos, em comunidade.
I. Sobre o processo das filmagens
As filmagens começaram no terceiro encontro realizado com o grupo de Campos do Jordão e seguiram até 28 de abril, dia da apresentação final da oficina no Auditório Cláudio Santoro. Nos dois encontros anteriores ao início das filmagens, a equipe traçou estratégias para que os participantes pudessem acolher a presença das câmeras. Tais estratégias foram revistas ao longo do processo, para adequarem-se ao movimento do grupo. Dos 22 participantes da oficina, apenas uma relatou o desconforto com as filmagens, o que foi suavizado no decorrer dos encontros. Em seu “diário de bordo”. Rose relata:
Aula 6: Ah... e as câmeras me atraíram bastante, eu não me sinto bem com gravações. Sou muito crítica e acabo por travar quando sei que sou filmada.
Aula 7: Hoje foi uma aula boa apesar da câmara o tempo todo filmando. Eu tenho tido muitas crises e a música tem ajudado no processo da ansiedade. (Rose, 28 anos)
Se em um primeiro momento Rosely sentiu-se desconfortável com as câmeras e em participar dos depoimentos, ao passar dos encontros seu desconforto diminuiu ao ponto de espontaneamente fornecer um depoimento significativo da sua experiência, logo depois da apresentação final. Esse depoimento, com sua permissão, encerra o audiovisual.
II. Pré Produção
Na pré-produção foram definidos a equipe e o equipamento a ser utilizado, dentro das possibilidades econômicas da produção, financiada com recursos disponibilizados por mim.
Por se tratar de uma oficina de canto associada ao campo de investigação deste estudo, em cada encontro foram realizadas conversas com a equipe para reconhecimento do campo de trabalho e para encontrar estratégias para que a presença da câmera e do cinegrafista não intimidassem os participantes e produzissem a menor interferência possível no andamento natural da oficina, definindo o método e modo de ação da equipe durante as filmagens.
III. Produção
Dos 10 encontros da oficina de Campos do Jordão realizada no Museu Felícia Leirner, dois foram utilizados para o reconhecimento do trabalho da oficina e para criar um vínculo de confiança com os participantes. As gravações começaram a partir do terceiro encontro, em 9 de março, e seguiram até 28 de abril. Os participantes autorizaram as gravações e foram estimulados a nos contar como se sentiam com o acompanhamento da câmera. Foi-lhes enfatizada a liberdade de não aparecerem nas imagens ou gravar depoimentos. Procurei ter a delicadeza necessária para que cada participante pudesse ficar à vontade com seu posicionamento.
O método adotado para as gravações compreende as estratégias do cinema observacional no campo do documentário e a realização de entrevistas com os participantes. Buscamos, com isso, trazer o espectador, o máximo possível, para dentro da realidade vivida na oficina, de modo que se percebesse como parte dela e, assim, conectar-se com sua própria experiência sobre o cantar junto. Esse foi o grande desafio do projeto, presente tanto no modo de realizar as gravações, como na futura edição das imagens. Um segundo desafio foi a captação de áudio, que exigiu ser especialmente refinado no seu tratamento final.
IV. Captação das imagens e de som
A captação das imagens ocorreu de três maneiras:
-
câmera invisível, no tripé, para captar a visão geral do ambiente e dos movimentos da oficina.
-
câmera na mão, para acompanhar os participantes, os movimentos da oficina e o ambiente ao redor.
-
gravação de depoimentos dos participantes com câmera no tripé. Os depoimentos foram realizados individualmente e em pequenos grupos. Dependeu da disponibilidade dos participantes e do modo como se sentiram mais tranquilos em gravar.
A captação do áudio ocorreu de três formas:
-
captação pelo áudio da câmera
-
captação por microfone colocado no ambiente
-
utilização de um microfone de lapela para a gravação dos depoimentos.
V. Pós Produção
Após o término da gravação, foram selecionadas as imagens que correspondiam ao tema proposto. Na medida em que as imagens foram analisadas, o roteiro emergiu e foi definida a linha de montagem, buscando criar uma narrativa coerente na edição das imagens. Foram utilizados os áudios das canções cantadas pelo grupo, gravados “ao vivo”, que serviram como “fio condutor” das imagens captadas. Alguns desafios surgiram quanto à qualidade de áudio, dado que o equipamento utilizado não era o mais adequado, mas o possível, dentro dos recursos disponíveis. Questões como ruídos do ambiente, do vento no microfone na gravação externa dos depoimentos, as diferentes acústicas entre a sala de vidro, na qual foi realizada a maior parte dos encontros, e o Auditório Cláudio Santoro, tiveram que ser trabalhadas para buscar uma melhor equalização e qualidade sonora. Vale notar que a sala de vidro era aberta para outros ambientes do museu, com a passagem eventual de alguns turistas e de alguns raros vazamentos sonoros vindo do auditório.
Foi feita uma primeira versão da edição das imagens, que contribuiu para uma melhor visualização do roteiro. A partir dessa primeira versão, foi realizada a versão final do audiovisual, já com o tratamento sonoro, inclusão dos textos e créditos. Concebido inicialmente como um projeto de 10’de duração, foi finalizado com o tempo de 24:05.
É importante considerar que o resultado obtido neste trabalho é uma possibilidade dentro das edições possíveis das imagens captadas e contém a minha perspectiva como condutora e pesquisadora da oficina, diretora e editora do audiovisual. Portanto, é a minha experiência e meu olhar dentro da oficina que está presente na definição do roteiro, na seleção das imagens e dos áudios, na montagem e na edição final.
A edição final pode ser vista em: https://youtu.be/ijidOmCirko.
VI. Ficha Técnica
Direção e Roteiro: Cecília Valentim
Captação de Imagens: Felipe Patto e Elaine Santana
Montagem e Edição de imagens: Felipe Patto e Cecília Valentim
Captação de áudio: Felipe Patto e Elaine Santana
Tratamento de áudio: Felipe Patto
Edição de Áudio: Felipe Patto e Cecília Valentim
Duração do audiovisual: 24:05” Status do Projeto: Finalizado
VII. Especificações técnicas
Equipamentos utilizados pela Elaine:
Câmeras
EOS 5D Mark IV
EOS 5D Mark II
Objetivas
EF 24-105mm f/4L IS USM
EF 50mm f/1.4 USM
Microfones
2x Microfones de Lapela (Condensador / Omni-direcional) sem-fio (1.9 GHz)
Sennheiser AVX-ME2 SET
Equipamento utilizados pelo Felipe:
Câmeras
Canon EOS 80D
Canon EOS REBEL T5i / 700D
Objetivas
EF 24-70mm f/2.8L II USM
EF 50mm f/1.4 USM
EF 70-200mm f/2.8L IS II USM
EF-S 10-18mm f/4.5-5.6 IS STM
EF-S 18-135mm f/3.5-5.6 IS NANO USM
Microfones
Microfone de Lapela (Condensador / Omni-direcional) Boya BY-M1
VIII. Referências Bibliográficas do projeto videográfico
FELD, Steve. “Etnomusicologia e comunicação visual”. In GIS – Gesto, Imagem e Som – Revista de Antropologia n.1. São Paulo, 2016.
SEEGE, Anthony. “Etnografia da Música”. In Cadernos de Campo, São Paulo, n.17,
p.237-260, 2008. www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/47695
TURINO, Thomas. Music and Social Life: the politics of participation. Chicago: The
University of Chicago Press, 2008 (cap. 1)