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Vista para a natureza

O Corpo do Canto
Cecilia Valentim

Fev 17, 2022

O primado do corpo em toda e qualquer experiência deve ser reconhecido. Esse reconhecimento passa por ultrapassar a dualidade cartesiana que separou o corpo em partes, reduzindo-o a uma mera máquina de sensações, tornando-o um invólucro incômodo, mas necessário para abrigar os pensamentos e ideias advindos da concepção de uma mente separada e superior a ele, abstraindo-o de sua profundidade.
 

Na incorporação ativa do mundo, o corpo é o lugar onde reside a experiência, de onde surge toda e qualquer percepção, compreensão e expressão. A escuta interna e a escuta do mundo são camadas que residem em um corpo perceptivo: é a partir dele que a pessoa percebe a si mesma e ao outro, que compreende o mundo ao seu redor e expressa seu modo de ser. Um corpo que ocupa um lugar físico no mundo, um espaço e um tempo, onde a experiência sensível acontece. Um corpo estético:
 

Nós podemos pensar em um corpo estético, então, como culturalmente modelado, entrelaçado e embebido em uma complexa rede de relações, cada qual com um caráter e dinâmica distintos. Raça, classe, gênero e geografia, são vividas através de formas e estruturas corporais. Essas diferentes estruturas culturais, sexuais, raciais e sociais, estão inseridas em corpos vivos. O corpo estético, como receptor e gerador da experiência sensorial, não é estático ou passivo, mas possui sua própria força dinâmica, mesmo quando inativo. A incorporação estética está acontecendo, completamente presente, através da presença característica do corpo, por meio do foco e da intensidade sensoriais que nós associamos com a experiência da arte. (BERLEANT, 2004, p.10)
 

É o corpo que se engaja na experiência:
 

É o corpo que permite a pregnância das experiências auditivas, táteis e visuais, fundando a unidade predicativa do mundo percebido que, por sua vez, servirá de referência à expressão verbal e à significação intelectual. Nesse sentido, não é ao objeto físico que o corpo é comparável, mas sobretudo à obra de arte. Quer dizer: uma pintura, um poema, uma peça musical são indivíduos, isto é, seres nos quais não é possível distinguir a expressão daquilo que exprime, cujo sentido só é acessível mediante o contato direto, sem que abandone seu lugar espacial e temporal. (FRAYZE-PEREIRA, 2005, p.182).
 

Um corpo sensível, perceptivo e vibrante, um corpo vivo:
 

Os indivíduos cujos corpos estão cheios de vida e vibrantes conseguem sentir a realidade de seu ser e podem ser descritos como pessoas sensíveis. A sensibilidade é a qualidade de uma pessoa que está plenamente viva (LOWEN, A., 1990, pp. 36–219).
 

A partir destas influências, falamos, neste artigo, do corpo em uma atividade artística específica: um corpo que é constituinte e constituído pelo canto, na relação consigo mesmo e com o outro. O corpo do canto.

"Os individuos cujos corpos estão cheios de vida e vibrantes conseguem sentir a realidade de seu ser."

Cantar é uma atividade essencialmente corporal. Um corpo emocionado que traz dentro de si o registro de todas as experiências vividas, que cria marcadores somáticos[1] que modelam uma forma e um modo de ser e agir no mundo que definirão a qualidade sonora e expressiva daquele que canta. Movendo-se em direção a si mesmo, fala a todos os seus sentidos em um movimento unificado:

Ou seja, os aspectos sensoriais de uma coisa constituem conjuntamente uma mesma coisa, como o olhar, o tato e todos os outros sentidos são conjuntamente os poderes de um mesmo corpo integrados em uma única ação. Em suma: os sentidos se comunicam. E, paradoxalmente, isso ocorre porque o corpo é uno. (FRAYZE-PEREIRA, 2010, p.177)

Assim, o corpo do canto impõe o aprofundamento de um tipo específico de percepção que envolve a escuta dos movimentos internos que o constituem e a apreensão das suas possibilidades expressivas na descoberta de uma linguagem que o comunica em cada gesto, em cada olhar, em cada som que manifesta. Um ser sonoro que encontra no corpo o eco motor da sua expressão:

Entre meus movimentos, existem alguns que não conduzem a parte alguma, que não vão nem mesmo procurar no outro corpo sua semelhança ou seu arquétipo: são os movimentos do rosto, muitos gestos e, sobretudo, estes estranhos movimentos de garganta e da boca que constituem o grito e a voz. Tais movimentos terminam em sons e eu os ouço. Como o cristal, o metal e muitas outras substâncias, sou um ser sonoro, mas a minha vibração, essa é de dentro que a ouço; como disse Malraux, ouço-me com minha garganta. E nisto, disse ele também, sou incomparável, minha voz está ligada a massa de minha vida como nenhuma outra voz. (MERLEAU-PONTY, 1964, p.140).


O ser sonoro, aconchegado pelo corpo do canto evidencia, para aquele que canta, que ao cantar ele se torna visível e vidente, cantado e cantante, ouvinte e audível, tocante e tocado, para além do corpo na densidade da matéria:

Ainda mais uma vez: a carne de que falamos não é a matéria. Consiste no enovelamento do visível sobre o corpo vidente, do tangível sobre o corpo tangente, atestado, sobretudo quando o corpo se vê, se toca vendo e tocando as coisas, de forma que, simultaneamente, como tangível, desce entre elas, como tangente, domina-as todas, extraindo de si próprio essa relação, e mesmo essa dupla relação por deiscência ou fissão de sua massa (MERLEAU-PONTY, 1964, pag.141).

Incomparável em seus movimentos, revela em sua voz toda extensão de uma existência ancorada em uma experiência estética singular. Em suma, o canto entrelaça a expressão de uma estética única e pessoal no corpo daquele que canta. O cantor se torna cantante em um corpo receptivo que o revela e que é revelado por ele. Um ser estético em si, que se move à sua maneira, deslocando-se para dentro de si mesmo para transitar do ouvir interno para a escuta do mundo, tornando-se ao mesmo tempo obra de arte e artista, em uma trama expressiva do sensível (FRAYSE — PEREIRA, 2010, pg. 185). Reflexivo e autoconsciente, o cantante debruça sobre si mesmo na ação de cantar e expressa, no corpo do canto, a totalidade da sua potência.

[1]“Em suma, os marcadores somáticos são um caso especial do uso de sentimentos gerados a partir de emoções secundárias. Essas emoções e sentimentos foram ligados, pela aprendizagem, a resultados futuros previstos de determinados cenários”. (DAMÁSIO. A, 1996, p.206)

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